Dizer o Direito

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Havendo solução de continuidade entre os mandatos, não exercidos de maneira ininterrupta, cessa o foro por prerrogativa de função referente a atos praticados durante o primeiro mandato

Imagine a seguinte situação adaptada:

Em 2013, foi instaurado inquérito perante o Supremo Tribunal Federal em desfavor de João, que exercia, na época, o cargo de Deputado Federal (legislaturas de 2007/2011 e 2011/2015).

O inquérito investigava o suposto crime de concussão (art. 316 do CP) considerando que havia suspeitas de que o então Deputado Federal teria cobrado (exigido) o percentual de 5% da remuneração dos servidores comissionados que trabalhavam em seu gabinete na Câmara dos Deputados durante as legislaturas de 2007/2011 e 2011/2015, em troca da manutenção dos cargos ocupados. Trata-se da prática conhecida como “rachadinha”.

Em 2015, o então investigado renunciou ao mandato de Deputado Federal para assumir o cargo de Vice-Governador, razão pela qual o STF declinou da sua competência para o juízo de 1ª instância considerando que não havia mais o foro por prerrogativa de função perante o Supremo.

Sobre isso, vale a pena relembrarmos que:

O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.

Assim, mesmo que o crime tenha sido cometido durante o mandato de Deputado Federal ou Senador, se o investigado/réu deixar de ocupar o cargo antes de a instrução terminar cessa a competência do STF e o processo deve ser remetido para a 1ª instância ou para o Tribunal competente para julgá-lo.

STF. Plenário. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 03/05/2018 (Info 900).

 

Desse modo, a ação penal envolvendo João foi remetida para a Seção Judiciária do Distrito Federal e os autos foram distribuídos ao juízo da 15ª Vara Federal/SJDF.

Antes de a ação penal ser julgada pelo juízo da 15ª Vara Federal, o acusado foi eleito e diplomado Senador da República para a legislatura de 2019/2027.

Com isso, a defesa pleiteou que a ação penal fosse novamente remetida para o STF alegando foro por prerrogativa de função.

O juízo da 15ª Vara Federal/SJDF indeferiu o pedido.

Na sequência, a defesa impetrou habeas corpus perante o TRF da 1ª Região.

O TRF da 1ª Região denegou a ordem.

A defesa interpôs recurso ordinário dirigido ao STJ, nos termos do art. 105, II, “a”, da CF/88:

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

(...)

II - julgar, em recurso ordinário:

a) os habeas corpus decididos em única ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão for denegatória;

(...)

 

João sustentou que “embora tenha ocupado o cargo de Vice-Governador entre os mandatos de Deputado Federal e Senador da República, o fato é que jamais deixou de ocupar cargos eletivos, não havendo interregno entre os mandatos, sendo certo, também, que há pertinência objetiva entre o cargo de parlamentar e o objeto da ação penal”.

 

Os argumentos de João foram acolhidos pelo STJ?

NÃO.

De acordo com a jurisprudência do STF e do STJ:

Na hipótese em que o delito seja praticado em um mandato e o réu seja reeleito para o mesmo cargo, a continuidade do foro por prerrogativa de função restringe-se às hipóteses em que os diferentes mandatos sejam exercidos em ordem sequencial e ininterrupta (Inq 4.127, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, DJe 23/11/2018).

STJ. 5ª Turma. RHC 111.781/CE, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 01/7/2019.

 

Ademais, o STF tem entendido que o foro por prerrogativa de função alcança os chamados “mandatos cruzados” de parlamentar federal. Assim, prorroga-se a competência originária do STF, por excepcionalidade, quando o parlamentar, sem solução de continuidade, estiver investido em novo mandato federal, mas em casa legislativa diversa daquela que originariamente deu causa à fixação da competência originária (art. 102, I, “b”, da CF/88). É o caso de um Deputado Federal ser eleito para o cargo de Senador ou vice-versa. Porém, se houve a interrupção ou o término do mandato parlamentar federal, sem que o acusado tenha sido novamente eleito para os cargos de Deputado Federal ou Senador, haverá obrigatoriamente o declínio da competência para a 1ª instância.

No caso, constata-se que houve a quebra da necessária e indispensável continuidade do exercício do mandato político para fins de prorrogação da competência, conforme é exigido pelo STF:

Havendo solução de continuidade entre os mandatos, que não foram exercidos pelo réu de maneira ininterrupta, cessa o foro por prerrogativa de função referente a atos praticados durante o primeiro deles. Praticado o crime em um mandato e existindo reeleição ao mesmo cargo, verifica-se a prorrogação do foro por prerrogativa de função acaso os diferentes mandatos sejam exercidos em ordem sequencial e ininterrupta.

STJ. 3ª Seção. HC 529.095/SC, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe 24/11/2020.

 

Tendo havido interrupção do mandato eletivo do paciente, afastada está a regra do foro privilegiado, pois proteção destinada aos fatos relacionados ao cargo atual.

STJ. 6ª Turma. HC 560.128/SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe de 25/5/2020.

 

Portanto, nos termos da jurisprudência formada nas Cortes Superiores, considerando que houve solução de continuidade no exercício dos cargos que poderiam atrair o foro por prerrogativa de função para o STF, mostra-se acertada a decisão do TRF1 que não aceitou remeter o feito para julgamento perante a Suprema Corte.

 

Em suma:

 

DOD Plus – revise julgados correlatos

A prorrogação do foro por prerrogativa de função só ocorre se houve reeleição, não se aplicando em caso de eleição para um novo mandato após o agente ter ficado sem ocupar função pública

Prefeito cometeu o crime durante o exercício do mandato e o delito está relacionado com as suas funções: a competência para julgá-lo será, em regra, do Tribunal de Justiça.

Se esse Prefeito, antes de o processo terminar, for reeleito para um segundo mandato (consecutivo e ininterrupto), neste caso, o Tribunal de Justiça continuará sendo competente para julgá-lo.

Por outro lado, se o agente deixar o cargo de Prefeito e, quatro anos mais tarde, for eleito novamente Prefeito do mesmo Município, nesta situação a competência para julgar o crime será do juízo de 1ª instância. A prorrogação do foro por prerrogativa de função só ocorre se houve reeleição, não se aplicando em caso de eleição para um novo mandato após o agente ter ficado sem ocupar função pública. Ex: em 2011, Pedro, Prefeito, em seu primeiro mandato, cometeu o crime de corrupção passiva. Pedro foi denunciado e passou a responder um processo penal no TJ. Em 2012, Pedro disputou a campanha eleitoral buscando a reeleição. Contudo, ele perdeu. Com isso, Pedro ficou sem mandato eletivo. Vale esclarecer que o processo continuou tramitando normalmente no TJ. Em 2016, Pedro concorreu novamente ao cargo de Prefeito do mesmo Município, tendo sido eleito. Em 01/01/2017, João assumiu como Prefeito por força dessa nova eleição. O processo de Pedro não será julgado pelo TJ, mas sim pelo juízo de 1ª instância.

STF. 1ª Turma. RE 1185838/SP, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 14/5/2019 (Info 940).

 

STJ não é competente para julgar crime praticado por Governador no exercício do mandato se o agente deixou o cargo e atualmente voltou a ser Governador por força de uma nova eleição

O STJ é incompetente para julgar crime praticado durante mandato anterior de Governador, ainda que atualmente ocupe referido cargo por força de nova eleição.

Ex: João praticou o crime em 2010, quando era Governador; em 2011 foi eleito Senador; em 2019 assumiu novamente como Governador; esse crime praticado em 2010 será julgado em 1ª instância (e não pelo STJ).

Como o foro por prerrogativa de função exige contemporaneidade e pertinência temática entre os fatos em apuração e o exercício da função pública, o término de um determinado mandato acarreta, por si só, a cessação do foro por prerrogativa de função em relação ao ato praticado nesse intervalo.

STJ. Corte Especial. QO na APn 874-DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15/05/2019 (Info 649).


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