Imagine a seguinte situação hipotética:
João, titular de conta corrente
no Banco ZZZ, identificou dois saques indevidos feitos com seu cartão, em dois
dias específicos.
Ele procurou o banco afirmando
que não foi ele quem fez esses dois saques.
Como a situação não foi
resolvida, João ajuizou ação declaratória de inexistência de débito cumulada
com pedido de indenização por danos morais e materiais contra o Banco.
Alegou que foram realizados os saques
indevidos e afirmou não ter emprestado o cartão ou revelado sua senha a
terceiros.
Requereu a declaração de
inexistência ou de inexigibilidade dos débitos, bem como a condenação da instituição
financeira ao ressarcimento dos valores sacados indevidamente. Pleiteou também
pela condenação da ré ao pagamento de danos morais.
O Banco, em contestação, afirmou
que o cartão com chip de João somente podia ser utilizado com senha.
Argumentou que a auditoria
interna do banco concluiu pela ausência de indícios de fraude, bem como que os
saques foram todos realizados na mesma agência e horários que outras transações
não contestadas.
Afirmou não ter havido falha no
serviço prestado e que se tratava de culpa exclusiva do autor.
A perícia concluiu que todas as
transações impugnadas e não impugnadas foram feitas com a via do cartão
desbloqueado da parte, nas mesmas agências, mesmos valores, em horários
compatíveis.
Além disso, verificou-se que o
cartão possuía mecanismos contra a adivinhação de senha, bem como que não era
possível a realização de saques sem dispor do cartão com chip e senha.
Assim, não foi detectado qualquer
indício de uso do cartão por terceiros ou anomalias que resultassem de fraudes.
Diante desse cenário, em primeira
instância o pedido foi julgado improcedente.
A sentença foi mantida pelo
Tribunal de Justiça.
Ainda inconformado, João interpôs
recurso especial.
O pedido de João foi
acolhido pelo STJ?
NÃO.
O art. 6º, inciso VIII, do CDC prevê a possibilidade de
inversão do ônus da prova em favor do consumidor:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
(...)
VIII - a facilitação da defesa de
seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no
processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando
for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;
Esse art. 6º, VIII, do CDC se
aplica, obviamente, para os contratos bancários envolvendo consumidores.
No entanto, a inversão do ônus da
prova, prevista neste dispositivo, tem como pressuposto e limite a real
possibilidade de o réu (banco) fazer prova de que os fatos alegados pelo autor
não são verdadeiros.
Se não houver possibilidade de o
banco provar que os fatos alegados pelo autor não são verdadeiros, não
estaremos mais falando em simples inversão do ônus da prova. Estaremos falando
em pura e simples presunção absoluta (jure et de jure) de veracidade dos fatos
alegados pelo autor. Presunção absoluta porque o réu não teria como,
efetivamente, comprovar a falsidade ou inexatidão dos fatos alegados pelo
consumidor.
Assim, por exemplo, é possível a
inversão do ônus da prova no caso de consumidor que compre um eletrodoméstico
e, poucos dias depois, ele não mais funcione. Caso seja verossimilhante a
alegação do consumidor, a critério do juízo, poderá ser invertido o ônus da
prova, de forma que o autor não terá que provar que comprou a geladeira já com
defeito. Presumir-se-á este defeito, detectado pouco tempo após a compra, e o
fornecedor deverá comprovar que o defeito não é de fábrica, mas causado pelo
mau uso feito pelo consumidor. Esta prova será possível por meio de perícia,
cujo ônus de requerer e custear passará a ser do fornecedor.
No caso dos autos, contudo, o Banco
não tem como recuperar os arquivos das filmagens para submetê-las à perícia e
comprovar não ser verdadeira a alegação do autor, na sua inicial, de que não
foi ele ou pessoa por ele autorizada que efetuou o saque. Como não há
dispositivo legal algum que obrigue a instituição financeira a manter tais
registros por tempo indeterminado, o Banco não tem como provar a autoria do
saque e não seria correto incumbir o réu de demonstrar fatos que ele
objetivamente não tem como demonstrar, fatos estes constitutivos do direito
alegado pelo autor.
Se apenas isto não bastasse, as
Turmas de Direito Privado do STJ têm decidido que cabe ao correntista, em caso
de eventuais saques irregulares na conta, feitos com o cartão e a senha
cadastrada pelo consumidor, a prova de que o banco agiu com negligência,
imperícia ou imprudência na entrega do dinheiro.
Para o STJ, basta à instituição
financeira comprovar que o saque foi feito com o cartão do cliente e a
respectiva senha, não tendo que demonstrar que foi ele pessoalmente que efetuou
a retirada:
A responsabilidade da instituição financeira deve ser afastada
quando o evento danoso decorre de transações que, embora contestadas, são
realizadas com a apresentação física do cartão original e mediante uso de senha
pessoal do correntista.
STJ. 3ª Turma. AgInt no REsp 1.855.695/DF, Rel. Min. Nancy
Andrighi, julgado em 24/08/2020.
Em relação ao uso do serviço de conta-corrente fornecido pelas
instituições bancárias, cabe ao correntista cuidar pessoalmente da guarda de
seu cartão magnético e sigilo de sua senha pessoal no momento em que deles faz
uso. Não pode ceder o cartão a quem quer que seja, muito menos fornecer sua
senha a terceiros. Ao agir dessa forma, passa a assumir os riscos de sua
conduta, que contribui, à toda evidência, para que seja vítima de fraudadores e
estelionatários.
STJ. 4ª Turma. AgInt no REsp 1.954.042/DF, Rel. Min. Raul
Araújo, julgado em 30/5/2022.
Deve-se ressaltar, também, que,
mesmo que fosse comprovado que não foi o autor e nem outra pessoa por ele
autorizada que realizou os saques, ainda assim, ressalvada a excepcionalidade
de saques atípicos, não poderia o Banco ser responsabilizado, pois, cabia ao
autor, como correntista, o devido zelo pelo seu cartão e senha bancária de modo
a impedir que terceiros tivessem, de alguma forma, acesso a este. Ao se tornar
cliente de qualquer banco, o correntista assume inteira responsabilidade por
sua senha e pelo cartão magnético.
No caso concreto, não houve
retiradas frequentes e repetitivas da conta do autor em diferentes caixas
eletrônicos, com valores significativos em relação ao saldo, o que poderia
indicar um possível golpe ou clonagem do cartão, situação em que a instituição
financeira teria a obrigação de tomar medidas para evitar a continuação da
fraude. Se não o fizesse, isso implicaria uma falha no serviço.
Desse modo, na situação
analisada, não é possível responsabilizar o banco por saques realizados ao
longo de quatro meses na mesma agência bancária, usando o cartão físico com
chip do autor e sua senha pessoal.
Em suma:
Não se pode responsabilizar instituição financeira em
caso de transações realizadas mediante a apresentação de cartão físico com chip
e a senha pessoal do correntista, sem indícios de fraude.
STJ. 4ª
Turma. REsp 1.898.812-SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 15/8/2023
(Info 784).
DOD Plus –
cuidado com um julgado no qual foi feito distinguishing
O banco responde civilmente
quando descumpre o dever de segurança que lhe cabe e não obsta a realização de
compras com cartão de crédito em estabelecimento comercial suspeito, com perfil
de compra de consumidor que discrepa das aquisições fraudulentas efetivadas
O STJ possui o entendimento no sentido de que a responsabilidade
da instituição financeira fica afastada se o evento danoso decorre de
transações realizadas com a apresentação física do cartão original e mediante
uso de senha pessoal do correntista.
Porém, no caso, apesar de o consumidor ter entregue seus cartões
a motoboy após telefonema de um suposto funcionário da instituição financeira,
o qual detinha conhecimento dos dados pessoais e das informações referentes às
suas últimas transações, não há como afastar a responsabilidade da instituição
financeira.
Há evidente descumprimento do dever de segurança do banco ao não
obstar a realização de compras por cartão de crédito em estabelecimento
comercial objeto de suspeita em transações anteriores, na mesma data, e que
discrepam do perfil de gastos do consumidor nos meses anteriores.
Por fim, não se pode olvidar que a vulnerabilidade do sistema
bancário, que admite operações totalmente atípicas em relação ao padrão de
consumo dos consumidores, viola o dever de segurança que cabe às instituições
financeiras e, por conseguinte, cristaliza a falha na prestação de serviço.
STJ. 4ª Turma. AgInt no AREsp 1.728.279-SP, Rel. Min. Raul
Araújo, julgado em 8/5/2023 (Info 776).