domingo, 1 de outubro de 2023
A plenitude de defesa exercida no Tribunal do Júri não pode ser manejada pelo advogado como salvo conduto para a prática de ilícitos
Imagine a seguinte situação adaptada:
Dois policiais militares foram
submetidos a julgamento no Tribunal do Júri, acusados da prática de homicídio
consumado contra duas vítimas.
Durante os debates, Carlos, na qualidade de advogado dos
policiais, proferiu as seguintes palavras (transcrição literal da denúncia
do MP/SP):
“Comenta
sobre a hipocrisia da Justiça brasileira e que o Presidente mudará a situação
do país. Acrescenta que tudo tem que ser respeitado, que não tem nada contra
opções sexuais das pessoas, mas a família é primordial e precisa ser
preservada. Precisa haver limites... Se dirige à Promotora Dra. ‘Fernanda’
dizendo que não sabe da sua situação, se é casada, que vê uma aliança na mão
esquerda, que não sabe se tem filhos ou não...”.
“O
pessoal fala muito da Rússia... eu sô fã do Putin. Sô fã do Putin... lá não tem
boi não. Lá não tem passeata gay Rússia não. E os comunistas adoram... né... os
comunistas... a-do-ram... Vai sê gay lá na Rússia pá vê o que acontece... o
Putin. Eu acho que a... a... a... a democracia da Rússia... é a democracia que
eu gosto...”.
“Nós
precisamo de amor à pá-tria. Amá o Brasil... fazê com que a família cresça
novamente... papai...mamãe... filho usando azul... filha usando cor-de-rosa...
depois se o filho quisé muda pra cor-de-rosa o problema é dele... se a mulher
quisé muda depois pá azul o problema é dela... mas não influencia a criança...
é isso que eu sô contra. Eu acho que todo mundo tem a opção de sê o que bem
entende ... na vida... e nóis temos que respeitá... mas uma criança você não
pode influenciá... Papai... mamãe... uma família... uma família... tradicional.
Hoje parece que é pecado você ter uma família tradicional.”
“Não
sô contra segmento LGBT em hipótese alguma... não sô contra gay... não sô
contra homossexual... não sô contra nada... cada um... é o que qué da sua
vida... cada um respeitando seu espaço”.
“De
repente eu vejo aí uma comunidade... que faz um filme dizendo que Jesus é
homossexual. Hipócritas. Querem ofendêlo.... e depois acham ruim quando proíbem
as suas manifestações ... manifestações LGBTs na Paulista onde mulheres enfiam
o crucifixo na vagina pode. Não pode... mas pra essa comunidade pode...porque
não respeitam a nós outros que respeitamos. Eles querem respeito mas não nos
dão os respeitos porque não... não... não... respeitam a nossa crença. Enfiá
crucifixo na vagina... em plena Avenida Paulista... ou no ânus como fizeram.
Você não ganha respeito... Não sou contra... quem quer que seja... mas me
respeitem que eu te respeito. A coisa é recíproca. Quando não há reciprocidade
ninguém ganha... e vira uma contenda... e vira uma contenda... e esse pessoal
ligado a esses movimentos... são totalmente contra policiais... totalmente
contra... passando a mão na cabeça de bandido... achando que bandido é
bonzinho...me desculpem.. me desculpem... dizer aqui que... tráfico é
profissão? Pra mim foi um basta”.
“Eu
digo assim... as vezes brincando com os colegas... pessoal... vô virá
homossexual... depois de véio... 65 anos... pessoal brinca comigo... fala...
não ... não .. o importante é o prazer. O importante é o prazer da pessoa. Não
sô contra... nunca foi contra isso...”
“Aí
vai a mulherada lá na Av. Paulista enfiá crucifixo com a imagem de Jesus na
vagina? Isso é normal? Vão lá os gay enfiá... o crucifixo no ânus... isso é
normal? Eu tenho que achar isso normal? Será que ser hétero hoje é pecado? Hoje
parece que ser hétero é pecado. Não tem pecado... seja hétero... seja
homossexual... é tudo normal na minha opinião... só não se pode forçá a
criança... como eu falei.. papai e mamãe... criança homem azul... mulher
cor-de-rosa... depois se quiserem mudar as cores... quando crescerem... que
mudem... vamos respeitá-los. Uma vez colocaram pra mim... se o seu filho dissé
pra você que ele é homossexual? ... ah eu digo... meu filho... fica em casa
(trecho ininteligível)... mas mantém a sua conduta...manter a sua postura...
minha filha a mesma coisa (trecho ininteligível)... pode não tem problema
nenhum...mantém a postura... mantém a conduta... só isso”.
Além disso, de acordo com a
denúncia, Carlos ofendeu a dignidade e o decoro da Promotora de Justiça que
atuava perante o Tribunal do Júri, cuja orientação sexual é pública e notória,
por todos conhecida. Fez a menção à aliança que a vítima utilizava em um dos
dedos, comentando que acreditava que a família deveria ser preservada, com
intuito claro de ofender diretamente a Promotora de Justiça, a qual faz parte
da comunidade vulnerável acima descrita.
Carlos foi denunciado pelo Ministério Público como incurso
no art. 20, caput, da Lei nº 7.716/89 e no art. 140, § 3º, do Código
Penal, em concurso material de crimes:
Art. 20. Praticar, induzir ou
incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos
e multa.
Art. 140 (...)
§ 3º Se a injúria consiste na
utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou
com deficiência:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 3
(três) anos, e multa.
A denúncia foi recebida.
A defesa de Carlos impetrou habeas corpus. Sustentou, dentre
outras teses, a atipicidade da injúria imputada, considerando que o paciente
teria proferido a injúria quando exercia a sua função no Plenário do Júri e
que, como advogado, tinha imunidade profissional, não constituindo injúria ou
difamação puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua
atividade, em juízo ou fora dele, conforme o art. 7º, § 2º, do Estatuto da OAB,
vigente à época dos fatos:
Art. 7º (...)
§ 2º O advogado tem imunidade
profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer
manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora
dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que
cometer. (Revogado pela Lei nº 14.365, de 2022)
Requereu a concessão de liminar
para que fosse suspensa a ação penal e, ao final, pleiteou pela concessão da
ordem para que fosse determinado o trancamento da ação penal.
A ordem foi denegada pelo TJ/SP.
A defesa interpôs recurso
ordinário.
O STJ concordou com os
argumentos da defesa? Foi dado provimento ao recurso?
NÃO.
Cinge-se a controvérsia a aferir
se a conduta capitulada, pelo Ministério Público, como injúria preconceituosa
estaria abarcada pela imunidade prevista no art. 7º, § 2º, da Lei nº 8.906/94,
vigente à época dos fatos.
Imunidade não é sinônimo de
privilégio. O fim teleológico de toda imunidade penal é a salvaguarda da
própria função desempenhada pelo agente, que, por ser dotada de relevante
interesse social - no caso da advocacia, é a própria Constituição da República que
a prevê como indispensável à administração da Justiça - merece proteção
diferenciada, a fim de se evitar embaraços indevidos ao seu pleno exercício.
No entanto, não se pode presumir
que a mesma Constituição que prevê um alargado catálogo de direitos
fundamentais confira plenos poderes para que pessoas com determinados munus
possam descumpri-los em contexto totalmente divorciado da finalidade da norma
que prevê a garantia da imunidade. Desse modo, não parece adequado admitir que,
mesmo no exercício de suas funções, possa um membro da advocacia proferir
discursos de ódio ou ofensas sem nenhuma relação com o caso tratado.
Ofensas eventualmente proferidas
por advogados não serão tipificadas como injúria ou difamação, desde que
relacionadas com a função por estes desempenhadas. Exige-se, portanto,
pertinência entre as palavras injuriosas e a atividade do profissional. Conclusão
diversa implicaria autorização indiscriminada para que o integrante dos quadros
da Ordem dos Advogados do Brasil pudesse ofender a honra de qualquer pessoa,
sem punição alguma, ainda que as palavras ofensivas em nada se relacionem com a
causa de atuação do causídico.
Ademais, embora no Tribunal do
Júri seja assegurada a plenitude de defesa (art. 5º, inciso XXXVIII, alínea “a”,
da Constituição Federal), a referida garantia não pode ser distorcida pelo
advogado como se fosse salvo conduto para a prática de delitos. Essa foi a
compreensão exteriorizada pelo Supremo Tribunal Federal no paradigmático
julgamento em que se vedou a utilização da cruel expressão “legítima defesa da
honra”, sendo ressaltado, expressamente, no respectivo acórdão, que a plenitude
de defesa, própria do Tribunal do Júri, não pode constituir instrumento de
salvaguarda de práticas ilícitas (STF. Plenário. ADPF 779 MC-Ref, Rel. Min. Dias
Toffoli, julgado em 15/3/2021).
Em suma:
STJ. 6ª Turma. RHC 156.955-SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em
2/5/2023 (Info 13 – Edição Extraordinária).