Dizer o Direito

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Havendo solução de continuidade entre os mandatos, não exercidos de maneira ininterrupta, cessa o foro por prerrogativa de função referente a atos praticados durante o primeiro mandato

Imagine a seguinte situação adaptada:

Em 2013, foi instaurado inquérito perante o Supremo Tribunal Federal em desfavor de João, que exercia, na época, o cargo de Deputado Federal (legislaturas de 2007/2011 e 2011/2015).

O inquérito investigava o suposto crime de concussão (art. 316 do CP) considerando que havia suspeitas de que o então Deputado Federal teria cobrado (exigido) o percentual de 5% da remuneração dos servidores comissionados que trabalhavam em seu gabinete na Câmara dos Deputados durante as legislaturas de 2007/2011 e 2011/2015, em troca da manutenção dos cargos ocupados. Trata-se da prática conhecida como “rachadinha”.

Em 2015, o então investigado renunciou ao mandato de Deputado Federal para assumir o cargo de Vice-Governador, razão pela qual o STF declinou da sua competência para o juízo de 1ª instância considerando que não havia mais o foro por prerrogativa de função perante o Supremo.

Sobre isso, vale a pena relembrarmos que:

O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.

Assim, mesmo que o crime tenha sido cometido durante o mandato de Deputado Federal ou Senador, se o investigado/réu deixar de ocupar o cargo antes de a instrução terminar cessa a competência do STF e o processo deve ser remetido para a 1ª instância ou para o Tribunal competente para julgá-lo.

STF. Plenário. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 03/05/2018 (Info 900).

 

Desse modo, a ação penal envolvendo João foi remetida para a Seção Judiciária do Distrito Federal e os autos foram distribuídos ao juízo da 15ª Vara Federal/SJDF.

Antes de a ação penal ser julgada pelo juízo da 15ª Vara Federal, o acusado foi eleito e diplomado Senador da República para a legislatura de 2019/2027.

Com isso, a defesa pleiteou que a ação penal fosse novamente remetida para o STF alegando foro por prerrogativa de função.

O juízo da 15ª Vara Federal/SJDF indeferiu o pedido.

Na sequência, a defesa impetrou habeas corpus perante o TRF da 1ª Região.

O TRF da 1ª Região denegou a ordem.

A defesa interpôs recurso ordinário dirigido ao STJ, nos termos do art. 105, II, “a”, da CF/88:

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

(...)

II - julgar, em recurso ordinário:

a) os habeas corpus decididos em única ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão for denegatória;

(...)

 

João sustentou que “embora tenha ocupado o cargo de Vice-Governador entre os mandatos de Deputado Federal e Senador da República, o fato é que jamais deixou de ocupar cargos eletivos, não havendo interregno entre os mandatos, sendo certo, também, que há pertinência objetiva entre o cargo de parlamentar e o objeto da ação penal”.

 

Os argumentos de João foram acolhidos pelo STJ?

NÃO.

De acordo com a jurisprudência do STF e do STJ:

Na hipótese em que o delito seja praticado em um mandato e o réu seja reeleito para o mesmo cargo, a continuidade do foro por prerrogativa de função restringe-se às hipóteses em que os diferentes mandatos sejam exercidos em ordem sequencial e ininterrupta (Inq 4.127, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, DJe 23/11/2018).

STJ. 5ª Turma. RHC 111.781/CE, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 01/7/2019.

 

Ademais, o STF tem entendido que o foro por prerrogativa de função alcança os chamados “mandatos cruzados” de parlamentar federal. Assim, prorroga-se a competência originária do STF, por excepcionalidade, quando o parlamentar, sem solução de continuidade, estiver investido em novo mandato federal, mas em casa legislativa diversa daquela que originariamente deu causa à fixação da competência originária (art. 102, I, “b”, da CF/88). É o caso de um Deputado Federal ser eleito para o cargo de Senador ou vice-versa. Porém, se houve a interrupção ou o término do mandato parlamentar federal, sem que o acusado tenha sido novamente eleito para os cargos de Deputado Federal ou Senador, haverá obrigatoriamente o declínio da competência para a 1ª instância.

No caso, constata-se que houve a quebra da necessária e indispensável continuidade do exercício do mandato político para fins de prorrogação da competência, conforme é exigido pelo STF:

Havendo solução de continuidade entre os mandatos, que não foram exercidos pelo réu de maneira ininterrupta, cessa o foro por prerrogativa de função referente a atos praticados durante o primeiro deles. Praticado o crime em um mandato e existindo reeleição ao mesmo cargo, verifica-se a prorrogação do foro por prerrogativa de função acaso os diferentes mandatos sejam exercidos em ordem sequencial e ininterrupta.

STJ. 3ª Seção. HC 529.095/SC, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe 24/11/2020.

 

Tendo havido interrupção do mandato eletivo do paciente, afastada está a regra do foro privilegiado, pois proteção destinada aos fatos relacionados ao cargo atual.

STJ. 6ª Turma. HC 560.128/SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe de 25/5/2020.

 

Portanto, nos termos da jurisprudência formada nas Cortes Superiores, considerando que houve solução de continuidade no exercício dos cargos que poderiam atrair o foro por prerrogativa de função para o STF, mostra-se acertada a decisão do TRF1 que não aceitou remeter o feito para julgamento perante a Suprema Corte.

 

Em suma:

 

DOD Plus – revise julgados correlatos

A prorrogação do foro por prerrogativa de função só ocorre se houve reeleição, não se aplicando em caso de eleição para um novo mandato após o agente ter ficado sem ocupar função pública

Prefeito cometeu o crime durante o exercício do mandato e o delito está relacionado com as suas funções: a competência para julgá-lo será, em regra, do Tribunal de Justiça.

Se esse Prefeito, antes de o processo terminar, for reeleito para um segundo mandato (consecutivo e ininterrupto), neste caso, o Tribunal de Justiça continuará sendo competente para julgá-lo.

Por outro lado, se o agente deixar o cargo de Prefeito e, quatro anos mais tarde, for eleito novamente Prefeito do mesmo Município, nesta situação a competência para julgar o crime será do juízo de 1ª instância. A prorrogação do foro por prerrogativa de função só ocorre se houve reeleição, não se aplicando em caso de eleição para um novo mandato após o agente ter ficado sem ocupar função pública. Ex: em 2011, Pedro, Prefeito, em seu primeiro mandato, cometeu o crime de corrupção passiva. Pedro foi denunciado e passou a responder um processo penal no TJ. Em 2012, Pedro disputou a campanha eleitoral buscando a reeleição. Contudo, ele perdeu. Com isso, Pedro ficou sem mandato eletivo. Vale esclarecer que o processo continuou tramitando normalmente no TJ. Em 2016, Pedro concorreu novamente ao cargo de Prefeito do mesmo Município, tendo sido eleito. Em 01/01/2017, João assumiu como Prefeito por força dessa nova eleição. O processo de Pedro não será julgado pelo TJ, mas sim pelo juízo de 1ª instância.

STF. 1ª Turma. RE 1185838/SP, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 14/5/2019 (Info 940).

 

STJ não é competente para julgar crime praticado por Governador no exercício do mandato se o agente deixou o cargo e atualmente voltou a ser Governador por força de uma nova eleição

O STJ é incompetente para julgar crime praticado durante mandato anterior de Governador, ainda que atualmente ocupe referido cargo por força de nova eleição.

Ex: João praticou o crime em 2010, quando era Governador; em 2011 foi eleito Senador; em 2019 assumiu novamente como Governador; esse crime praticado em 2010 será julgado em 1ª instância (e não pelo STJ).

Como o foro por prerrogativa de função exige contemporaneidade e pertinência temática entre os fatos em apuração e o exercício da função pública, o término de um determinado mandato acarreta, por si só, a cessação do foro por prerrogativa de função em relação ao ato praticado nesse intervalo.

STJ. Corte Especial. QO na APn 874-DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15/05/2019 (Info 649).


segunda-feira, 30 de outubro de 2023

INFORMATIVO Comentado 787 STJ (completo e resumido)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível mais um INFORMATIVO COMENTADO.

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Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 787 DO STJ


DIREITO ADMINISTRATIVO

SERVIDORES PÚBLICOS

§  Não ocorre renúncia tácita à prescrição, a ensejar o pagamento retroativo de parcelas anteriores à mudança de orientação jurídica, quando a Administração Pública reconhece administrativamente o direito pleiteado pelo interessado.

 

BENS PÚBLICOS

§  No período entre a Lei nº 11.481/2007 (publicada em 31/05/2007) e a decisão do STF na ADI 4264 (cuja ata de julgamento foi publicada em 28/3/2011), os chamamentos feitos por edital devem ser considerados válidos.

 

TEMAS DIVERSOS

§  Demanda proposta contra o Banco do Brasil discutindo saques indevidos de PASEP.

 

DIREITO AMBIENTAL

INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA

§  Para a aplicação válida de multa administrativa ambiental não se exige que o órgão ambiental tenha previamente aplicado a pena de advertência; é possível aplicar a multa como primeira sanção.

 

RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO AMBIENTAL

§  O anterior titular não estará obrigado a reparar dano ambiental superveniente à cessação de sua propriedade ou posse, exceto se tiver concorrido para sua causação.

 

DIREITO DO CONSUMIDOR

PLANO DE SAÚDE

§  O plano de saúde é obrigado a custear cirurgias plásticas em paciente pós-cirurgia bariátrica?

 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS

§  Para que o sindicato possa reter os honorários contratuais sobre o montante da condenação é necessária a autorização expressa dos filiados ou beneficiários.

 

EXECUÇÃO FISCAL

§  As execuções fiscais envolvendo a União, suas autarquias, fundações e empresas públicas ajuizadas na Justiça Estadual antes da Lei 13.043/2014 devem permanecer na Justiça Estadual mesmo após a EC 103/2019, que não revogou o art. 75 da Lei 13.043/2014.

 

AÇÃO MONITÓRIA

§  Cabe agravo de instrumento contra a decisão que acolhe os embargos à monitória para excluir um dos litisconsortes passivos.

 

 

 

DIREITO PENAL

CRIME CONTINUADO

§  Súmula 659 do STJ.

 

REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO

§  Para a configuração do crime de redução a condição análoga à de escravo (art. 149 do CP), não é indispensável a restrição da liberdade das vítimas.

 

ESTUPRO DE VULNERÁVEL

§  No REsp 1.977.165/MS, o STJ relativizou o entendimento do Tema 918 e da Súmula 593; neste caso, o STJ afirmou que a situação era diferente e decidiu que houve crime.

 

CONTRABANDO

§  O princípio da insignificância pode ser aplicado para o contrabando de até mil maços de cigarro, salvo se houver reiteração.

 

DIREITO PROCESSUAL PENAL

PROVAS

§  Mesmo com a expedição de carta precatória, que não suspende a instrução criminal, o interrogatório deve ser o último ato, não podendo ser realizado antes da oitiva das testemunhas.

 

EXECUÇÃO PENAL (FALTA GRAVE)

§  Súmula 660 do STJ.

§  Súmula 661 do STJ.

 

EXECUÇÃO PENAL (PRESÍDIOS FEDERAIS)

§  Súmula 662 do STJ.

 

DIREITO TRIBUTÁRIO

CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA

§  Súmula 658 do STJ.


A decisão que homologa o arquivamento do inquérito que apura violência doméstica deve observar a devida diligência na investigação e o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ

Imagine a seguinte situação adaptada:

No dia 27/02/2022, a Polícia recebeu uma ligação na qual Patrícia afirmava que tinha acabado de ser agredida por seu namorado Eduardo, na residência onde moravam.

Uma guarnição policial foi até o local. Eduardo não mais se encontrava e Patrícia foi levada até a Delegacia.

Ao ser ouvida perante a autoridade policial, Patrícia narrou que ela e o namorado discutiram por ciúmes e, em um dado momento, ele a agrediu com tapas no rosto e disse que ela era vagabunda e burra. Ela negou ter agredido o namorado.

Eduardo foi localizado dias depois e aceitou ir até a Delegacia onde afirmou que, durante a discussão, Patrícia mordeu seu dedo e, como não soltava, ele foi obrigado a desferir tapas em seu rosto para ela largar.

A vítima foi submetida a exame pericial, que confirmou a existência de múltiplas lesões por instrumento contundente em seu corpo.

 

Instauração e arquivamento do inquérito policial

Em 20/07/2022, foi instaurado inquérito para apurar suposta prática de lesões corporais em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Em 28/07/2022, sem que fossem realizadas outras diligências, o Ministério Público requereu o arquivamento do Inquérito.

Em 02/08/2022, o Juízo de origem homologou o pedido de arquivamento, limitando-se a afirmar que acolhia promoção do Ministério Público.

A vítima formulou pedido de reconsideração apresentando, inclusive, esclarecimentos adicionais, novos documentos e rol de testemunhas, porém a Promotora de Justiça manifestou-se contra e o pedido da vítima foi indeferido pelo Juízo singular.

Diante da negativa, a vítima formulou pedido de remessa dos autos para revisão do arquivamento pelo Procurador-Geral de Justiça, o que foi igualmente indeferido pelo Juízo de origem.

 

Mandado de segurança

Irresignada, a vítima impetrou mandado de segurança no Tribunal de Justiça.

O TJ denegou a ordem por entender que, após a decisão de arquivamento de inquérito, não havia possibilidade de reanálise a pedido da vítima.

Patrícia interpôs recurso em mandado de segurança, nos termos do art. 105, II, “b”, da CF/88:

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

(...)

II - julgar, em recurso ordinário:

(...)

b) os mandados de segurança decididos em única instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando denegatória a decisão;

 

A vítima argumentou que possui direito líquido e certo ao prosseguimento das investigações, pois há indícios suficientes de autoria e materialidade, inclusive diante das provas que foram apresentadas.

Alegou subsidiariamente, que teria o direito de pleitear a revisão do arquivamento ao Procurador-Geral de Justiça, conforme determina o art. 28, do CPP.

 

O STJ concordou com a vítima impetrante?

SIM. O STJ deu parcial provimento ao recurso ordinário para conceder em parte a segurança, a fim de cassar a decisão que homologou o arquivamento do inquérito e determinar a remessa dos autos ao Procurador-Geral de Justiça do Estado, nos termos do art. 28, do CPP.

Vamos entender com calma.

 

Cabe recurso contra a decisão do juiz que, a pedido do MP, arquiva o inquérito policial?

NÃO. Por ausência de previsão legal, a jurisprudência majoritária do STJ compreende que a decisão do Juiz singular que, a pedido do Ministério Público, determina o arquivamento de inquérito policial, é irrecorrível.

Todavia, em hipóteses excepcionalíssimas, nas quais há flagrante violação a direito líquido e certo da vítima, o STJ tem admitido o manejo do mandado de segurança para impugnar a decisão de arquivamento.

 

Direito da vítima de participação na persecução criminal

A admissão do mandado de segurança, nesses casos, encontra fundamento no dever de assegurar às vítimas de possíveis violações de direitos humanos o direito de participação em todas as fases da persecução criminal, inclusive na etapa investigativa, conforme determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos em condenação proferida contra o Estado brasileiro.

 

A ação penal nos crimes conta a violência doméstica é instrumento concretizador de direitos humanos

O exercício da ação penal em contextos de violência contra a mulher constitui verdadeiro instrumento para garantir a observância dos direitos humanos, devendo ser compreendido, à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos, como parte integrante da obrigação do Estado brasileiro de garantir o livre e pleno exercício desses direitos a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição e de assegurar a existência de mecanismos judiciais eficazes para proteção contra atos que os violem, conforme se extrai dos arts. 1º e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Decreto n. 678/1992) e do art. 7º, alínea “b”, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Decreto n. 1.973/1996):

ARTIGO 1

Obrigação de Respeitar os Direitos

1. Os Estados-Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

2. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.

(...)

ARTIGO 25

Proteção Judicial

1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.

2. Os Estados-Partes comprometem-se:

a) a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso;

b) a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e

c) a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso.

 

Deveres dos Estados

Artigo 7º

Os Estados Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em:

(...)

b) agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher; (...)

 

Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao proferir condenação contra o Brasil no caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, reforçou que os países signatários da Convenção Americana têm o dever de, diante da notícia de violações de direitos humanos, agir com a devida diligência para promover uma investigação séria, imparcial e efetiva do ocorrido, no âmbito das garantias do devido processo. Em especial, quanto ao arquivamento de inquéritos sem que houvesse prévia investigação empreendida com a devida diligência, a Corte Interamericana censurou a conduta do Poder Judiciário brasileiro que, naquele caso, “não procedeu a um controle efetivo da investigação e se limitou a manifestar estar de acordo com a Promotoria, o que foi decisivo para a impunidade dos fatos e a falta de proteção judicial dos familiares”.

 

Caso Barbosa de Souza e outros vs. Brasil

Ademais, no caso Barbosa de Souza e outros vs. Brasil, a Corte Interamericana novamente fez um alerta ao Poder Judiciário Brasileiro, destacando que “a ineficácia judicial frente a casos individuais de violência contra as mulheres propicia um ambiente de impunidade que facilita e promove a repetição de fatos de violência em geral” e “envia uma mensagem segundo a qual a violência contra as mulheres pode ser tolerada e aceita, o que favorece sua perpetuação e a aceitação social do fenômeno, o sentimento e a sensação de insegurança das mulheres, bem como sua persistente desconfiança no sistema de administração de justiça”.

 

Voltando ao caso concreto

No caso concreto, a palavra segura da vítima, aliada à existência de laudo pericial constatando múltiplas lesões significativas e atestando que houve ofensa à sua integridade corporal, formam um substrato probatório que não pode ser desprezado.

Ainda que não se formasse a convicção pelo exercício imediato da ação penal, seria necessário, no mínimo, a busca por testemunhas ou outras informações, a fim de melhor definir se existe, ou não, situação de violência contra a mulher.

A decisão que homologou o arquivamento do inquérito foi proferida sem que fosse empregada a devida diligência na investigação e com inobservância de aspectos básicos do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça, em especial quanto à valoração da palavra da vítima, corroborada por outros indícios probatórios, que assume inquestionável importância quando se discute violência contra a mulher:

A esse respeito, extrai-se do referido Protocolo:

“As declarações da vítima qualificam-se como meio de prova, de inquestionável importância quando se discute violência de gênero, realçada a hipossuficiência processual da ofendida, que se vê silenciada pela impossibilidade de demonstrar que não consentiu com a violência, realçando a pouca credibilidade dada à palavra da mulher vítima, especialmente nos delitos contra a dignidade

sexual, sobre ela recaindo o difícil ônus de provar a violência sofrida.

Faz parte do julgamento com perspectiva de gênero a alta valoração das declarações da mulher vítima de violência de gênero, não se cogitando de desequilíbrio processual. O peso probatório diferenciado se legitima pela vulnerabilidade e hipossuficiência da ofendida na relação jurídica processual, qualificando-se a atividade jurisdicional, desenvolvida nesses moldes, como imparcial e de acordo com o aspecto material do princípio da igualdade (art. 5º, inciso I, da Constituição Federal)." (In.: Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Brasília: Conselho Nacional de Justiça/CNJ, 2021, p. 85).

 

A palavra de pessoa que se apresenta como vítima de violência doméstica deve ser examinada com seriedade e diligência

O STJ afirmou que a decisão no recurso em mandado de segurança não significa que se esteja fazendo um juízo valorativo acerca da veracidade, ou não, da narrativa fática apresentada pela vítima, cuja apuração encontra-se em fase inicial e competirá às instâncias ordinárias no curso do devido processo legal.

O que o STJ sustentou é que a palavra de pessoa que se apresenta como vítima de violência doméstica contra a mulher deve ser examinada com a seriedade e a diligência compatíveis com os estândares nacionais e internacionais próprios da investigação desse tipo de delito, o que não foi observado.

Dessa forma, o encerramento prematuro das investigações, aliado às manifestações processuais inconsistentes nas instâncias ordinárias, denotam que não houve a devida diligência na apuração de possíveis violações de direitos humanos praticadas contra a vítima, em ofensa ao seu direito líquido e certo à proteção judicial, o que lhe é assegurado pelos arts. 1º e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, c.c. o art. 7º, alínea “b”, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.

 

Em suma:


domingo, 29 de outubro de 2023

Juiz determinou, como medida protetiva de urgência, que o infrator não se aproximasse da mulher vítima de violência doméstica. A mulher, no entanto, permitiu que o réu se aproximasse. Há o crime do art. 24-A da Lei 11.340/2006 (descumprir medida protetiva de urgência)?

Imagine a seguinte situação hipotética:

Regina foi agredida por seu filho Carlos.

Ela procurou a Delegacia de Polícia.

O juízo plantonista, a partir de representação da autoridade policial, com base nos incisos II e III do art. 22 da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), decretou:

• o afastamento de Carlos da residência da vítima;

• a proibição de que ele se aproxime de Regina a uma distância inferior a 500m; e

• a proibição de que mantenha com ela qualquer tipo de contato.

 

Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

(...)

II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;

c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;

 

Passados alguns meses, Regina ficou com pena do filho. Assim, a despeito das medidas proibitivas impostas, ela mesmo entrou em contato com o filho. Ao descobrir que ele estava desabrigado, Regina saiu de sua própria residência para o acusado ir morar lá, tendo ela se mudado para a casa da filha, que fica no mesmo lote.

Alguns dias depois, Carlos foi até a casa de sua irmã, local onde sua mãe estava, para comer um prato de comida. Ao terminar o prato oferecido, Carlos exigiu mais comida, porém não havia, fazendo com que ele ficasse transtornado. A irmã o expulsou do local e fechou a casa, mas o denunciado passou a empurrar a porta para entrar. A mãe do agressor pegou cabo de vassoura para amedrontá-lo, na tentativa de fazê-lo sair do local. A neta da vítima chamou a polícia e Carlos foi novamente preso.

Em juízo, a vítima relatou que consentiu com a aproximação do réu, tanto que cedeu a casa para ele morar.

Carlos, que já respondia pelo delito de lesão corporal, foi denunciado pelo crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência (art. 24-A da Lei nº 11.340/2006):

Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei:        

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.

§ 1º A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas.         

§ 2º Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.

§ 3º O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.

 

A defesa pugnou pela sua absolvição, nos termos do art. 386, III, do CPP, alegando que houve consentimento da ofendida para a aproximação do filho.

O juízo condenou o réu sustentando que o consentimento da vítima na aproximação do agressor não afasta a tipicidade do fato. Para o magistrado, no “crime de descumprimento de medida protetiva de urgência, o bem jurídico tutelado é a administração da justiça e, apenas indiretamente, a proteção da vítima. Trata-se, portanto, de bem indisponível. O consentimento da vítima na aproximação do agressor não tem o condão de afastar a tipicidade do fato”.

A condenação foi mantida pelo Tribunal de Justiça.

Inconformada, a defesa interpôs recurso especial.

 

Para o STJ, no caso concreto acima narrado, houve o crime do art. 24-A da Lei nº 11.340/2006?

NÃO.

O entendimento adotado pelas instâncias de origem não encontra amparo na jurisprudência do STJ.

Para o STJ, o consentimento da vítima que aceita a aproximação do réu afasta eventual ameaça ou lesão ao bem jurídico tutelado pelo crime capitulado no art. 24-A da Lei nº 11.340/2006.

No caso concreto, é incontroverso que a própria vítima permitiu a aproximação do réu, autorizando-o a residir com ela no mesmo lote residencial, em casas distintas. Com isso, fica evidente a atipicidade da conduta.

Conforme já decidiu o STJ:

Ainda que efetivamente tenha o acusado violado cautelar de não aproximação da vítima, isto se deu com a autorização dela, de modo que não se verifica efetiva lesão e falta inclusive ao fato dolo de desobediência.

STJ. 6ª Turma. HC 521.622/SC, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe de 22/11/2019.

 

Em suma:

A aproximação do réu com o consentimento da vítima torna atípica a conduta de descumprir medida protetiva de urgência. 

STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 2.330.912-DF, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 22/8/2023 (Info 785).


sábado, 28 de outubro de 2023

Plano de saúde deve custear congelamento de óvulo criopreservação para a paciente em tratamento contra o câncer como medida preventiva à infertilidade

Imagine a seguinte situação hipotética:

Renata é executiva de uma determinada empresa e se encontra no auge de sua carreira profissional.

Ela deseja um dia ser mãe, mas entende que atualmente não é o momento ideal por conta de seus compromissos de trabalho.

Como já tem 35 anos, Renata está com receio de, posteriormente, não conseguir engravidar.

Assim, ela procurou um médico que recomendou a realização de um procedimento de congelamento dos oócitos, mais conhecido na linguagem cotidiana como “congelamento dos óvulos”.

Os óvulos são retirados da mulher e depois congelados em nitrogênio líquido. Quando a mulher decide engravidar, os óvulos são “descongelados”, sendo feita a fecundação dos óvulos com o espermatozoide do parceiro, em laboratório, por intermédio da fertilização in vitro. Em seguida, é realizada a implantação no útero da mulher.

 

Indaga-se: o plano de saúde é obrigado a custear esse procedimento para Renata?

NÃO.

O art. 10, III, da Lei nº 9.656/98 permite que os planos de saúde neguem cobertura para inseminação artificial.

A ANS possui resoluções afirmando que, além da inseminação artificial, o plano também não é obrigado a custear outras técnicas de reprodução assistida. Assim, entende-se que o congelamento dos óvulos (espécie de manipulação laboratorial dos óvulos) é um procedimento que não é de cobertura obrigatória pelo plano de saúde.

Assim, em situações “normais” seria possível que o plano de saúde se recusasse ao pagamento da criopreservação, pois esta nada mais é do que o congelamento dos oócitos para manipulação e fertilização futura.

 

Imagine agora uma situação diferente:

Regina estava fazendo quimioterapia para combater um câncer. Ocorre que esse tratamento pode ocasionar, como reação adversa, a falência ovariana, gerando infertilidade.

A forma de preservar a capacidade reprodutiva, nestes casos, é o congelamento dos óvulos, um procedimento denominado de “criopreservação”.

Diante disso, ela pleiteou junto ao plano de saúde que custeasse esse procedimento.

A operadora recusou o custeio sob a justificativa de que o procedimento não seria de cobertura obrigatória. Para o plano de saúde, assim como ele não é obrigado a custear inseminação artificial, ele também não poderia ser compelido a pagar o procedimento de criopreservação. Seria o mesmo raciocínio.

 

Indaga-se: o plano de saúde é obrigado a custear esse procedimento para Regina?

SIM.

Como vimos, em regra, o plano de saúde pode se recusar a custear o procedimento de criopreservação.

O caso concreto, porém, é diferente.

O que a usuária do plano busca é a atenuação (diminuição) dos efeitos colaterais, previsíveis e evitáveis, da quimioterapia, dentre os quais a falência ovariana.

O objetivo de todo tratamento médico, além de curar a doença, é não causar mal. Esse é um dos princípios milenares da medicina conhecido pela locução “primum, non nocere” (primeiro, não prejudicar). Esse princípio está consagrado no art. 35-F da Lei nº 9.656/98, segundo o qual a cobertura dos planos de saúde abrange também a prevenção de doenças, no caso, a infertilidade:

Art. 35-F.  A assistência a que alude o art. 1º desta Lei compreende todas as ações necessárias à prevenção da doença e à recuperação, manutenção e reabilitação da saúde, observados os termos desta Lei e do contrato firmado entre as partes.

 

Desse modo, o plano de saúde pode ser obrigado a custear o procedimento pleiteado que funciona como medida de prevenção para a possível infertilidade da paciente.

Vale ressaltar que, depois de obter alta do tratamento quimioterápico, caberá à mulher custear o tratamento de reprodução assistida, considerando que isso se encontra fora da cobertura do plano.

 

Em suma:

É devida a cobertura, pela operadora de plano de saúde, do procedimento de criopreservação de óvulos de paciente fértil, até a alta do tratamento quimioterápico, como medida preventiva à infertilidade.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.815.796-RJ, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 26/05/2020 (Info 673).

 

Esse entendimento foi reiterado pelo STJ:

A operadora de plano de saúde deve custear o procedimento de criopreservação de óvulos, como medida preventiva à infertilidade, enquanto possível efeito adverso do tratamento de quimioterapia prescrito para câncer de mama, até a alta da quimioterapia.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.962.984-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15/8/2023 (Info 785).

 

Se a operadora cobre o procedimento de quimioterapia para tratar o câncer de mama, há de fazê-lo também com relação à prevenção dos efeitos adversos e previsíveis dele decorrentes, como a infertilidade, de modo a possibilitar a plena reabilitação da beneficiária ao final do seu tratamento, quando então se considerará devidamente prestado o serviço fornecido.

Se a obrigação de prestação de assistência médica assumida pela operadora de plano de saúde impõe a realização do tratamento prescrito para o câncer de mama, a ele se vincula a obrigação de custear a criopreservação dos óvulos, sendo esta devida até a alta do tratamento de quimioterapia prescrito para o câncer de mama, a partir de quando caberá à beneficiária arcar com os eventuais custos, às suas expensas, se necessário for.

 

Mais uma vez, peço novamente para não confundirem:

• usuária é infértil e busca tratamento para a infertilidade (ex: inseminação artificial): plano de saúde NÃO é obrigado a custear.

• usuária é fértil e busca a criopreservação como forma de prevenir a infertilidade: plano de saúde é obrigado a custear.


sexta-feira, 27 de outubro de 2023

O comodatário tem a obrigação de pagar o IPTU do imóvel?

O julgado comentado envolve o tema comodato.

Antes de explicar o que foi decidido, acho interessante fazer uma revisão sobre o assunto.

Se estiver sem tempo, pode ir diretamente para a explicação do julgado.

 

NOÇÕES GERAIS SOBRE COMODATO

Comodato

O comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis (art. 579 do CC).

O comodato pode ser de bens móveis ou imóveis.

Ex1: Henrique, rico empresário, empresta um pequeno apartamento para que seu primo, Mário, lá more com sua família.

Ex2: José empresta um trator para Joaquim fazer a colheita de soja em sua fazenda.

 

Partes

Comodante: é a pessoa que empresta.

Comodatário: é a pessoa que recebe a coisa em empréstimo.

 

O comodante precisa ser o dono da coisa?

Não necessariamente. O comodato é apenas a cessão do uso, não transferindo domínio. Assim, para ser comodante basta que a pessoa tenha o direito de uso sobre a coisa e que não haja nenhuma vedação legal ou contratual quanto ao empréstimo.

 

Exemplo de quem não pode fazer comodato sob os bens confiados à sua guarda:

Os tutores, curadores e em geral todos os administradores de bens alheios não poderão dar em comodato, sem autorização especial, os bens confiados à sua guarda (art. 580).

 

Características do comodato

a) Gratuito

O comodato é gratuito (art. 579).

Se fosse oneroso, iria se confundir com a locação.

Vale ressaltar que o comodante pode impor algum encargo ao comodatário sem que isso descaracterize a existência do comodato. Ex: é possível que o comodatário se comprometa a pagar algumas pequenas despesas relativas ao bem, como cotas condominiais e impostos, sem que isso faça com que o contrato deixe de ser um comodato. A doutrina chama isso de “comodato modal” ou “comodato com encargo”.

Caso arque com tais despesas, o comodatário não poderá jamais recobrar (pedir de volta) do comodante as despesas feitas com o uso e gozo da coisa emprestada (art. 584).

 

b) Seu objeto é infungível e inconsumível

Isso significa que o comodatário deverá, ao final do contrato, devolver a mesma coisa que recebeu em empréstimo.

Se a coisa emprestada for fungível ou consumível, o contrato não será de comodato, mas sim de mútuo (art. 586).

O comodato de bens fungíveis ou consumíveis só é admitido em uma única hipótese: quando destinado à ornamentação, como o de um arranjo de flores para decoração, por exemplo. É conhecido como comodatum ad pompam vel ostentationem.

 

c) Somente se aperfeiçoa com a tradição do objeto (contrato real)

O comodato é um contrato real, ou seja, é necessária a tradição (entrega) da coisa para que se aperfeiçoe. Antes da tradição não existe comodato.

 

d) Unilateral

Em regra, gera obrigações apenas para o comodatário.

Só por exceção o comodante pode assumir obrigações, posteriormente.

 

e) Temporário

O comodato é sempre temporário tendo em vista que é um mero empréstimo. Se não fosse temporário, seria, na verdade, uma doação.

Não se admite comodato vitalício.

 

Prazo determinado ou indeterminado

O comodato pode ser fixado:

· por prazo determinado;

· por prazo indeterminado (também chamado de comodato precário).

 

Prazo determinado

Se for por prazo determinado, quando chegar o dia estipulado, o comodatário deverá automaticamente devolver a coisa emprestada. Não é necessário que o comodante interpele o comodatário para que este restitua o bem.

No caso de comodato por prazo determinado: a mora é ex re (mora ex re é aquela que se verifica automaticamente pelo não cumprimento da obrigação no dia certo do vencimento. Ocorre de pleno direito, independentemente de notificação).

 

Prazo indeterminado

Se for por prazo indeterminado (não se combinou um dia exato para a devolução), entende-se que o comodato irá durar pelo tempo necessário para que o comodatário use a coisa para cumprir a finalidade que motivou o empréstimo.

Exemplos de Silvio Rodrigues: se alguém empresta um trator para ser utilizado na colheita, presume-se que o prazo do comodato se estende até o final desta; se alguém empresta um barco para que seu amigo realize uma pesca, presume-se que o comodato foi pelo prazo necessário para essa pesca.

É possível também que o comodato seja fixado com prazo indeterminado para uso mais prolongado. É o caso, por exemplo, do rico empresário que empresta um de seus apartamentos para que o primo more com a família.

O comodato por prazo indeterminado é também chamado de comodato precário.

No caso de comodato por prazo indeterminado: a mora é ex persona (a mora ex persona ocorre quando se exige a interpelação judicial ou extrajudicial do devedor para que este possa ser considerado em mora).

 

O comodante pode pedir de volta a coisa emprestada antes do fim do prazo?

Como regra geral, o comodante não pode pedir de volta a coisa emprestada antes de terminar o prazo combinado ou antes do comodatário usar a coisa para a finalidade que motivou o empréstimo.

Exceção: o comodante poderá requerer a devolução antes do prazo se conseguir provar, em ação judicial, que precisa do bem em virtude de necessidade imprevista e urgente.

Essa é a redação do CC:

Art. 581. Se o comodato não tiver prazo convencional, presumir-se-lhe-á o necessário para o uso concedido; não podendo o comodante, salvo necessidade imprevista e urgente, reconhecida pelo juiz, suspender o uso e gozo da coisa emprestada, antes de findo o prazo convencional, ou o que se determine pelo uso outorgado.

 

f) Informal:

A lei não exige forma especial para a sua validade. Pode ser até mesmo verbal.

 

g) Personalíssimo (intuitu personae):

Em regra, o comodato é um contrato personalíssimo, considerando que é celebrado levando-se em consideração a pessoa do comodatário.

Excepcionalmente, contudo, é possível que se encontrem comodatos sem essa característica.

 

Obrigações do comodatário

a) Conservar a coisa emprestada como se fosse sua

O comodatário é obrigado a conservar, como se sua própria fora a coisa emprestada, sob pena de responder por perdas e danos (art. 582).

Em caso de uma situação de perigo, se o comodatário preferir salvar as suas coisas, abandonando o bem do comodante, responderá pelo dano ocorrido, ainda que se possa atribuir o evento a caso fortuito, ou força maior (art. 583).

 

b) Arcar com as despesas ordinárias de conservação e utilização da coisa

As despesas ordinárias de conservação e utilização da coisa são de responsabilidade do comodatário, não tendo ele direito de pedir ressarcimento do comodante.

Exs: alimentação de um cavalo emprestado; despesas de luz de um apartamento emprestado; combustível e óleo do trator emprestado.

 

Art. 584. O comodatário não poderá jamais recobrar do comodante as despesas feitas com o uso e gozo da coisa emprestada.

 

E as despesas extraordinárias?

Devem ser comunicadas ao comodante, para que ele as faça ou então autorize a fazê-las.

Ex: reforma no apartamento por conta de uma infiltração.

 

c) Usar a coisa de acordo com o contrato ou com a natureza dela

O comodatário não pode usar a coisa senão de acordo com o contrato, ou a natureza dela, sob pena de responder por perdas e danos.

O uso inadequado da coisa constitui causa de resolução do contrato. Ex: Mário recebeu, em comodato, o apartamento de seu primo para que nele morasse com sua família. Ao invés disso, aluga o imóvel para um terceiro.

 

d) Restituir a coisa no prazo ajustado ou quando terminar o uso a que ela se destinava

A coisa deve ser restituída no prazo convencionado.

Se não foi fixado prazo, a coisa deve ser restituída após chegar ao fim o tempo necessário ao uso concedido.

 

Extinção do comodato

Extingue-se o comodato:

a) pelo advento do termo convencionado ou, não havendo estipulação nesse sentido, pela utilização da coisa de acordo com a finalidade para que foi emprestada;

b) em caso de descumprimento, pelo comodatário, de suas obrigações;

c) pela retomada do bem, por meio de sentença, a pedido do comodante, desde que provada a necessidade imprevista e urgente;

d) pela morte do comodatário, se o contrato foi celebrado intuitu personae. Se não foi personalíssimo, o comodato pode prosseguir com os herdeiros do comodatário. Obs: a morte do comodante não é causa de extinção do contrato;

e) pelo perecimento ou deterioração da coisa.

 

Comodatário que se nega a restituir a coisa:

O comodatário que se negar a restituir a coisa pratica esbulho.

Logo, o comodante deverá ingressar com ação de reintegração de posse para reaver a coisa.

Se o contrato era por prazo determinado, com o fim do prazo e a não devolução do bem, o comodante pode propor a ação de reintegração imediatamente (mora ex re).

Se o contrato era por prazo indeterminado, será necessária a interpelação do comodatário para que se constitua a sua mora (mora ex persona).

 

O comodatário sofrerá duas penalidades por não restituir a coisa:

• responderá pelos danos que ocorrerem na coisa se esta perecer ou se deteriorar, ainda que decorrentes de caso fortuito; e

• terá de pagar aluguel durante o tempo do atraso.

 

Aluguel pelo tempo do atraso

Se o comodatário não devolver a coisa emprestada, o comodante poderá arbitrar um valor (chamado pela lei de “aluguel”) a ser pago pelo comodatário, pelo uso da coisa além do tempo permitido. Veja a redação do CC:

Art. 582. (...) O comodatário constituído em mora, além de por ela responder, pagará, até restituí-la, o aluguel da coisa que for arbitrado pelo comodante.

 

O STJ entendeu que a natureza desse “aluguel” é de uma autêntica pena privada, tendo por objetivo coagir o comodatário a restituir, o mais rapidamente possível, a coisa emprestada, que indevidamente não foi devolvida no prazo legal. Por isso, o Min. Paulo de Tarso Sanseverino chama de “aluguel-pena”.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.175.848-PR, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 18/9/2012.

 

Se o comodatário se nega a restituir o bem, o contrato altera sua natureza e deixa de ser comodato, passando a ser um contrato de locação?

NÃO. O contrato continua sendo de comodato. Esse aluguel, como já explicado, é de natureza indenizatória, por conta do uso indevido da coisa e não tem o condão de transformar o negócio em locação. Tanto isso é verdade que a ação para retomar o bem é a ação de reintegração de posse e não a ação de despejo.

 

Quem estipula o valor desse aluguel-pena?

Esse valor é arbitrado pelo próprio comodante.

Normalmente, o valor do aluguel-pena é fixado pelo comodante na petição inicial da ação de reintegração de posse.

 

O valor desse aluguel-pena arbitrado pelo comodante pode ser superior ao valor do aluguel que seria pago pelo comodatário como média no mercado caso fosse realmente uma locação (e não um comodato)?

SIM. O montante arbitrado poderá ser superior ao valor de mercado do aluguel locatício, pois a sua finalidade não é transmudar o comodato em locação, mas coagir o comodatário a restituir o mais rapidamente possível a coisa emprestada (Min. Paulo de Tarso Sanseverino).

 

Mas há um limite?

SIM. Esse valor não pode ser exagerado, abusivo, sob pena de ser reduzido pelo juiz.

Segundo entendeu o Ministro Relator, o aluguel-pena do comodato não deve ultrapassar o dobro do preço de mercado dos aluguéis correspondentes ao imóvel emprestado.

Em suma, o aluguel-pena pode ser até o dobro do valor que o proprietário conseguiria caso fosse oferecer seu imóvel para alugar no mercado.

Explica-se, mais uma vez, que esse valor do aluguel-pena é maior que o valor do mercado porque seu objetivo é “forçar” o comodatário a devolver o bem e não transformar o contrato em uma locação. Logo, a situação tem que ficar desvantajosa para que o comodatário se sinta compelido a restituir a coisa.

 

EXPLICAÇÃO DO JULGADO

Imagine a seguinte situação hipotética:

João cedeu, em comodato, um apartamento para Sílvia morar.

Não ficou combinado entre eles quem pagaria o IPTU do imóvel.

João pensou que, como ele já havia emprestado gratuitamente, o apartamento, o mínimo que Sílvia poderia fazer seria pagar o IPTU.

Sílvia, por sua vez, achou que não tinha obrigação alguma de pagar o IPTU já que isso não ficou combinado e João possui condições econômicas bem melhores que ela.

Depois de três anos, João descobriu que o IPTU não foi pago em nenhum desses exercícios.

Com medo de ser executado e perder o apartamento, ele resolveu pagar logo os tributos atrasados.

Logo em seguida, pediu que Sílvia deixasse o imóvel e ajuizou contra ela ação de ressarcimento exigindo o pagamento de R$ 21 mil, valor que ele pagou de IPTU, acrescido de juros e multa.

A ré contestou a demanda sustentando que o IPTU tem como fato gerador a propriedade. Logo, João é quem deveria realmente pagar o imposto. A requerida argumentou que se ela pagasse, haveria enriquecimento sem causa do proprietário.

 

A discussão chegou até o STJ. Quem tem razão neste caso: João ou Sílvia?

João.

Nos termos do art. 582 do Código Civil, é dever do comodatário (no caso, Sílvia) arcar com as despesas decorrentes do uso e gozo da coisa emprestada, assim como conservar o bem como se fosse seu:

Art. 582. O comodatário é obrigado a conservar, como se sua própria fora, a coisa emprestada, não podendo usá-la senão de acordo com o contrato ou a natureza dela, sob pena de responder por perdas e danos. O comodatário constituído em mora, além de por ela responder, pagará, até restituí-la, o aluguel da coisa que for arbitrado pelo comodante.

 

Sendo o comodato espécie de contrato gratuito, não poderá o comodante (no caso, João) ser onerado pelas despesas ordinárias da coisa, exceto em caso de consentimento expresso, o que, no presente caso, não ocorreu.

Nessa linha de pensamento, o Superior Tribunal de Justiça também já decidiu no sentido de que compete ao comodatário o pagamento das despesas ordinárias para a conservação normal e manutenção regular da coisa emprestada (REsp 249.925/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/11/2000).

Assim, não há falar em enriquecimento ilícito.

Ao contrário, admitir que o comodante arque com as despesas decorrentes do uso e gozo da coisa de que o comodatário gratuitamente usufrui implicaria enriquecimento sem causa do último, o que é vedado pelo art. 884 do Código Civil:

Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.

 

Em suma:

No contrato de comodato, não poderá o comodante ser onerado pelas despesas ordinárias da coisa, exceto em caso de consentimento expresso. 

STJ. 4ª Turma. AgInt no AREsp 1.657.468-SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 21/8/2023 (Info 785).


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