Imagine a seguinte situação adaptada:
Em 2013, foi instaurado inquérito
perante o Supremo Tribunal Federal em desfavor de João, que exercia, na época,
o cargo de Deputado Federal (legislaturas de 2007/2011 e 2011/2015).
O inquérito investigava o suposto
crime de concussão (art. 316 do CP) considerando que havia suspeitas de que o
então Deputado Federal teria cobrado (exigido) o percentual de 5% da
remuneração dos servidores comissionados que trabalhavam em seu gabinete na
Câmara dos Deputados durante as legislaturas de 2007/2011 e 2011/2015, em troca
da manutenção dos cargos ocupados. Trata-se da prática conhecida como
“rachadinha”.
Em 2015, o então investigado renunciou
ao mandato de Deputado Federal para assumir o cargo de Vice-Governador, razão
pela qual o STF declinou da sua competência para o juízo de 1ª instância
considerando que não havia mais o foro por prerrogativa de função perante o
Supremo.
Sobre isso, vale a pena
relembrarmos que:
O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes
cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.
Assim, mesmo que o crime tenha sido cometido durante o mandato
de Deputado Federal ou Senador, se o investigado/réu deixar de ocupar o cargo
antes de a instrução terminar cessa a competência do STF e o processo deve ser
remetido para a 1ª instância ou para o Tribunal competente para julgá-lo.
STF. Plenário. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado
em 03/05/2018 (Info 900).
Desse modo, a ação penal
envolvendo João foi remetida para a Seção Judiciária do Distrito Federal e os
autos foram distribuídos ao juízo da 15ª Vara Federal/SJDF.
Antes de a ação penal ser julgada
pelo juízo da 15ª Vara Federal, o acusado foi eleito e diplomado Senador da
República para a legislatura de 2019/2027.
Com isso, a defesa pleiteou que a
ação penal fosse novamente remetida para o STF alegando foro por prerrogativa
de função.
O juízo da 15ª Vara Federal/SJDF
indeferiu o pedido.
Na sequência, a defesa impetrou
habeas corpus perante o TRF da 1ª Região.
O TRF da 1ª Região denegou a
ordem.
A defesa interpôs recurso ordinário dirigido ao STJ, nos
termos do art. 105, II, “a”, da CF/88:
Art. 105. Compete ao Superior
Tribunal de Justiça:
(...)
II - julgar, em recurso
ordinário:
a) os habeas corpus decididos em
única ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais
dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão for
denegatória;
(...)
João sustentou que “embora tenha
ocupado o cargo de Vice-Governador entre os mandatos de Deputado Federal e
Senador da República, o fato é que jamais deixou de ocupar cargos eletivos, não
havendo interregno entre os mandatos, sendo certo, também, que há pertinência
objetiva entre o cargo de parlamentar e o objeto da ação penal”.
Os argumentos de João foram
acolhidos pelo STJ?
NÃO.
De acordo com a jurisprudência do
STF e do STJ:
Na hipótese em que o delito seja praticado em um mandato e o réu
seja reeleito para o mesmo cargo, a continuidade do foro por prerrogativa de
função restringe-se às hipóteses em que os diferentes mandatos sejam exercidos
em ordem sequencial e ininterrupta (Inq 4.127, Rel. Ministro Ricardo
Lewandowski, Tribunal Pleno, DJe 23/11/2018).
STJ. 5ª Turma. RHC 111.781/CE, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe
01/7/2019.
Ademais, o STF tem entendido que
o foro por prerrogativa de função alcança os chamados “mandatos cruzados” de
parlamentar federal. Assim, prorroga-se a competência originária do STF, por
excepcionalidade, quando o parlamentar, sem solução de continuidade, estiver investido em novo mandato
federal, mas em casa legislativa diversa daquela que originariamente deu causa
à fixação da competência originária (art. 102, I, “b”, da CF/88). É o caso de
um Deputado Federal ser eleito para o cargo de Senador ou vice-versa. Porém, se
houve a interrupção ou o término do mandato parlamentar federal, sem que o
acusado tenha sido novamente eleito para os cargos de Deputado Federal ou
Senador, haverá obrigatoriamente o declínio da competência para a 1ª instância.
No caso, constata-se que houve a
quebra da necessária e indispensável continuidade do exercício do mandato
político para fins de prorrogação da competência, conforme é exigido pelo STF:
Havendo solução de continuidade entre os mandatos, que não foram
exercidos pelo réu de maneira ininterrupta, cessa o foro por prerrogativa de
função referente a atos praticados durante o primeiro deles. Praticado o crime
em um mandato e existindo reeleição ao mesmo cargo, verifica-se a prorrogação
do foro por prerrogativa de função acaso os diferentes mandatos sejam exercidos
em ordem sequencial e ininterrupta.
STJ. 3ª Seção. HC 529.095/SC, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe
24/11/2020.
Tendo havido interrupção do mandato eletivo do paciente,
afastada está a regra do foro privilegiado, pois proteção destinada aos fatos
relacionados ao cargo atual.
STJ. 6ª Turma.
HC 560.128/SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe de 25/5/2020.
Portanto, nos termos da
jurisprudência formada nas Cortes Superiores, considerando que houve solução de
continuidade no exercício dos cargos que poderiam atrair o foro por
prerrogativa de função para o STF, mostra-se acertada a decisão do TRF1 que não
aceitou remeter o feito para julgamento perante a Suprema Corte.
Em suma:
STJ. 5ª
Turma. AgRg no RHC 182.049-DF, Rel. Min. Messod Azulay Neto, julgado em
8/8/2023 (Info 785).
DOD Plus –
revise julgados correlatos
A prorrogação do foro por
prerrogativa de função só ocorre se houve reeleição, não se aplicando em caso
de eleição para um novo mandato após o agente ter ficado sem ocupar função
pública
Prefeito cometeu o crime durante o exercício do mandato e o
delito está relacionado com as suas funções: a competência para julgá-lo será,
em regra, do Tribunal de Justiça.
Se esse Prefeito, antes de o processo terminar, for reeleito
para um segundo mandato (consecutivo e ininterrupto), neste caso, o Tribunal de
Justiça continuará sendo competente para julgá-lo.
Por outro lado, se o agente deixar o cargo de Prefeito e, quatro
anos mais tarde, for eleito novamente Prefeito do mesmo Município, nesta situação
a competência para julgar o crime será do juízo de 1ª instância. A prorrogação
do foro por prerrogativa de função só ocorre se houve reeleição, não se
aplicando em caso de eleição para um novo mandato após o agente ter ficado sem
ocupar função pública. Ex: em 2011, Pedro, Prefeito, em seu primeiro mandato,
cometeu o crime de corrupção passiva. Pedro foi denunciado e passou a responder
um processo penal no TJ. Em 2012, Pedro disputou a campanha eleitoral buscando
a reeleição. Contudo, ele perdeu. Com isso, Pedro ficou sem mandato eletivo.
Vale esclarecer que o processo continuou tramitando normalmente no TJ. Em 2016,
Pedro concorreu novamente ao cargo de Prefeito do mesmo Município, tendo sido
eleito. Em 01/01/2017, João assumiu como Prefeito por força dessa nova eleição.
O processo de Pedro não será julgado pelo TJ, mas sim pelo juízo de 1ª
instância.
STF. 1ª Turma.
RE 1185838/SP, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 14/5/2019 (Info 940).
STJ não é competente para
julgar crime praticado por Governador no exercício do mandato se o agente
deixou o cargo e atualmente voltou a ser Governador por força de uma nova
eleição
O STJ é incompetente para julgar crime praticado durante mandato
anterior de Governador, ainda que atualmente ocupe referido cargo por força de
nova eleição.
Ex: João praticou o crime em 2010, quando era Governador; em
2011 foi eleito Senador; em 2019 assumiu novamente como Governador; esse crime
praticado em 2010 será julgado em 1ª instância (e não pelo STJ).
Como o foro por prerrogativa de função exige contemporaneidade e
pertinência temática entre os fatos em apuração e o exercício da função
pública, o término de um determinado mandato acarreta, por si só, a cessação do
foro por prerrogativa de função em relação ao ato praticado nesse intervalo.
STJ. Corte Especial. QO na APn 874-DF, Rel. Min. Nancy Andrighi,
julgado em 15/05/2019 (Info 649).