Imagine a seguinte situação
hipotética:
Regina foi agredida por seu filho
Carlos.
Ela procurou a Delegacia de
Polícia.
O juízo plantonista, a partir de
representação da autoridade policial, com base nos incisos II e III do art. 22
da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), decretou:
• o afastamento de Carlos da
residência da vítima;
• a proibição de que ele se
aproxime de Regina a uma distância inferior a 500m; e
• a proibição de que mantenha com ela
qualquer tipo de contato.
Art. 22. Constatada a prática de
violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz
poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as
seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
(...)
II - afastamento do lar,
domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III - proibição de determinadas
condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de
seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre
estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus
familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) frequentação de determinados
lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
Passados alguns meses, Regina
ficou com pena do filho. Assim, a despeito das medidas proibitivas impostas,
ela mesmo entrou em contato com o filho. Ao descobrir que ele estava desabrigado,
Regina saiu de sua própria residência para o acusado ir morar lá, tendo ela se mudado
para a casa da filha, que fica no mesmo lote.
Alguns dias depois, Carlos foi
até a casa de sua irmã, local onde sua mãe estava, para comer um prato de
comida. Ao terminar o prato oferecido, Carlos exigiu mais comida, porém não
havia, fazendo com que ele ficasse transtornado. A irmã o expulsou do local e
fechou a casa, mas o denunciado passou a empurrar a porta para entrar. A mãe do
agressor pegou cabo de vassoura para amedrontá-lo, na tentativa de fazê-lo sair
do local. A neta da vítima chamou a polícia e Carlos foi novamente preso.
Em juízo, a vítima relatou que
consentiu com a aproximação do réu, tanto que cedeu a casa para ele morar.
Carlos, que já respondia pelo delito de lesão corporal, foi
denunciado pelo crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência (art.
24-A da Lei nº 11.340/2006):
Art. 24-A. Descumprir decisão
judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta
Lei:
Pena – detenção, de 3 (três)
meses a 2 (dois) anos.
§ 1º A
configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que
deferiu as medidas.
§ 2º Na
hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder
fiança.
§ 3º O
disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.
A defesa pugnou pela sua absolvição,
nos termos do art. 386, III, do CPP, alegando que houve consentimento da
ofendida para a aproximação do filho.
O juízo condenou o réu sustentando
que o consentimento da vítima na aproximação do agressor não afasta a
tipicidade do fato. Para o magistrado, no “crime de descumprimento de medida
protetiva de urgência, o bem jurídico tutelado é a administração da justiça e,
apenas indiretamente, a proteção da vítima. Trata-se, portanto, de bem
indisponível. O consentimento da vítima na aproximação do agressor não tem o
condão de afastar a tipicidade do fato”.
A condenação foi mantida pelo
Tribunal de Justiça.
Inconformada, a defesa interpôs
recurso especial.
Para o STJ, no caso
concreto acima narrado, houve o crime do art. 24-A da Lei nº 11.340/2006?
NÃO.
O entendimento adotado pelas
instâncias de origem não encontra amparo na jurisprudência do STJ.
Para o STJ, o consentimento da
vítima que aceita a aproximação do réu afasta eventual ameaça ou lesão ao bem
jurídico tutelado pelo crime capitulado no art. 24-A da Lei nº 11.340/2006.
No caso concreto, é incontroverso
que a própria vítima permitiu a aproximação do réu, autorizando-o a residir com
ela no mesmo lote residencial, em casas distintas. Com isso, fica evidente a
atipicidade da conduta.
Conforme já decidiu o STJ:
Ainda que efetivamente tenha o acusado violado cautelar de não
aproximação da vítima, isto se deu com a autorização dela, de modo que não se
verifica efetiva lesão e falta inclusive ao fato dolo de desobediência.
STJ. 6ª Turma. HC
521.622/SC, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe de 22/11/2019.
Em suma:
STJ. 5ª
Turma. AgRg no AREsp 2.330.912-DF, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em
22/8/2023 (Info 785).