Imagine a seguinte situação adaptada:
No dia 27/02/2022, a Polícia
recebeu uma ligação na qual Patrícia afirmava que tinha acabado de ser agredida
por seu namorado Eduardo, na residência onde moravam.
Uma guarnição policial foi até o
local. Eduardo não mais se encontrava e Patrícia foi levada até a Delegacia.
Ao ser ouvida perante a
autoridade policial, Patrícia narrou que ela e o namorado discutiram por ciúmes
e, em um dado momento, ele a agrediu com tapas no rosto e disse que ela era
vagabunda e burra. Ela negou ter agredido o namorado.
Eduardo foi localizado dias
depois e aceitou ir até a Delegacia onde afirmou que, durante a discussão,
Patrícia mordeu seu dedo e, como não soltava, ele foi obrigado a desferir tapas
em seu rosto para ela largar.
A vítima foi submetida a exame
pericial, que confirmou a existência de múltiplas lesões por instrumento
contundente em seu corpo.
Instauração e arquivamento
do inquérito policial
Em 20/07/2022, foi instaurado
inquérito para apurar suposta prática de lesões corporais em contexto de
violência doméstica e familiar contra a mulher.
Em 28/07/2022, sem que fossem
realizadas outras diligências, o Ministério Público requereu o arquivamento do
Inquérito.
Em 02/08/2022, o Juízo de origem
homologou o pedido de arquivamento, limitando-se a afirmar que acolhia promoção
do Ministério Público.
A vítima formulou pedido de
reconsideração apresentando, inclusive, esclarecimentos adicionais, novos
documentos e rol de testemunhas, porém a Promotora de Justiça manifestou-se
contra e o pedido da vítima foi indeferido pelo Juízo singular.
Diante da negativa, a vítima
formulou pedido de remessa dos autos para revisão do arquivamento pelo
Procurador-Geral de Justiça, o que foi igualmente indeferido pelo Juízo de
origem.
Mandado de segurança
Irresignada, a vítima impetrou
mandado de segurança no Tribunal de Justiça.
O TJ denegou a ordem por entender
que, após a decisão de arquivamento de inquérito, não havia possibilidade de
reanálise a pedido da vítima.
Patrícia interpôs recurso em mandado de segurança, nos
termos do art. 105, II, “b”, da CF/88:
Art. 105. Compete ao Superior
Tribunal de Justiça:
(...)
II - julgar, em recurso
ordinário:
(...)
b) os mandados de segurança
decididos em única instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos
tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando denegatória a
decisão;
A vítima argumentou que possui
direito líquido e certo ao prosseguimento das investigações, pois há indícios
suficientes de autoria e materialidade, inclusive diante das provas que foram
apresentadas.
Alegou subsidiariamente, que teria
o direito de pleitear a revisão do arquivamento ao Procurador-Geral de Justiça,
conforme determina o art. 28, do CPP.
O STJ concordou com a vítima impetrante?
SIM. O STJ deu parcial provimento
ao recurso ordinário para conceder em parte a segurança, a fim de cassar a
decisão que homologou o arquivamento do inquérito e determinar a remessa dos
autos ao Procurador-Geral de Justiça do Estado, nos termos do art. 28, do CPP.
Vamos entender com calma.
Cabe recurso contra a decisão do juiz que, a pedido do
MP, arquiva o inquérito policial?
NÃO. Por ausência de previsão
legal, a jurisprudência majoritária do STJ compreende que a decisão do Juiz
singular que, a pedido do Ministério Público, determina o arquivamento de
inquérito policial, é irrecorrível.
Todavia, em hipóteses excepcionalíssimas, nas quais
há flagrante violação a direito líquido e certo da vítima, o STJ tem admitido o manejo do mandado
de segurança para impugnar a decisão de arquivamento.
Direito da vítima de
participação na persecução criminal
A admissão do mandado de
segurança, nesses casos, encontra fundamento no dever de assegurar às vítimas
de possíveis violações de direitos humanos o direito de participação em todas
as fases da persecução criminal, inclusive na etapa investigativa, conforme
determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos em condenação
proferida contra o Estado brasileiro.
A ação penal nos crimes
conta a violência doméstica é instrumento concretizador de direitos humanos
O exercício da ação penal em contextos de violência contra a
mulher constitui verdadeiro instrumento para garantir a observância dos
direitos humanos, devendo ser compreendido, à luz do Direito Internacional dos
Direitos Humanos, como parte integrante da obrigação do Estado brasileiro de
garantir o livre e pleno exercício desses direitos a toda pessoa que esteja
sujeita à sua jurisdição e de assegurar a existência de mecanismos judiciais
eficazes para proteção contra atos que os violem, conforme se extrai dos arts.
1º e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Decreto n. 678/1992) e
do art. 7º, alínea “b”, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher (Decreto n. 1.973/1996):
ARTIGO 1
Obrigação de Respeitar os
Direitos
1. Os Estados-Partes nesta
Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos
e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua
jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma,
religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou
social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.
2. Para os efeitos desta
Convenção, pessoa é todo ser humano.
(...)
ARTIGO 25
Proteção Judicial
1. Toda pessoa tem direito a um
recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes
ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos
fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente
Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam
atuando no exercício de suas funções oficiais.
2. Os Estados-Partes
comprometem-se:
a) a assegurar que a autoridade
competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de
toda pessoa que interpuser tal recurso;
b) a desenvolver as
possibilidades de recurso judicial; e
c) a assegurar o cumprimento,
pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado
procedente o recurso.
Deveres dos Estados
Artigo 7º
Os Estados Partes condenam todas
as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios
apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar
tal violência e a empenhar-se em:
(...)
b) agir com o devido zelo para
prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher; (...)
Caso Favela Nova Brasília
vs. Brasil
A Corte Interamericana de
Direitos Humanos, ao proferir condenação contra o Brasil no caso Favela Nova
Brasília vs. Brasil, reforçou que os países signatários da Convenção Americana
têm o dever de, diante da notícia de violações de direitos humanos, agir com a
devida diligência para promover uma investigação séria, imparcial e efetiva do
ocorrido, no âmbito das garantias do devido processo. Em especial, quanto ao
arquivamento de inquéritos sem que houvesse prévia investigação empreendida com
a devida diligência, a Corte Interamericana censurou a conduta do Poder
Judiciário brasileiro que, naquele caso, “não procedeu a um controle efetivo da
investigação e se limitou a manifestar estar de acordo com a Promotoria, o que
foi decisivo para a impunidade dos fatos e a falta de proteção judicial dos
familiares”.
Caso Barbosa de Souza e
outros vs. Brasil
Ademais, no caso Barbosa de Souza
e outros vs. Brasil, a Corte Interamericana novamente fez um alerta ao Poder
Judiciário Brasileiro, destacando que “a ineficácia judicial frente a casos
individuais de violência contra as mulheres propicia um ambiente de impunidade
que facilita e promove a repetição de fatos de violência em geral” e “envia uma
mensagem segundo a qual a violência contra as mulheres pode ser tolerada e
aceita, o que favorece sua perpetuação e a aceitação social do fenômeno, o
sentimento e a sensação de insegurança das mulheres, bem como sua persistente
desconfiança no sistema de administração de justiça”.
Voltando ao caso concreto
No caso concreto, a palavra
segura da vítima, aliada à existência de laudo pericial constatando múltiplas
lesões significativas e atestando que houve ofensa à sua integridade corporal,
formam um substrato probatório que não pode ser desprezado.
Ainda que não se formasse a
convicção pelo exercício imediato da ação penal, seria necessário, no mínimo, a
busca por testemunhas ou outras informações, a fim de melhor definir se existe,
ou não, situação de violência contra a mulher.
A decisão que homologou o
arquivamento do inquérito foi proferida sem que fosse empregada a devida
diligência na investigação e com inobservância de aspectos básicos do Protocolo para Julgamento com
Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça, em especial
quanto à valoração da
palavra da vítima, corroborada por outros indícios probatórios, que
assume inquestionável importância quando se discute violência contra a mulher:
A esse respeito, extrai-se do referido Protocolo:
“As
declarações da vítima qualificam-se como meio de prova, de inquestionável
importância quando se discute violência de gênero, realçada a hipossuficiência
processual da ofendida, que se vê silenciada pela impossibilidade de demonstrar
que não consentiu com a violência, realçando a pouca credibilidade dada à
palavra da mulher vítima, especialmente nos delitos contra a dignidade
sexual, sobre
ela recaindo o difícil ônus de provar a violência sofrida.
Faz parte do
julgamento com perspectiva de gênero a alta valoração das declarações da mulher
vítima de violência de gênero, não se cogitando de desequilíbrio processual. O
peso probatório diferenciado se legitima pela vulnerabilidade e hipossuficiência
da ofendida na relação jurídica processual, qualificando-se a atividade
jurisdicional, desenvolvida nesses moldes, como imparcial e de acordo com o
aspecto material do princípio da igualdade (art. 5º, inciso I, da Constituição
Federal)." (In.: Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero.
Brasília: Conselho Nacional de Justiça/CNJ, 2021, p. 85).
A palavra de pessoa que se
apresenta como vítima de violência doméstica deve ser examinada com seriedade e
diligência
O STJ afirmou que a decisão no
recurso em mandado de segurança não significa que se esteja fazendo um juízo
valorativo acerca da veracidade, ou não, da narrativa fática apresentada pela vítima,
cuja apuração encontra-se em fase inicial e competirá às instâncias ordinárias
no curso do devido processo legal.
O que o STJ sustentou é que a
palavra de pessoa que se apresenta como vítima de violência doméstica contra a
mulher deve ser examinada com a seriedade e a diligência compatíveis com os
estândares nacionais e internacionais próprios da investigação desse tipo de
delito, o que não foi observado.
Dessa forma, o encerramento
prematuro das investigações, aliado às manifestações processuais inconsistentes
nas instâncias ordinárias, denotam que não houve a devida diligência na
apuração de possíveis violações de direitos humanos praticadas contra a vítima,
em ofensa ao seu direito líquido e certo à proteção judicial, o que lhe é
assegurado pelos arts. 1º e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos,
c.c. o art. 7º, alínea “b”, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher.
Em suma:
STJ. 6ª Turma. RMS 70.338-SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em
22/8/2023 (Info 785).