A RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR AÉREO
INTERNACIONAL POR DANOS MATERIAIS CAUSADOS EM BAGAGENS DE PASSAGEIROS É REGIDA
PELA CONVENÇÃO DE MONTREAL
Obs: esse trecho é apenas uma revisão; se
estiver segura(o), pode ir diretamente para a explicação do julgado.
Imagine a seguinte situação
hipotética:
Letícia passou sua lua de mel em
Paris.
Ela voltou da França em um voo
direto que pousou em Natal (RN).
A viagem dos sonhos acabou se
transformando em um pesadelo ao final. Isso porque a mala de Letícia foi
extraviada pela companhia aérea, que simplesmente perdeu a bagagem.
Além do transtorno, Letícia
sofreu um enorme prejuízo econômico. Na mala, havia duas bolsas de grife
francesa e cinco vestidos da última coleção.
Diante disso, Letícia ajuizou
ação de indenização contra a “Air Paris” pedindo o pagamento de R$ 100 mil a
título de danos materiais, além de reparação por danos morais.
Contestação: tese da indenização
tarifada (Convenção de Varsóvia)
O valor de todos os produtos que
estavam na mala de Letícia era de R$ 100 mil, sendo esta a quantia cobrada por
ela da “Air Paris”.
Na contestação, contudo, a
companhia aérea alegou que, no transporte internacional, deve vigorar os
limites de indenização impostos pela “Convenção de Varsóvia”.
A Convenção de Varsóvia é um
tratado internacional, assinado pelo Brasil em 1929 e promulgado por meio do Decreto
nº 20.704/31. Posteriormente, ela foi alterada pelo Protocolo Adicional 4,
assinado na cidade canadense de Montreal em 1975 (ratificado e promulgado pelo
Decreto 2.861/1998). Daí falarmos em Convenções de Varsóvia e de Montreal.
Essas Convenções estipulam
valores máximos que o transportador poderá ser obrigado a pagar em caso de
responsabilidade civil decorrente de transporte aéreo internacional. Dessa
forma, tais Convenções adotam o princípio da indenizabilidade restrita ou
tarifada.
Em caso de extravio de bagagens,
por exemplo, a Convenção determina que o transportador somente poderá ser
obrigado a pagar uma quantia máxima de cerca de R$ 5.940,00.
Assim, em vez de receber R$ 100
mil, Letícia teria que se contentar com o limite máximo de indenização (por
volta de R$ R$ 5.940,00).
Conflito entre dois diplomas
No presente caso, temos um
conflito entre dois diplomas legais:
• O CDC, que garante ao
consumidor o princípio da reparação integral do dano;
• As Convenções de Varsóvia e de
Montreal, que determinam a indenização tarifada em caso de transporte
internacional.
Assim, a antinomia ocorre entre o
art. 14 do CDC, que impõe ao fornecedor do serviço o dever de reparar os danos
causados, e o art. 22 da Convenção de Varsóvia, que fixa limite máximo para o
valor devido pelo transportador, a título de reparação.
Qual dos dois diplomas irá
prevalecer? Em caso de apuração dos danos materiais decorrentes de extravio de
bagagem ocorrido em transporte internacional envolvendo consumidor, aplica-se o
CDC ou a indenização tarifada prevista nas Convenções de Varsóvia e de
Montreal?
As Convenções
internacionais.
Nos termos do art. 178 da
Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores
da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as
Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa
do Consumidor.
STF. Plenário. RE 636331/RJ, Rel.
Min. Gilmar Mendes e ARE 766618/SP, Rel. Min. Roberto Barroso, julgados em
25/05/2017 (Repercussão Geral – Tema 210) (Info 866).
Veja como esse tema já foi muito explorado em provas:
þ
(Promotor MP/GO 2019) Nos termos do artigo 178 da Constituição Federal da
República, as normas e os tratados internacionais limitadores da
responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as
Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de
Defesa do Consumidor. (certo)
þ
(Promotor MP/BA 2018) nos termos do artigo 178 da Constituição da República
brasileira, as normas e os tratados internacionais limitadores da
responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as
Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de
Defesa do Consumidor. (certo)
ý
(Juiz TJ/BA 2019 CEBRASPE) Pela sua especificidade, as normas previstas no CDC
têm prevalência em relação àquelas previstas nos tratados internacionais que
limitam a responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros pelo
desvio de bagagem, especialmente as Convenções de Varsóvia e de Montreal.
(errado)
O STJ também segue o entendimento
do STF:
É possível a limitação, por legislação internacional especial,
do direito do passageiro à indenização por danos materiais decorrentes de
extravio de bagagem.
STJ. 3ª Turma. REsp 673.048-RS, Rel. Min. Marco Aurélio
Bellizze, julgado em 08/05/2018 (Info 626).
Por que prevalecem as Convenções?
Porque a
Constituição Federal de 1988 determinou que, em matéria de transporte
internacional, deveriam ser aplicadas as normas previstas em tratados
internacionais. Veja:
Art. 178. A lei disporá sobre a
ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à
ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da
reciprocidade.
Assim, em virtude dessa previsão
expressa quanto ao transporte internacional, deve-se afastar o Código de Defesa
do Consumidor e aplicar o regramento do tratado internacional.
Critérios para resolver esta
antinomia
A Convenção de Varsóvia, enquanto
tratado internacional comum, possui natureza de lei ordinária e, portanto, está
no mesmo nível hierárquico que o CDC. Logo, não há diferença de hierarquia
entre os diplomas normativos. Diante disso, a solução do conflito envolve a
análise dos critérios cronológico e da especialidade.
Em relação ao critério
cronológico, os acordos internacionais referidos são mais recentes que o CDC.
Isso porque, apesar de o Decreto 20.704 ter sido publicado em 1931, ele sofreu
sucessivas modificações posteriores ao CDC.
Além disso, a Convenção de Varsóvia
– e os regramentos internacionais que a modificaram – são normas especiais em
relação ao CDC, pois disciplinam modalidade especial de contrato, qual seja, o
contrato de transporte aéreo internacional de passageiros.
Duas importantes observações:
1) as Convenções de Varsóvia e de
Montreal regulam apenas o transporte internacional (art. 178 da CF/88). Em caso
de transporte nacional, aplica-se o CDC;
2) as Convenções de Varsóvia e de
Montreal devem ser aplicadas não apenas na hipótese de extravio de bagagem, mas
também em outras questões envolvendo o transporte aéreo internacional;
3) as indenizações por danos
morais decorrentes de extravio de bagagem e de atraso de voo internacional não
estão submetidas à tarifação prevista na Convenção de Montreal, devendo-se
observar, nesses casos, a efetiva reparação do consumidor preceituada pelo CDC
(STJ. 3ª Turma. REsp 1.842.066-RS, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em
09/06/2020. Info 673).
O ENTENDIMENTO ACIMA TAMBÉM SE APLICA NO CASO DE CONTRATO DE
TRANSPORTE INTERNACIONAL DE CARGA (EXPLICAÇÃO DO JULGADO)
Imagine a seguinte situação adaptada:
Mitsui Sumitomo Seguros S.A. é uma
seguradora que oferece cobertura securitária no ramo de transporte
internacional. Uma de suas clientes é a Toyota do Brasil.
Pelo contrato de seguro de transporte
internacional, a seguradora compromete-se a cobrir os riscos das mercadorias
pertencentes à empresa segurada ou de responsabilidade dessa ou ainda de
terceiro responsável por enviar a carga.
Em agosto de 2018, a Toyota contratou
a empresa aérea XXX para transportar uma mercadoria de cinco volumes de
equipamentos eletrônicos provenientes do Japão, os quais desembarcariam no
aeroporto de Guarulhos (SP).
Durante o transporte, houve o extravio
de um dos volumes.
A Toyota comunicou o sinistro à
seguradora, que iniciou um procedimento de averiguação para apurar o causador
dos danos, tentar localizar a mercadoria extraviada, e em caso de sua
impossibilidade, apurar a extensão da cobertura securitária, tudo de acordo com
as normas vigentes do setor regulatório.
A mercadoria não foi localizada e a companhia
aérea enviou carta admitindo o extravio.
A seguradora pagou à Toyota a indenização
consistente no valor da mercadoria extraviada.
Sendo assim, considerando a realização
do pagamento, do qual se originou a condição de sub-rogada (CC, art. 786) da
seguradora, a Mitsui Sumitomo Seguros S.A. ingressou com ação regressiva
de indenização contra a companhia aérea requerendo o ressarcimento do
pagamento realizado à sua cliente.
A ré, na contestação, pugnou pela
aplicação do Tema 210 do STF e sustentou que, em caso de procedência do pedido,
o valor da indenização deveria ficar limitado ao previsto na Convenção de
Montreal. Confira o que diz o Tema 210:
Nos termos do art. 178 da
Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores
da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as
Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de
Defesa do Consumidor.
STF. Plenário. RE 636331/RJ, Rel.
Min. Gilmar Mendes e ARE 766618/SP, Rel. Min. Roberto Barroso, julgados em
25/05/2017 (Repercussão Geral – Tema 210) (Info 866).
Assiste razão à companhia aérea?
SIM.
A Convenção de Montreal,
internalizada no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto-Lei 5.910/2006,
aplica-se a todo transporte internacional de pessoas, bagagem ou carga,
efetuado em aeronaves, mediante remuneração.
No art. 31, II, a Convenção
dispõe que, em caso de avaria, o destinatário deverá apresentar ao
transportador um protesto, imediatamente após haver sido notada tal avaria e, o
mais tardar, dentro do prazo de sete dias para a bagagem registrada e de
quatorze dias para a carga, a partir da data de seu recebimento. Em caso de
atraso, o protesto deverá ser feito, o mais tardar, dentro de 21 dias, a contar
do dia em que a bagagem ou a carga haja sido posta à sua disposição.
Nos termos da jurisprudência do
STJ, a seguradora sub-rogada pode buscar o ressarcimento do que despendeu com a
indenização securitária, no mesmo prazo prescricional, termos e limites que
assistiam ao segurado quando recebeu a indenização.
Não se adota diretamente a
Convenção de Montreal nas relações de seguro, até mesmo porque ela disciplina
somente o transporte aéreo internacional. Com efeito, aplica-se a regra geral
da relação securitária às peculiaridades da relação originária.
O prazo decadencial previsto no
art. 31, II, da Convenção de Montreal não se aplica ao extravio, uma vez que o
referido dispositivo trata da necessidade de protesto e do respectivo prazo
apenas nos casos de avaria ou atraso no recebimento da mercadoria.
As reclamações relativas às
avarias ou às perdas não exigem forma especial para efetivação, que podem ser
feitas, inclusive, no próprio conhecimento, bastando sua documentação para
ilidir a presunção de regularidade do transporte.
O prazo decadencial para
apresentação de protesto não tem eficácia contra a seguradora sub-rogada,
todavia, se aquele a quem competia realizar o protesto, na forma e no prazo
previstos na Convenção de Montreal, não o fizer, deixará de merecer posterior
indenização. Por conseguinte, a seguradora não poderá buscar ressarcimento pelo
que eventualmente tenha pago ao segurado.
O termo inicial do prazo
prescricional para a seguradora sub-rogada ajuizar ação de regresso é a data em
que ela pagou o valor da indenização e o prazo prescricional deve ser aquele
aplicável à relação jurídica originária.
O Código Brasileiro Aeronáutico
determina, no art. 317, I, que prescreve em dois anos a ação por danos causados
a passageiros, bagagem ou carga transportada, a contar da data em que se
verificou o dano, da data da chegada ou do dia em que devia chegar a aeronave
ao ponto de destino, ou da interrupção do transporte.
Havendo destruição, perda, avaria
ou atraso de carga em transporte aéreo internacional, a indenização será
limitada a 17 Direitos Especiais de Saque, a menos que tenha sido feita a
Declaração Especial de Valor ou tenha ocorrido qualquer uma das demais
hipóteses previstas em lei para que seja afastado o limite de responsabilidade
previsto no art. 22, III, da Convenção de Montreal.
Em suma:
STJ. 3ª
Turma. REsp 2.052.769-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 20/6/2023 (Info
781).