sexta-feira, 20 de outubro de 2023
Caso Vogue x Vogue Square
NOÇÕES GERAIS SOBRE MARCA E MARCA DE ALTO RENOME
Marca
Marca é um sinal distinguível
visualmente, por meio do qual os produtos ou serviços são identificados e assim
podem ser discernidos dos demais.
“A marca, cuja propriedade é consagrada
pelo art. 5º, XXIX da CF, se constitui um sinal distintivo de percepção visual que
individualiza produtos e/ou serviços. O seu registro confere ao titular o direito
de usar, com certa exclusividade, uma expressão ou símbolo.” (Min. Nancy
Andrighi).
Vale destacar, mais uma vez, que
“marca”, segundo a legislação brasileira, é obrigatoriamente um sinal
identificável pela visão, ou seja, não existe “marca sonora” ou “marca
olfativa”. Justamente por isso, o famoso som “plim plim” que a rede Globo de televisão utiliza não pode ser
registrado como marca no Brasil. É comum a seguinte afirmação: “marca no Brasil
é somente aquilo que a pessoa pode ver”.
Importância
A marca é extremamente importante para
a atividade empresarial, considerando que, muitas vezes, ela é decisiva no
momento em que o consumidor irá optar por escolher entre um ou outro produto ou
serviço. Justamente por isso são desenvolvidas inúmeras ações de marketing para
divulgar e tornar conhecida e respeitada a marca.
“A sua proteção, para além de garantir direitos
individuais, salvaguarda interesses sociais, na medida em que auxilia na melhor
aferição da origem do produto e/ou serviço, minimizando erros, dúvidas e confusões
entre usuários.” (Min. Nancy Andrighi).
Proteção
da marca
Por ser importante à atividade
empresarial, a marca é protegida pela legislação.
A Lei nº
9.279/96 afirma que a marca pode ser registrada para que não seja utilizada indevidamente
em outros produtos ou serviços:
Art. 122. São suscetíveis de registro
como marca os sinais distintivos visualmente perceptíveis, não compreendidos
nas proibições legais.
Art. 129. A propriedade da marca
adquire-se pelo registro validamente expedido, conforme as disposições desta
Lei, sendo assegurado ao titular seu uso exclusivo em todo o território
nacional, observado quanto às marcas coletivas e de certificação o disposto nos
arts. 147 e 148.
Onde
é realizado esse registro?
No Instituto Nacional de Propriedade
Intelectual (INPI). Trata-se de uma autarquia federal que possui a atribuição
de conceder privilégios e garantias aos inventores e criadores em âmbito
nacional.
Os direitos de propriedade industrial
são concedidos, no Brasil, pelo INPI.
Princípio
da especialidade ou especificidade
Depois do registro no INPI, apenas o
titular desta marca poderá utilizá-la em todo o território nacional.
Contudo, em regra, no Brasil, a
proteção da marca impede que outras pessoas utilizem-na apenas em produtos ou
serviços similares, podendo a mesma marca ser usada por terceiros em produtos
ou serviços distintos.
Assim, a proteção da marca se submete,
portanto, ao princípio da especialidade, ou seja, a marca registrada somente é
protegida no ramo de atividade que o seu titular atua.
“Pelo princípio da especialidade, o registro
da marca confere exclusividade de uso apenas no âmbito do mercado relevante para
o ramo de atividade ao qual pertence o seu titular.” (Min. Nancy Andrighi).
Nesse sentido:
(...) Segundo o princípio da especialidade das marcas, não há
colidência entre os signos semelhantes ou até mesmo idênticos, se os produtos
que distinguem são diferentes. (...)
(REsp 1079344/RJ, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma,
julgado em 21/06/2012)
(...) A marca é um sinal distintivo, visualmente perceptível,
que visa a identificar um produto ou serviço no mercado consumidor. Para se
obter o registro da marca e, consequentemente, sua propriedade, é necessária a
observância de certos requisitos como a novidade relativa, distinguibilidade,
veracidade e licitude, de molde a evitar que o consumidor seja induzido a
engano, ante a existência de repetições ou imitações de signos protegidos.
2. Produtos ou serviços diferentes podem apresentar marcas
semelhantes, dado que incide, no direito marcário, em regra, o princípio da
especialidade; ou seja, a proteção da marca apenas é assegurada no âmbito das
atividades do registro, ressalvada a hipótese de marca notória. (...)
(REsp 862.067/RJ, Rel. Min. Vasco Della Giustina (Desembargador
convocado do TJ/RS), Terceira Turma, julgado em 26/04/2011)
Exceção
ao princípio da especialidade (“extravasamento do símbolo”)
Existe
uma exceção ao princípio da especialidade. Trata-se do caso da marca de “alto renome”, que tem proteção em
todos os ramos de atividade. Diz a Lei:
Art. 125. À marca registrada no Brasil
considerada de alto renome será assegurada proteção especial, em todos os ramos
de atividade.
A
Resolução n.° 121/05 do INPI, em seu art.
2º, fornece um conceito para marca de alto renome:
“Considera-se de alto renome a marca
que goza de uma autoridade incontestável, de um conhecimento e prestígio
diferidos, resultantes da sua tradição e qualificação no mercado e da qualidade
e confiança que inspira, vinculadas, essencialmente, à boa imagem dos produtos
ou serviços a que se aplica, exercendo um acentuado magnetismo, uma
extraordinária força atrativa sobre o público em geral, indistintamente,
elevando-se sobre os diferentes mercados e transcendendo a função a que se
prestava primitivamente, projetando-se apta a atrair clientela pela sua simples
presença.”
Exemplos de marcas já
declaradas pelo INPI como sendo de alto renome: Pirelli, Kibon, Moça, Chica
Bon, Banco do Brasil, Diamante Negro, Nike, Sadia, Natura.
EXPLICAÇÃO DO JULGADO
A situação concreta, com
adaptações, foi a seguinte:
Advance Magazine Publishers Inc. e
Condé Nast Brasil Holding Ltda. são titulares da marca VOGUE, reconhecida
mundialmente.
A Vogue, criada em 1892, iniciou-se
como uma revista de moda e comportamento, mas com o passar do tempo transcendeu
o seu ramo e alcançou inúmeros serviços e produtos, em sua maioria relacionados
ao mercado de luxo, inclusive com parceiros licenciados e autorizados que
tenham interesse em associar seus produtos com a marca Vogue, dentre eles a
revista Vogue Casa.
Em 2017, as donas da marca VOGUE foram
surpreendidas ao tomarem conhecimento de que estava sendo lançado, na Barra da
Tijuca, Rio de Janeiro, um centro comercial (shopping center) intitulado de Vogue
Square Life Experience.
As empresas titulares da marca Vogue ajuizaram,
então, ação inibitória de infração de marca registrada contra as empresas
responsáveis pelo empreendimento.
Na ação, as autoras alegaram que o
centro comercial estaria se promovendo como sendo um complexo de serviços de
luxo, com restaurantes sofisticados e lojas de grife, confundindo os
consumidores, uma vez que o empreendimento é de segmento relacionado aos mesmos
desenvolvidos pela VOGUE nesses cem anos e busca atingir o mesmo público-alvo.
Juntaram laudo técnico emitido por
especialistas no sentido de que o consumidor associará a Vogue Square à
marca Vogue, permitindo a captação de clientela denominada de “parasitária”
ou “por carona” e auferir enriquecimento
indevido com esforço alheio.
Citadas, as requeridas apresentaram
contestação, alegando, em resumo, que se trata de um empreendimento
luxuoso de 33 mil metros quadrados em um complexo que reúne shopping,
escritórios, saúde, hotel, centro de convenções e de eventos, cuja divulgação
foi realizada sem qualquer associação à marca Vogue e a sua revista.
Afirmaram que o empreendimento Vogue
Square Experience é voltado a grupo seleto que sabe distinguir os produtos
e serviços, de modo que não há qualquer possibilidade de confusão.
As rés aduziram ainda que a proteção expressa no art. 128, §
1º, da LPI, abrange apenas produtos e serviços que estejam incluídos na
atividade que exercem, e que no caso não há afinidade entre os produtos e
serviços oferecidos pelas partes, sendo que os segmentos de atuação são
completamente distintos, o que afasta a possibilidade de erro, confusão ou
associação indevida pelo consumidor:
Art. 128. Podem requerer registro
de marca as pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou de direito
privado.
§ 1º As pessoas de direito
privado só podem requerer registro de marca relativo à atividade que exerçam
efetiva e licitamente, de modo direto ou através de empresas que controlem
direta ou indiretamente, declarando, no próprio requerimento, esta condição,
sob as penas da lei.
A sentença foi de improcedência
fundamentada no princípio da especialidade da proteção da marca, ou seja, no
sentido de que a exclusividade de um segmento se esgota no gênero das
atividades que ele designa, sendo que para atividades distintas não há
possibilidade de engano do consumidor, que não confundirá um empreendimento
imobiliário com o nome de uma revista.
Irresignadas, as autoras apelaram, mas
a sentença foi mantida pelo TJ/RJ.
Ainda inconformadas, as autoras
interpuseram recurso especial insistindo na tese de que houve uso indevido da
marca Vogue, haja vista a confusão da associação da marca com o empreendimento
Imobiliário Vogue Square.
O STJ deu provimento ao recurso
especial das autoras?
NÃO. A 3ª Turma do STJ, por maioria, negou
provimento ao recurso especial.
Quando o processo se iniciou, a
marca Vogue, a despeito de ser famosa, não se encontrava entre as marcas
classificadas como sendo de “alto renome no Brasil”. Portanto, não se
beneficiava da proteção daí decorrente, mormente quanto à exceção ao princípio
da especialidade.
Antes do julgamento do recurso
especial, as autoras informaram a existência de fato novo, qual seja, a decisão
administrativa proferida pelo INPI reconhecendo formalmente a marca Vogue como
de alto renome, estendendo a proteção de sua marca a todos os ramos de
atividade.
Mesmo com essa informação, o STJ
entendeu que o pedido deveria ser julgado improcedente.
Para o STJ, o fato de a marca
Vogue ser uma marca de alto renome não tem o condão de interferir no julgamento
do presente caso, porque mesmo que o princípio da especialidade não se aplique
às marcas de alto renome, a proteção legal não abrange nomes de edifícios e
empreendimentos imobiliários, pois não gozam de exclusividade.
É comum que empreendimentos
imobiliários recebam idêntica denominação e, por isso, proliferem as homonímias
sem que um condomínio possa impedir o outro de receber idêntica denominação, de
forma que seus nomes, na verdade, não qualificam produtos ou serviços, apenas
conferem uma denominação para individualização do bem.
Como bem destacado no voto
proferido pelo Ministro Moura Ribeiro, no REsp 1.804.960/SP:
A marca é parte do patrimônio de uma empresa, é designativa de
um produto ou serviço. Sua função consiste em impedir a concorrência
parasitária e a usurpação de clientela do seu titular, bem como proteger o
renome que o signo distintivo mantém perante o público consumidor.
Os nomes atribuídos aos edifícios e empreendimentos imobiliários
não gozam de exclusividade, sendo comum receberem idêntica denominação e, por
isso, proliferam as homonímias sem que um condomínio possa impedir o outro de
receber idêntica denominação.
Estes nomes, portanto, não qualificam produtos ou serviços,
apenas conferem uma denominação para o fim de individualizar o bem.
STJ. 3ª Turma. REsp 1804960-SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado
em 24/09/2019 (Info 657).
Assim, a proteção à marca,
principalmente a individualização de um produto e serviço para exploração de
determinada atividade econômica, não se estende à denominação atribuída a um
bem para identificar objetos singulares, sem nenhuma criatividade ou capacidade
inventiva.
Diante disso, vê-se que o
empreendimento imobiliário Vogue Square é constituído por escritórios, lojas,
hotel, academia e centro de convenções, de modo que não se vislumbra a
possibilidade de indução dos consumidores ao erro, da caracterização de
concorrência parasitária ou do ofuscamento da marca da autora, tratando-se
apenas da individualização de um empreendimento imobiliário.
Saliente-se que os
estabelecimentos ali situados conservam seus nomes originais, sem nenhuma
vinculação de produtos ou serviços à marca Vogue, havendo, na verdade, uma
busca pela clientela de cada um dos comerciantes ali situados de acordo com
suas próprias expertises, sem nenhuma associação à referida marca, ou seja, os
frequentadores do empreendimento lá não vão com o objetivo de consumir nenhum
produto ou serviço relacionado à Vogue, mas, sim, aqueles prestados
separadamente por cada um dos fornecedores que ali se encontram, com suas
particularidades, marcas próprias e segmentos específicos.
A diluição da referida marca
decorre do uso de sinal distintivo por terceiros fora do campo de especialidade
de determinadas marcas de grande relevância ou famosas (mas que não foram
reconhecidas como de alto renome pelo INPI), de maneira que seu valor
informacional deixa de ser suficientemente significativo, tornando o signo cada
vez menos exclusivo.
Em suma:
A proteção da marca, seja ela de alto renome ou não,
busca evitar a confusão ou a associação de uma marca registrada a uma outra,
sendo imprescindível que, para que exista a violação ao direito marcário, haja
confusão no público consumidor ou associação errônea em prejuízo do seu
titular.
STJ. 3ª
Turma. REsp 1.874.635-RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 8/8/2023
(Info 784).
Vale ressaltar que o STJ já tinha um julgado semelhante:
O registro de uma expressão como
marca, ainda que de alto renome, não afasta a possibilidade de utilizá-la no
nome de um empreendimento imobiliário
O registro de uma expressão como marca, ainda que de alto
renome, não impede que essa mesma expressão seja utilizada como nome de um
edifício. Dar nome a um edifício não é uma atividade empresarial, mas sim um
ato da vida civil.
A exclusividade conferida pelo direito marcário se limita às
atividades empresariais, sem atingir os atos da vida civil.
Caso concreto: foi lançado um empreendimento imobiliário
denominado de “Natura Recreio”. Apesar de a Natura marca de cosméticos, ser
considerada uma marca de alto renome, ela não conseguiu impedir o uso dessa
expressão no nome deste condomínio.
STJ. 3ª Turma. REsp 1804960-SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado
em 24/09/2019 (Info 657).