segunda-feira, 9 de outubro de 2023
O indivíduo cumpre pena em regime aberto, devendo pernoitar na Casa do Albergado. Ele apresentou vários atestados médicos para justificar a ausência nos pernoites. A Defensoria Pública pugnou pelo cômputo dos períodos de licença médica como efetivo cumprimento de pena. Isso é admitido pelo STJ?
EXPLICAÇÃO DO TEMA 1120
A situação concreta, com
adaptações, foi a seguinte:
Como se sabe, durante o período
mais crítico da pandemia causada pela Covid-19, foram editados decretos
estaduais e municipais limitando a circulação de pessoas e proibindo o
funcionamento de atividades empresariais não consideradas essenciais.
A Defensoria Pública do Estado de
Santa Catarina impetrou habeas corpus coletivo alegando que, durante esse
período de isolamento social, os presos que já estavam trabalhando ou estudando
e foram obrigados a parar por causa dessas restrições sanitárias, deveriam
continuar tendo direito à remição mesmo sem estarem trabalhando ou estudando.
Vejamos um exemplo concreto
para visualizar concretamente o que pediu a Defensoria:
João cumpre pena no regime
semiaberto. Há alguns meses o juiz autorizou que ele fizesse trabalho externo.
Ocorre que veio a pandemia
decorrente do novo coronavírus.
Diante disso, o juízo das
execuções penais proibiu o trabalho externo do apenado durante as medidas
restritivas impostas pelo Governo para combate à Covid-19.
João ficou 60 dias sem poder
trabalhar por causa das restrições sanitárias.
A Defensoria Pública pediu,
portanto, que João e todos os demais presos na mesma situação, tivessem direito
de computar esse tempo para fins de remição.
O pedido da Defensoria foi baseado em uma interpretação mais
elástica do art. 126, § 4º, da LEP:
Art. 126 (...)
§ 4º O preso impossibilitado, por
acidente, de prosseguir no trabalho ou nos estudos continuará a beneficiar-se
com a remição.
A Defensoria Pública sustentou
que o termo “acidente”, previsto no art. 126, § 4º, da LEP, merece ser
interpretado extensivamente, de modo a compreender um “acontecimento
imprevisto” ou um “fato puramente casual”, como a situação de pandemia gerada
pela covid-19.
O Ministério Público se insurgiu
contra o pleito alegando que isso configuraria remição ficta, o que é proibido
pela jurisprudência do STJ e do STF.
João terá direito de computar
esses 60 dias como tempo de remição? O pedido da Defensoria Pública foi
acolhido pelo STJ? É possível a concessão de remição ficta, com
extensão do alcance da norma prevista no art. 126, §4º, da LEP, aos apenados
impossibilitados de trabalhar ou estudar em razão da pandemia da Covid-19?
SIM.
Em regra, é proibida a
remição ficta
Em regra, o STJ e o STF não
admitem a remição ficta.
O principal argumento para isso é
a ausência de previsão legal previsão legal específica impossibilita a
concessão de remição da pena pelo simples fato de o Estado não propiciar meios
necessários para o labor ou a educação de todos os custodiados.
Entende-se, portanto, que a
omissão estatal não pode implicar remição ficta da pena, haja vista a remição
“fictícia” não faz com que se cumpra a razão de ser do benefício, que é o de
valorizar a efetiva dedicação do preso ao trabalho ou ao estudo.
Distinguishing no caso da
pandemia da Covid-19
O STJ afirmou que o entendimento
acima exposto não deve ser aplicado à hipótese excepcionalíssima da pandemia de
Covid-19 por várias razões, devendo ser feito um distinguishing.
A regra geral que veda a remição
ficta vale para o “estado normal das coisas” e não para uma pandemia.
Princípios da
individualização da pena, da dignidade da pessoa humana, da isonomia e da
fraternidade.
O art. 3º da Lei 7.210/1984
estabelece que, “ao condenado e ao internado serão assegurados todos os
direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”. Em outros termos,
ressalvadas as restrições decorrentes da sentença penal e os efeitos da
condenação, o condenado mantém todos os direitos que lhe assistiam antes do
trânsito em julgado da decisão condenatória.
Nessa linha, negar aos presos que
já trabalhavam ou estudavam antes da pandemia de Covid-19 o direito de continuar
a remitir sua pena se revela medida injusta, pois:
(a) desconsidera o seu
pertencimento à sociedade em geral, que padeceu, mas também se viu compensada
com algumas medidas jurídicas favoráveis, o que afrontaria o princípio da
individualização da pena (art. 5º, XLVI, da CF/88), da isonomia (art. 5º,
caput, da CF/88) e da fraternidade (art. 1º, II e III, 3º, I e III, da CF/88);
(b) exige que o legislador
tivesse previsto a pandemia como forma de continuar a remição, o que é
desnecessário ante o instituto da derrotabilidade da lei.
Teoria da derrotabilidade
da norma
Além disso, aplica-se ao presente
caso a chamada teoria da derrotabilidade da norma.
A
doutrina ensina que a “Derrotabilidade é o ato pelo qual uma norma jurídica
deixa de ser aplicada, mesmo presentes todas as condições de sua
aplicabilidade, de modo a prevalecer a justiça material no caso concreto”.
(BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 13ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2020, p. 133).
Note-se, assim, que não se está a
conferir uma espécie de remição ficta pura e simplesmente ante a
impossibilidade material de trabalhar ou estudar. O benefício não deve ser
direcionado a todo e qualquer preso que não pôde trabalhar ou estudar durante a
pandemia, mas tão somente àqueles que, já estavam trabalhando ou estudando e,
em razão da Covid, viram-se impossibilitados de continuar com suas atividades.
Tese firmada pelo STJ:
Nada obstante a interpretação restritiva que deve ser conferida
ao art. 126, §4º, da LEP, os princípios da individualização da pena, da
dignidade da pessoa humana, da isonomia e da fraternidade, ao lado da teoria da
derrotabilidade da norma e da situação excepcionalíssima da pandemia de
Covid-19, impõem o cômputo do período de restrições sanitárias como de efetivo
estudo ou trabalho em favor dos presos que já estavam trabalhando ou estudando
e se viram impossibilitados de continuar seus afazeres unicamente em razão do
estado pandêmico.
STJ. 3ª Seção. REsp 1.953.607-SC, Rel. Min. Ribeiro Dantas,
julgado em 14/09/2022 (Recurso Repetitivo – Tema 1120) (Info 749).
EXPLICAÇÃO DO JULGADO
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João foi condenado à pena privativa de liberdade
de 06 anos de reclusão, em regime aberto.
Ficou estabelecido que João deveria
pernoitar na Casa do Albergado.
Durante o cumprimento da pena
apresentou vários atestados médicos para justificar a ausência nos pernoites,
os quais foram juntados no processo de execução.
A Defensoria Pública pugnou pelo
cômputo dos períodos de licença médica como efetivo cumprimento de pena.
O Juízo indeferiu o pedido por
entender que os atestados médicos apresentados nos presídios serviram apenas
para justificar o afastamento e evitar a comunicação de fuga, porém não
poderiam ter seus períodos utilizados como pena cumprida pelo simples fato de
que não haver o cumprimento da reprimenda propriamente dita.
A Defensoria Pública interpôs agravo
em execução, solicitando sua reforma, a fim considerar como pena cumprida todos
os períodos em o apenado esteve afastado do regime de pernoite na Casa de
Albergado em virtude de licença médica.
O Tribunal de Justiça do Estado de
Goiás desproveu o recurso por entender que o período de afastamento informado
nos atestados médicos não seria computado como pena efetivamente cumprida,
servindo apenas para evitar a comunicação de fuga.
A Defensoria Pública impetrou habeas
corpus defendendo, em suma, aplicação analógica dos arts. 41 e 42 do Código
Penal e da legislação trabalhista, para que seja considerado como pena
efetivamente cumprida o período em que o paciente esteve afastado em virtude de
licenças médicas.
Os argumentos da Defensoria foram
acolhidos pelo STJ?
SIM.
A ordem foi concedida para considerar
o tempo em que o apenado esteve afastado das suas obrigações no regime aberto,
sob atestado médico, como pena efetivamente cumprida, por analogia ao Tema n.
1120.
Em período que antecedia a
pandemia de coronavírus, entendia-se que o mero decurso de prazo das penas não
poderia ser considerado para o seu cumprimento, de forma ficta, nem mesmo sob a
apreciação de peculiaridades no caso concreto (AgRg no REsp 1.934.076/GO,
Quinta Turma, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 16/8/2021).
Recentemente, a Terceira Seção do
STJ, ao analisar o Tema 1120, modificou o entendimento para dar primazia aos
princípios da dignidade da pessoa humana, da isonomia e da fraternidade, não
permitindo negar aos indivíduos que tiveram seus trabalhos ou estudos
interrompidos pela superveniência da pandemia de Covid-19 o direito de remitir
parte da sua pena, tão somente por estarem privados de liberdade, pois não se
observava nenhum discrímen legítimo que autorizasse negar àqueles presos que já
trabalhavam ou estudavam o direito de remitir a pena durante as medidas
sanitárias restritivas.
Nesses casos, foi fixada a
seguinte tese: “Nada obstante a interpretação restritiva que deve ser conferida
ao art. 126, § 4º, da Lei de Execução Penal, os princípios da individualização
da pena, da dignidade da pessoa humana, da isonomia e da fraternidade, ao lado
da teoria da derrotabilidade da norma e da situação excepcionalíssima da
pandemia de covid-19, impõem o cômputo do período de restrições sanitárias como
de efetivo estudo ou trabalho em favor dos presos que já estavam trabalhando ou
estudando e se viram impossibilitados de continuar seus afazeres unicamente em
razão do estado pandêmico” (REsp 1.953.607/SC, Terceira Seção, Rel. Ministro
Ribeiro Dantas, DJe de 20/9/2022).
Desse modo, no caso, por analogia
ao referido entendimento, o tempo em que o apenado esteve afastado das suas
obrigações no regime aberto, sob atestado médico, deve ser computado como pena
efetivamente cumprida.
Em suma:
STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 703.002-GO, Rel. Min. Messod Azulay Neto, julgado em 12/6/2023 (Info 781).