sexta-feira, 27 de outubro de 2023
O comodatário tem a obrigação de pagar o IPTU do imóvel?
O julgado comentado envolve o
tema comodato.
Antes de explicar o que foi
decidido, acho interessante fazer uma revisão sobre o assunto.
Se estiver sem tempo, pode ir
diretamente para a explicação do julgado.
NOÇÕES GERAIS SOBRE COMODATO
Comodato
O comodato é o empréstimo gratuito de
coisas não fungíveis (art. 579 do CC).
O comodato pode ser de bens móveis ou imóveis.
Ex1: Henrique, rico empresário,
empresta um pequeno apartamento para que seu primo, Mário, lá more com sua
família.
Ex2: José empresta um trator para
Joaquim fazer a colheita de soja em sua fazenda.
Partes
Comodante: é a
pessoa que empresta.
Comodatário: é a
pessoa que recebe a coisa em empréstimo.
O
comodante precisa ser o dono da coisa?
Não necessariamente. O comodato é
apenas a cessão do uso, não transferindo domínio. Assim, para ser comodante
basta que a pessoa tenha o direito de uso sobre a coisa e que não haja nenhuma vedação
legal ou contratual quanto ao empréstimo.
Exemplo
de quem não pode fazer comodato sob os bens confiados à sua guarda:
Os tutores, curadores e em geral todos
os administradores de bens alheios não poderão dar em comodato, sem autorização
especial, os bens confiados à sua guarda (art. 580).
Características
do comodato
a) Gratuito
O comodato é gratuito (art. 579).
Se fosse oneroso, iria se confundir com
a locação.
Vale ressaltar que o comodante pode
impor algum encargo ao comodatário sem que isso descaracterize a existência do
comodato. Ex: é possível que o comodatário se comprometa a pagar algumas
pequenas despesas relativas ao bem, como cotas condominiais e impostos, sem que
isso faça com que o contrato deixe de ser um comodato. A doutrina chama isso de
“comodato modal” ou “comodato com encargo”.
Caso arque com tais despesas, o
comodatário não poderá jamais recobrar (pedir de volta) do comodante as
despesas feitas com o uso e gozo da coisa emprestada (art. 584).
b) Seu objeto é infungível e
inconsumível
Isso significa que o comodatário
deverá, ao final do contrato, devolver a mesma coisa que recebeu em empréstimo.
Se a coisa emprestada for fungível ou
consumível, o contrato não será de comodato, mas sim de mútuo (art. 586).
O comodato de bens fungíveis ou
consumíveis só é admitido em uma única hipótese: quando destinado à
ornamentação, como o de um arranjo de flores para decoração, por exemplo. É
conhecido como comodatum ad pompam vel
ostentationem.
c) Somente se aperfeiçoa com a
tradição do objeto (contrato real)
O comodato é um contrato real, ou seja,
é necessária a tradição (entrega) da coisa para que se aperfeiçoe. Antes da
tradição não existe comodato.
d) Unilateral
Em regra, gera obrigações apenas para o
comodatário.
Só por exceção o comodante pode assumir
obrigações, posteriormente.
e) Temporário
O comodato é sempre temporário tendo em
vista que é um mero empréstimo. Se não fosse temporário, seria, na verdade, uma
doação.
Não se admite comodato vitalício.
Prazo
determinado ou indeterminado
O comodato pode ser fixado:
· por
prazo determinado;
· por
prazo indeterminado (também chamado de comodato
precário).
Prazo
determinado
Se for por prazo determinado, quando chegar o dia estipulado, o comodatário
deverá automaticamente devolver a coisa emprestada. Não é necessário que o
comodante interpele o comodatário para que este restitua o bem.
No caso de comodato por prazo
determinado: a mora é ex re (mora ex re é aquela que se verifica
automaticamente pelo não cumprimento da obrigação no dia certo do vencimento.
Ocorre de pleno direito, independentemente de notificação).
Prazo
indeterminado
Se for por prazo indeterminado (não se combinou um dia exato para a devolução),
entende-se que o comodato irá durar pelo tempo necessário para que o comodatário
use a coisa para cumprir a finalidade que motivou o empréstimo.
Exemplos de Silvio Rodrigues: se alguém
empresta um trator para ser utilizado na colheita, presume-se que o prazo do
comodato se estende até o final desta; se alguém empresta um barco para que seu
amigo realize uma pesca, presume-se que o comodato foi pelo prazo necessário
para essa pesca.
É possível também que o comodato seja
fixado com prazo indeterminado para uso mais prolongado. É o caso, por exemplo,
do rico empresário que empresta um de seus apartamentos para que o primo more
com a família.
O comodato por prazo indeterminado é
também chamado de comodato precário.
No caso de comodato por prazo
indeterminado: a mora é ex persona (a
mora ex persona ocorre quando se exige a interpelação judicial ou
extrajudicial do devedor para que este possa ser considerado em mora).
O
comodante pode pedir de volta a coisa emprestada antes do fim do prazo?
Como regra geral, o comodante não pode
pedir de volta a coisa emprestada antes de terminar o prazo combinado ou antes
do comodatário usar a coisa para a finalidade que motivou o empréstimo.
Exceção: o comodante poderá requerer a
devolução antes do prazo se conseguir provar, em ação judicial, que precisa do
bem em virtude de necessidade imprevista e urgente.
Essa é a redação do CC:
Art. 581. Se o comodato não tiver prazo convencional,
presumir-se-lhe-á o necessário para o uso concedido; não podendo o comodante,
salvo necessidade imprevista e urgente, reconhecida pelo juiz, suspender o uso
e gozo da coisa emprestada, antes de findo o prazo convencional, ou o que se
determine pelo uso outorgado.
f) Informal:
A lei não exige forma especial para a
sua validade. Pode ser até mesmo verbal.
g) Personalíssimo (intuitu personae):
Em regra, o comodato é um contrato personalíssimo,
considerando que é celebrado levando-se em consideração a pessoa do
comodatário.
Excepcionalmente, contudo, é possível
que se encontrem comodatos sem essa característica.
Obrigações
do comodatário
a) Conservar a coisa emprestada como
se fosse sua
O comodatário é obrigado a conservar,
como se sua própria fora a coisa emprestada, sob pena de responder por perdas e
danos (art. 582).
Em caso de uma situação de perigo, se o
comodatário preferir salvar as suas coisas, abandonando o bem do comodante,
responderá pelo dano ocorrido, ainda que se possa atribuir o evento a caso
fortuito, ou força maior (art. 583).
b) Arcar com as despesas ordinárias
de conservação e utilização da coisa
As despesas ordinárias de conservação e
utilização da coisa são de
responsabilidade do comodatário, não tendo ele direito de pedir ressarcimento
do comodante.
Exs: alimentação de um cavalo
emprestado; despesas de luz de um apartamento emprestado; combustível e óleo do
trator emprestado.
Art. 584. O comodatário não poderá jamais recobrar do comodante as
despesas feitas com o uso e gozo da coisa emprestada.
E
as despesas extraordinárias?
Devem ser comunicadas ao comodante,
para que ele as faça ou então autorize a fazê-las.
Ex: reforma no apartamento por conta de
uma infiltração.
c) Usar a coisa de acordo com o
contrato ou com a natureza dela
O comodatário não pode usar a coisa
senão de acordo com o contrato, ou a natureza dela, sob pena de responder por
perdas e danos.
O uso inadequado da coisa constitui causa
de resolução do contrato. Ex: Mário recebeu, em comodato, o apartamento de seu
primo para que nele morasse com sua família. Ao invés disso, aluga o imóvel
para um terceiro.
d) Restituir a coisa no prazo
ajustado ou quando terminar o uso a que ela se destinava
A coisa deve ser restituída no prazo
convencionado.
Se não foi fixado prazo, a coisa deve
ser restituída após chegar ao fim o tempo necessário ao uso concedido.
Extinção do comodato
Extingue-se o comodato:
a) pelo advento do termo convencionado
ou, não havendo estipulação nesse sentido, pela utilização da coisa de acordo
com a finalidade para que foi emprestada;
b) em caso de descumprimento, pelo
comodatário, de suas obrigações;
c) pela retomada do bem, por meio de
sentença, a pedido do comodante, desde que provada a necessidade imprevista e
urgente;
d) pela morte do comodatário, se o
contrato foi celebrado intuitu personae. Se não foi personalíssimo, o comodato
pode prosseguir com os herdeiros do comodatário. Obs: a morte do comodante não
é causa de extinção do contrato;
e) pelo perecimento ou deterioração da
coisa.
Comodatário que se nega a restituir a
coisa:
O comodatário que se negar a restituir
a coisa pratica esbulho.
Logo, o comodante deverá ingressar com
ação de reintegração de posse para reaver a coisa.
Se o contrato era por prazo
determinado, com o fim do prazo e a não devolução do bem, o comodante pode
propor a ação de reintegração imediatamente (mora ex re).
Se o contrato era por prazo
indeterminado, será necessária a interpelação do comodatário para que se
constitua a sua mora (mora ex persona).
O comodatário sofrerá duas penalidades
por não restituir a coisa:
• responderá pelos danos que ocorrerem
na coisa se esta perecer ou se deteriorar, ainda que decorrentes de caso
fortuito; e
• terá de pagar aluguel durante o tempo
do atraso.
Aluguel pelo tempo do atraso
Se o comodatário não devolver a coisa emprestada, o
comodante poderá arbitrar um valor (chamado pela lei de “aluguel”) a ser pago
pelo comodatário, pelo uso da coisa além do tempo permitido. Veja a redação do
CC:
Art. 582. (...) O comodatário constituído em mora, além de por ela
responder, pagará, até restituí-la, o aluguel da coisa que for arbitrado pelo
comodante.
O STJ entendeu que a natureza desse
“aluguel” é de uma autêntica pena privada, tendo por objetivo coagir o comodatário
a restituir, o mais rapidamente possível, a coisa emprestada, que indevidamente
não foi devolvida no prazo legal. Por isso, o Min. Paulo de Tarso Sanseverino
chama de “aluguel-pena”.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.175.848-PR, Rel.
Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 18/9/2012.
Se o comodatário se nega a restituir o
bem, o contrato altera sua natureza e deixa de ser comodato, passando a ser um
contrato de locação?
NÃO. O contrato continua sendo de
comodato. Esse aluguel, como já explicado, é de natureza indenizatória, por conta do uso indevido da coisa e não tem o condão de transformar o negócio em
locação. Tanto isso é verdade que a ação para retomar o bem é a ação de
reintegração de posse e não a ação de despejo.
Quem estipula o valor desse
aluguel-pena?
Esse valor é arbitrado pelo próprio
comodante.
Normalmente, o valor do aluguel-pena é
fixado pelo comodante na petição inicial da ação de reintegração de posse.
O valor desse aluguel-pena arbitrado
pelo comodante pode ser superior ao valor do aluguel que seria pago pelo
comodatário como média no mercado caso fosse realmente uma locação (e não um
comodato)?
SIM. O montante arbitrado poderá ser
superior ao valor de mercado do aluguel locatício, pois a sua finalidade não é
transmudar o comodato em locação, mas coagir o comodatário a restituir o mais
rapidamente possível a coisa emprestada (Min. Paulo de Tarso Sanseverino).
Mas há um limite?
SIM. Esse valor não pode ser exagerado,
abusivo, sob pena de ser reduzido pelo juiz.
Segundo entendeu o Ministro Relator, o
aluguel-pena do comodato não deve
ultrapassar o dobro do preço de mercado dos aluguéis correspondentes ao
imóvel emprestado.
Em suma, o aluguel-pena pode ser até o
dobro do valor que o proprietário conseguiria caso fosse oferecer seu imóvel
para alugar no mercado.
Explica-se, mais uma vez, que esse
valor do aluguel-pena é maior que o valor do mercado porque seu objetivo é
“forçar” o comodatário a devolver o bem e não transformar o contrato em uma
locação. Logo, a situação tem que ficar desvantajosa para que o comodatário se
sinta compelido a restituir a coisa.
EXPLICAÇÃO DO JULGADO
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João cedeu, em comodato, um apartamento
para Sílvia morar.
Não ficou combinado entre eles quem
pagaria o IPTU do imóvel.
João pensou que, como ele já
havia emprestado gratuitamente, o apartamento, o mínimo que Sílvia poderia
fazer seria pagar o IPTU.
Sílvia, por sua vez, achou que
não tinha obrigação alguma de pagar o IPTU já que isso não ficou combinado e
João possui condições econômicas bem melhores que ela.
Depois de três anos, João
descobriu que o IPTU não foi pago em nenhum desses exercícios.
Com medo de ser executado e
perder o apartamento, ele resolveu pagar logo os tributos atrasados.
Logo em seguida, pediu que Sílvia
deixasse o imóvel e ajuizou contra ela ação de ressarcimento exigindo o
pagamento de R$ 21 mil, valor que ele pagou de IPTU, acrescido de juros e
multa.
A ré contestou a demanda
sustentando que o IPTU tem como fato gerador a propriedade. Logo, João é quem
deveria realmente pagar o imposto. A requerida argumentou que se ela pagasse,
haveria enriquecimento sem causa do proprietário.
A discussão chegou até o
STJ. Quem tem razão neste caso: João ou Sílvia?
João.
Nos termos do art. 582 do Código Civil, é dever do
comodatário (no caso, Sílvia) arcar com as despesas decorrentes do uso e gozo
da coisa emprestada, assim como conservar o bem como se fosse seu:
Art. 582. O comodatário é
obrigado a conservar, como se sua própria fora, a coisa emprestada, não podendo
usá-la senão de acordo com o contrato ou a natureza dela, sob pena de responder
por perdas e danos. O comodatário constituído em mora, além de por ela responder,
pagará, até restituí-la, o aluguel da coisa que for arbitrado pelo comodante.
Sendo o comodato espécie de
contrato gratuito, não poderá o comodante (no caso, João) ser onerado pelas
despesas ordinárias da coisa, exceto em caso de consentimento expresso, o que,
no presente caso, não ocorreu.
Nessa linha de pensamento, o
Superior Tribunal de Justiça também já decidiu no sentido de que compete ao
comodatário o pagamento das despesas ordinárias para a conservação normal e
manutenção regular da coisa emprestada (REsp 249.925/RJ, relatora Ministra
Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/11/2000).
Assim, não há falar em
enriquecimento ilícito.
Ao contrário, admitir que o comodante arque com as despesas
decorrentes do uso e gozo da coisa de que o comodatário gratuitamente usufrui
implicaria enriquecimento sem causa do último, o que é vedado pelo art. 884 do
Código Civil:
Art. 884. Aquele que, sem justa
causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o
indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.
Em suma:
No contrato de comodato, não poderá o comodante ser
onerado pelas despesas ordinárias da coisa, exceto em caso de consentimento
expresso.
STJ. 4ª
Turma. AgInt no AREsp 1.657.468-SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado
em 21/8/2023 (Info 785).