Dizer o Direito

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

A indenização por destruição, perda, avaria ou atraso de carga em transporte aéreo internacional será regida pelos limites da Convenção de Montreal

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR AÉREO INTERNACIONAL POR DANOS MATERIAIS CAUSADOS EM BAGAGENS DE PASSAGEIROS É REGIDA PELA CONVENÇÃO DE MONTREAL

Obs: esse trecho é apenas uma revisão; se estiver segura(o), pode ir diretamente para a explicação do julgado.

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Letícia passou sua lua de mel em Paris.

Ela voltou da França em um voo direto que pousou em Natal (RN).

A viagem dos sonhos acabou se transformando em um pesadelo ao final. Isso porque a mala de Letícia foi extraviada pela companhia aérea, que simplesmente perdeu a bagagem.

Além do transtorno, Letícia sofreu um enorme prejuízo econômico. Na mala, havia duas bolsas de grife francesa e cinco vestidos da última coleção.

Diante disso, Letícia ajuizou ação de indenização contra a “Air Paris” pedindo o pagamento de R$ 100 mil a título de danos materiais, além de reparação por danos morais.

 

Contestação: tese da indenização tarifada (Convenção de Varsóvia)

O valor de todos os produtos que estavam na mala de Letícia era de R$ 100 mil, sendo esta a quantia cobrada por ela da “Air Paris”.

Na contestação, contudo, a companhia aérea alegou que, no transporte internacional, deve vigorar os limites de indenização impostos pela “Convenção de Varsóvia”.

A Convenção de Varsóvia é um tratado internacional, assinado pelo Brasil em 1929 e promulgado por meio do Decreto nº 20.704/31. Posteriormente, ela foi alterada pelo Protocolo Adicional 4, assinado na cidade canadense de Montreal em 1975 (ratificado e promulgado pelo Decreto 2.861/1998). Daí falarmos em Convenções de Varsóvia e de Montreal.

Essas Convenções estipulam valores máximos que o transportador poderá ser obrigado a pagar em caso de responsabilidade civil decorrente de transporte aéreo internacional. Dessa forma, tais Convenções adotam o princípio da indenizabilidade restrita ou tarifada.

Em caso de extravio de bagagens, por exemplo, a Convenção determina que o transportador somente poderá ser obrigado a pagar uma quantia máxima de cerca de R$ 5.940,00.

Assim, em vez de receber R$ 100 mil, Letícia teria que se contentar com o limite máximo de indenização (por volta de R$ R$ 5.940,00).

 

Conflito entre dois diplomas

No presente caso, temos um conflito entre dois diplomas legais:

• O CDC, que garante ao consumidor o princípio da reparação integral do dano;

• As Convenções de Varsóvia e de Montreal, que determinam a indenização tarifada em caso de transporte internacional.

Assim, a antinomia ocorre entre o art. 14 do CDC, que impõe ao fornecedor do serviço o dever de reparar os danos causados, e o art. 22 da Convenção de Varsóvia, que fixa limite máximo para o valor devido pelo transportador, a título de reparação.

 

Qual dos dois diplomas irá prevalecer? Em caso de apuração dos danos materiais decorrentes de extravio de bagagem ocorrido em transporte internacional envolvendo consumidor, aplica-se o CDC ou a indenização tarifada prevista nas Convenções de Varsóvia e de Montreal?

As Convenções internacionais.

Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor.

STF. Plenário. RE 636331/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes e ARE 766618/SP, Rel. Min. Roberto Barroso, julgados em 25/05/2017 (Repercussão Geral – Tema 210) (Info 866).

 

Veja como esse tema já foi muito explorado em provas:

þ (Promotor MP/GO 2019) Nos termos do artigo 178 da Constituição Federal da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor. (certo)

þ (Promotor MP/BA 2018) nos termos do artigo 178 da Constituição da República brasileira, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor. (certo)

ý (Juiz TJ/BA 2019 CEBRASPE) Pela sua especificidade, as normas previstas no CDC têm prevalência em relação àquelas previstas nos tratados internacionais que limitam a responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros pelo desvio de bagagem, especialmente as Convenções de Varsóvia e de Montreal. (errado)

 

O STJ também segue o entendimento do STF:

É possível a limitação, por legislação internacional especial, do direito do passageiro à indenização por danos materiais decorrentes de extravio de bagagem.

STJ. 3ª Turma. REsp 673.048-RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 08/05/2018 (Info 626).

 

Por que prevalecem as Convenções?

Porque a Constituição Federal de 1988 determinou que, em matéria de transporte internacional, deveriam ser aplicadas as normas previstas em tratados internacionais. Veja:

Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade.

 

Assim, em virtude dessa previsão expressa quanto ao transporte internacional, deve-se afastar o Código de Defesa do Consumidor e aplicar o regramento do tratado internacional.

 

Critérios para resolver esta antinomia

A Convenção de Varsóvia, enquanto tratado internacional comum, possui natureza de lei ordinária e, portanto, está no mesmo nível hierárquico que o CDC. Logo, não há diferença de hierarquia entre os diplomas normativos. Diante disso, a solução do conflito envolve a análise dos critérios cronológico e da especialidade.

Em relação ao critério cronológico, os acordos internacionais referidos são mais recentes que o CDC. Isso porque, apesar de o Decreto 20.704 ter sido publicado em 1931, ele sofreu sucessivas modificações posteriores ao CDC.

Além disso, a Convenção de Varsóvia – e os regramentos internacionais que a modificaram – são normas especiais em relação ao CDC, pois disciplinam modalidade especial de contrato, qual seja, o contrato de transporte aéreo internacional de passageiros.

 

Duas importantes observações:

1) as Convenções de Varsóvia e de Montreal regulam apenas o transporte internacional (art. 178 da CF/88). Em caso de transporte nacional, aplica-se o CDC;

2) as Convenções de Varsóvia e de Montreal devem ser aplicadas não apenas na hipótese de extravio de bagagem, mas também em outras questões envolvendo o transporte aéreo internacional;

3) as indenizações por danos morais decorrentes de extravio de bagagem e de atraso de voo internacional não estão submetidas à tarifação prevista na Convenção de Montreal, devendo-se observar, nesses casos, a efetiva reparação do consumidor preceituada pelo CDC (STJ. 3ª Turma. REsp 1.842.066-RS, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 09/06/2020. Info 673).

 

O ENTENDIMENTO ACIMA TAMBÉM SE APLICA NO CASO DE CONTRATO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL DE CARGA (EXPLICAÇÃO DO JULGADO)

Imagine a seguinte situação adaptada:

Mitsui Sumitomo Seguros S.A. é uma seguradora que oferece cobertura securitária no ramo de transporte internacional. Uma de suas clientes é a Toyota do Brasil.

Pelo contrato de seguro de transporte internacional, a seguradora compromete-se a cobrir os riscos das mercadorias pertencentes à empresa segurada ou de responsabilidade dessa ou ainda de terceiro responsável por enviar a carga.

Em agosto de 2018, a Toyota contratou a empresa aérea XXX para transportar uma mercadoria de cinco volumes de equipamentos eletrônicos provenientes do Japão, os quais desembarcariam no aeroporto de Guarulhos (SP).

Durante o transporte, houve o extravio de um dos volumes.

A Toyota comunicou o sinistro à seguradora, que iniciou um procedimento de averiguação para apurar o causador dos danos, tentar localizar a mercadoria extraviada, e em caso de sua impossibilidade, apurar a extensão da cobertura securitária, tudo de acordo com as normas vigentes do setor regulatório.

A mercadoria não foi localizada e a companhia aérea enviou carta admitindo o extravio.

A seguradora pagou à Toyota a indenização consistente no valor da mercadoria extraviada.

Sendo assim, considerando a realização do pagamento, do qual se originou a condição de sub-rogada (CC, art. 786) da seguradora, a Mitsui Sumitomo Seguros S.A. ingressou com ação regressiva de indenização contra a companhia aérea requerendo o ressarcimento do pagamento realizado à sua cliente.

A ré, na contestação, pugnou pela aplicação do Tema 210 do STF e sustentou que, em caso de procedência do pedido, o valor da indenização deveria ficar limitado ao previsto na Convenção de Montreal. Confira o que diz o Tema 210:

Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor.

STF. Plenário. RE 636331/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes e ARE 766618/SP, Rel. Min. Roberto Barroso, julgados em 25/05/2017 (Repercussão Geral – Tema 210) (Info 866).

 

Assiste razão à companhia aérea?

SIM.

A Convenção de Montreal, internalizada no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto-Lei 5.910/2006, aplica-se a todo transporte internacional de pessoas, bagagem ou carga, efetuado em aeronaves, mediante remuneração.

No art. 31, II, a Convenção dispõe que, em caso de avaria, o destinatário deverá apresentar ao transportador um protesto, imediatamente após haver sido notada tal avaria e, o mais tardar, dentro do prazo de sete dias para a bagagem registrada e de quatorze dias para a carga, a partir da data de seu recebimento. Em caso de atraso, o protesto deverá ser feito, o mais tardar, dentro de 21 dias, a contar do dia em que a bagagem ou a carga haja sido posta à sua disposição.

Nos termos da jurisprudência do STJ, a seguradora sub-rogada pode buscar o ressarcimento do que despendeu com a indenização securitária, no mesmo prazo prescricional, termos e limites que assistiam ao segurado quando recebeu a indenização.

Não se adota diretamente a Convenção de Montreal nas relações de seguro, até mesmo porque ela disciplina somente o transporte aéreo internacional. Com efeito, aplica-se a regra geral da relação securitária às peculiaridades da relação originária.

O prazo decadencial previsto no art. 31, II, da Convenção de Montreal não se aplica ao extravio, uma vez que o referido dispositivo trata da necessidade de protesto e do respectivo prazo apenas nos casos de avaria ou atraso no recebimento da mercadoria.

As reclamações relativas às avarias ou às perdas não exigem forma especial para efetivação, que podem ser feitas, inclusive, no próprio conhecimento, bastando sua documentação para ilidir a presunção de regularidade do transporte.

O prazo decadencial para apresentação de protesto não tem eficácia contra a seguradora sub-rogada, todavia, se aquele a quem competia realizar o protesto, na forma e no prazo previstos na Convenção de Montreal, não o fizer, deixará de merecer posterior indenização. Por conseguinte, a seguradora não poderá buscar ressarcimento pelo que eventualmente tenha pago ao segurado.

O termo inicial do prazo prescricional para a seguradora sub-rogada ajuizar ação de regresso é a data em que ela pagou o valor da indenização e o prazo prescricional deve ser aquele aplicável à relação jurídica originária.

O Código Brasileiro Aeronáutico determina, no art. 317, I, que prescreve em dois anos a ação por danos causados a passageiros, bagagem ou carga transportada, a contar da data em que se verificou o dano, da data da chegada ou do dia em que devia chegar a aeronave ao ponto de destino, ou da interrupção do transporte.

Havendo destruição, perda, avaria ou atraso de carga em transporte aéreo internacional, a indenização será limitada a 17 Direitos Especiais de Saque, a menos que tenha sido feita a Declaração Especial de Valor ou tenha ocorrido qualquer uma das demais hipóteses previstas em lei para que seja afastado o limite de responsabilidade previsto no art. 22, III, da Convenção de Montreal.

 

Em suma:


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