Imagine a seguinte situação hipotética:
O Ministério Público ofereceu denúncia
contra João pela prática de homicídio.
No final da 1ª fase do procedimento do
júri (sumário da culpa), o juiz proferiu sentença de impronúncia.
Confira o que diz o CPP sobre a impronúncia:
Art. 414. Não se convencendo da materialidade do fato
ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz,
fundamentadamente, impronunciará o acusado.
Contra essa sentença, o Ministério
Público interpôs recurso em sentido estrito (RESE).
Agiu corretamente o MP?
NÃO. Isso porque o recurso cabível era APELAÇÃO, conforme
prevê expressamente o art. 416 do CPP:
Art. 416. Contra a sentença de
impronúncia ou de absolvição sumária caberá apelação.
Diante disso, o TJ não conheceu do
recurso em sentido estrito, tendo em vista que o recurso para impugnar a
decisão de impronúncia do réu é a apelação criminal.
Os Desembargadores entenderam que
houve erro grosseiro por parte do MP, diante da norma expressa do art. 416 do CPP,
o que impediria a aplicação do princípio da fungibilidade.
Inconformado, o MP interpôs recurso
especial. Para o STJ, é possível conhecer do RESE como se fosse apelação,
aplicando, no caso, o princípio da fungibilidade?
SIM.
Princípio da fungibilidade
O princípio da fungibilidade recursal
também é chamado de “teoria do recurso indiferente”, “teoria do tanto vale”,
“princípio da permutabilidade dos recursos” ou “princípio da conversibilidade
dos recursos”.
Esse princípio tem previsão expressa no art. 579 do CPP:
Art. 579. Salvo a hipótese de má-fé, a
parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro.
Parágrafo único. Se o juiz, desde
logo, reconhecer a impropriedade do recurso interposto pela parte, mandará
processá-lo de acordo com o rito do recurso cabível.
A teor do art. 579 do CPP, a
jurisprudência do STJ admite a fungibilidade recursal, desde que observado o
prazo do recurso que se pretende reconhecer e que não fique configurada a
má-fé.
Nesse sentido:
A jurisprudência desta Corte assinala que é possível a aplicação
da fungibilidade no uso do recurso de apelação em detrimento do recurso em
sentido estrito, desde que demonstradas a ausência de má-fé e a tempestividade
do instrumento processual.
STJ. 6ª Turma. AgRg no AREsp 1.541.008/MG, Rel. Min. Rogerio
Schietti Cruz, DJe de 12/11/2020.
No caso, houve erro
grosseiro por parte do MP?
SIM. Houve erro grosseiro do MP na interposição
de recurso em sentido estrito quando cabível apelação. Isso porque foi
inobservado o que está expressamente contido no art. 416 do CPP.
Não houve má-fé
Apesar de ter havido, erro
grosseiro, não houve má-fé.
Má-fé não é sinônimo de erro
grosseiro.
O conceito de má-fé é vago e, como não há uma definição no
CPP, a melhor solução para é buscar a sua definição utilizando-se do CPC, conforme
autoriza o art. 3º do CPP:
Art. 3º A lei processual penal
admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento
dos princípios gerais de direito.
O erro grosseiro somente implicará em litigância de má-fé se
utilizado para justificar a incidência das hipóteses do art. 80 do CPC/2015:
Art. 80. Considera-se litigante
de má-fé aquele que:
I - deduzir pretensão ou defesa
contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;
II - alterar a verdade dos fatos;
III - usar do processo para
conseguir objetivo ilegal;
IV - opuser resistência
injustificada ao andamento do processo;
V - proceder de modo temerário em
qualquer incidente ou ato do processo;
VI - provocar incidente
manifestamente infundado;
VII - interpuser recurso com
intuito manifestamente protelatório.
No caso concreto, não há má-fé considerando
que não está presente nenhuma das hipóteses do art. 80 do CPC.
Interpretação histórica do
art. 579 do CPP
Repare que o art. 579 do CPP, ao tratar do princípio da fungibilidade,
não fala em erro grosseiro, mas apenas em má-fé:
Art. 579. Salvo a hipótese de má-fé, a
parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro.
(...)
Essa omissão não pode ser tida
como mero esquecimento, sendo algo proposital. Como se chega a essa conclusão?
Porque no CPC/1939, o princípio da fungibilidade não podia
ser aplicado se houvesse má-fé ou erro grosseiro. Era o art. 810 do CPC/1939:
Art. 810. Salvo a hipótese de
má-fé ou erro grosseiro, a parte não será prejudicada pela interposição de um
recurso por outro, devendo os autos ser enviados à Câmara, ou turma, a que
competir o julgamento.
Veja, portanto, que o CPC/1939
demonstrou claramente que má-fé e erro grosseiro são conceitos diferentes.
O CPP (Decreto-Lei n. 3.689/1941),
editado aproximadamente dois anos após o CPC/1939, já ciente de que má-fé e
erro grosseiro são conceitos diferentes, decidiu que, no processo penal, o
princípio da fungibilidade somente poderia ser afastado se houvesse má-fé.
Houve uma omissão eloquente do erro grosseiro.
Por essa razão, diz-se que a
omissão da ressalva no tocante ao erro grosseiro não pode ser tida como mero
esquecimento do CPP, mas como proposital, eis que as duas legislações (CPC/1939
e CPP/1941) foram editadas no mesmo contexto histórico.
Em suma:
STJ. 3ª Seção.
EDcl no AgRg nos EAREsp 1.240.307-MT, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em
8/2/2023 (Info 13 – Edição Extraordinária).
DOD Plus –
aprofundando
A ausência de erro grosseiro é requisito para a aplicação do princípio
da fungibilidade no processo penal?
Há divergência no STJ:
1ª corrente: NÃO. É a posição acima explicada:
Em atenção à análise histórica e da conjuntura atual do
ordenamento vigente, o princípio da fungibilidade no processo penal deve ser
aplicado quando ausente a má-fé e presente o preenchimento dos pressupostos do
recurso cabível.
Má-fé não é sinônimo de erro grosseiro.
STJ. 3ª Seção. EDcl no AgRg nos EAREsp 1.240.307-MT, Rel. Min.
Joel Ilan Paciornik, julgado em 8/2/2023 (Info 13 – Edição Extraordinária).
O princípio da fungibilidade está previsto nos termos do art.
579, caput e parágrafo único, do CPP, “salvo a hipótese de má-fé, a parte não
será prejudicada pela interposição de um recurso por outro. Se o juiz, desde
logo, reconhecer a impropriedade do recurso interposto pela parte, mandará
processá-lo de acordo com o rito do recurso cabível”.
A existência de erro grosseiro, por si só, não é fator
impeditivo para a aplicação do princípio da fungibilidade. O erro grosseiro
obsta a aplicação do referido princípio caso sinalize má-fé ou inviabilize o
preenchimento dos pressupostos de admissibilidade do recurso cabível, o que não
ocorreu na hipótese.
STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 2.108.099/MG, Rel. Min. Joel Ilan
Paciornik, julgado em 22/8/2023.
2ª corrente: SIM. Existem julgados do STJ que exigem a
ausência de erro grosseiro para a aplicação do princípio da fungibilidade:
O recurso cabível para impugnar decisão ambígua, obscura,
contraditória ou omissa, conforme disciplina o art. 619, do CPP, são os
embargos de declaração. A interposição de agravo regimental com o intuito de
alegar supostas omissões do decisum agravado revela erro grosseiro, o que
inviabiliza, inclusive, a aplicação do princípio da fungibilidade.
STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 2.087.185/SP, Rel. Min. Reynaldo
Soares da Fonseca, julgado em 22/8/2023.
Nos termos do § 2º do art. 1.030 do CPC, combinado com os arts.
39 da Lei n. 8.038/1990 e 798 do Código de Processo Penal, contra a decisão que
nega seguimento a recurso extraordinário em processo penal só é cabível o
agravo regimental, no prazo de 5 dias corridos.
A interposição de agravo em recurso extraordinário em tais casos
configura erro grosseiro, resultando no não conhecimento do recurso e impedindo
a aplicação do princípio da fungibilidade, nos termos da jurisprudência
pacífica.
STJ. Corte Especial. AgRg nos EDcl no ARE nos EDcl no RE no
AREsp 1.378.944/RJ, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 27/6/2023.
DOD Plus –
princípio da fungibilidade no processo civil
O princípio da fungibilidade não
está previsto de forma específica nem genérica no CPC. Apesar disso, a doutrina
admite a sua existência. Nesse sentido:
Enunciado 104-FPPC: O princípio da fungibilidade recursal é
compatível com o CPC e alcança todos os recursos, sendo aplicável de ofício.
Alguns autores afirmam que o
CPC/2015 previu o princípio da fungibilidade de forma específica em dois casos:
• recebimento de embargos de
declaração contra decisão monocrática em tribunal como agravo interno (art.
1.024, § 3º);
• recebimento de REsp como RE e
vice-versa (arts. 1.032 e 1.033).
Com base na jurisprudência do
STJ, para a aplicação do princípio da fungibilidade, é necessário o
preenchimento dos seguintes requisitos:
a) dúvida objetiva a respeito do
recurso cabível;
b) inexistência de erro
grosseiro;
c) que o recurso interposto
erroneamente tenha sido apresentado no prazo daquele que seria o correto.
Nesse sentido:
Como dito na decisão agravada, o recurso cabível na hipótese era
o agravo em recurso especial, previsto art. 1.042 do CPC. Por isso,
determinou-se a baixa dos autos à origem para exame do agravo , em razão do
manifesto erro grosseiro na interposição de agravo interno em recurso especial,
o que tornou inaplicável o princípio da fungibilidade, que pressupõe dúvida
objetiva a respeito do recurso a ser interposto, inexistência de erro grosseiro
e observância do prazo do recurso correto, o que não ocorre na espécie.
STJ. 1ª Turma. AgInt no AREsp 1.985.294/DF, Rel. Min. Paulo
Sérgio Domingues, julgado em 26/6/2023.