Dizer o Direito

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Se a vítima disse que o filler (dublê) do alinhamento exigido pelo art. 226, II, do CPP foi o autor do crime, mas não há nenhum outro elemento concreto em seu desfavor, esse reconhecimento não é suficiente, por si só, para uma condenação

O que é o reconhecimento de pessoas e coisas?

É um meio de prova, previsto nos arts. 226 a 288 do CPP.

Um indivíduo conhece ou viu determinada pessoa ou coisa que supostamente está relacionado com um crime que está sendo apurado.

Esse indivíduo é chamado pelos órgãos de persecução penal para dizer se a pessoa ou coisa que lhe será mostrada realmente é aquela que ele conhece ou que viu.

Ex: uma testemunha viu a pessoa que matou a vítima e depois fugiu. Tempos depois, a polícia prende um homem suspeito de ser o autor do crime. Esse suspeito será mostrado à testemunha para que ela diga se ele é, ou não, o indivíduo que viu no momento do crime.

 

Formalidades

O art. 226 do CPP descreve um procedimento para a realização do reconhecimento de pessoas e coisas:

1ª etapa: o indivíduo que tiver de fazer o reconhecimento será convidado a descrever a pessoa que deva ser reconhecida. Ex: a pessoa tem aproximadamente 1,80m, pele branca, cabelo preto, uma cicatriz no rosto etc.

2ª etapa: a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança. Essas pessoas que são colocadas ao lado do suspeito são chamadas de filler*. Em seguida, pede-se para o indivíduo que fará o reconhecimento apontar qual é daquelas pessoas que estão lado a lado.

Algumas vezes, o fato de o indivíduo estar face a face com a pessoa a ser reconhecida pode gerar intimidação ou outra influência negativa que lhe impeça de dizer a verdade. Por isso, a lei permite que a pessoa a ser reconhecida não veja o indivíduo que fará o reconhecimento. Isso é feito, por exemplo, por meio de “vidros espelhados” nos quais somente um dos lados enxerga o outro. Obs: vale ressaltar essa cautela só pode ser feita na fase de investigação pré-processual. Na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento a pessoa a ser reconhecida terá direito de também ver o indivíduo que está lhe reconhecendo, sendo esse ato feito ainda na presença do juiz, do Ministério Público e da defesa.

3ª etapa: será lavrado um auto pormenorizado narrando o que ocorreu no ato de reconhecimento. Esse auto deverá ser subscrito pela autoridade, pelo indivíduo que foi chamado para fazer o reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.

 

Obs: no caso de reconhecimento de objeto também deverão ser observadas, no que couber, as cautelas previstas para o reconhecimento pessoal (art. 227).

Obs2: se várias forem as pessoas chamadas a efetuar o reconhecimento de pessoa ou de objeto, cada uma fará a prova em separado, evitando-se qualquer comunicação entre elas (art. 228).

 

* O que é o filler?

Em procedimentos de reconhecimento de pessoas, o termo “filler” refere-se a indivíduos que são incluídos em uma linha de identificação (ou “lineup”) e que não são suspeitos do crime em questão. Esses indivíduos “filler” são usados para garantir que o processo seja justo e para reduzir a probabilidade de identificações falsas.

A ideia é a seguinte: se uma vítima ou testemunha pode identificar o suspeito de um lineup que também inclui vários fillers (ou seja, pessoas que definitivamente não são o autor do crime), então há uma maior confiança de que o reconhecimento é válido. Se o lineup contivesse apenas o suspeito e nenhuma outra pessoa para comparar, a vítima ou testemunha poderia se sentir pressionada a fazer uma identificação, mesmo que não estivesse certa.

A seleção adequada de fillers é crucial para a eficácia e justiça do processo. Idealmente, os fillers devem ser semelhantes em aparência ao suspeito para que o lineup não seja tendencioso. Se o suspeito se destacar demais em relação aos fillers, isso poderia influenciar indevidamente a testemunha a escolher o suspeito.

 

Como vimos acima, o art. 226 do CPP estabelece formalidades para o reconhecimento de pessoas (reconhecimento pessoal). O descumprimento dessas formalidades enseja a nulidade do reconhecimento?

SIM. A partir do entendimento firmado no HC 598.886-SC, o STJ passou a entender que:

1) O reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime;

2) À vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo;

3) Pode o magistrado realizar, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório, bem como pode ele se convencer da autoria delitiva a partir do exame de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento;

4) O reconhecimento do suspeito por simples exibição de fotografia(s) ao reconhecedor, a par de dever seguir o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo.

STJ. 6ª Turma. HC 598.886-SC, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 27/10/2020 (Info 684).

 

Imagine agora a seguinte situação adaptada:

Três desconhecidos, um armado, entraram em uma residência e dali roubaram bens pertencentes aos moradores da casa, que foram feitos reféns.

Dias depois, as vítimas reconheceram, em álbum fotográfico de suspeitos, Isaías e Rodrigo como sendo dois dos assaltantes.

Diante disso, a polícia requereu a prisão temporária de ambos, mas apenas Isaías foi localizado e preso.

Igor e Paulo, filhos de Isaías, foram até a Delegacia de Polícia prestar assistência ao seu pai que foi preso.

Neste mesmo dia iria ocorrer, na Delegacia, o procedimento de reconhecimento pessoal, na forma do art. 226 do CPP.

O Delegado de Polícia pediu que Igor e Paulo, filhos de Isaías, fossem dublês que ficam ao lado do suspeito, na forma do inciso II do art. 226:

Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

(...)

Il - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

 

Assim, foram colocadas três pessoas uma ao lado da outra: Isaías (o suspeito) e seus filhos Igor e Paulo (que estavam lá apenas para auxiliar o pai e não eram suspeitos).

Assim, Igor e Paulo figuraram como dublês (fillers) do procedimento de reconhecimento pessoal.

As vítimas confirmaram Isaías como sendo uma das pessoas que praticou o roubo. A surpresa veio agora: as vítimas disseram que Igor também participou do roubo.

Diante disso, Isaías e Igor foram denunciados e condenados por roubo, sentença mantida pelo Tribunal de Justiça.

A defesa de Igor impetrou habeas corpus alegando que não havia indícios para a condenação.

 

O STJ concordou com o pedido da defesa?

SIM.

De início, chama a atenção uma especial peculiaridade nestes autos.

O réu (Igor) não era sequer suspeito do crime e foi à delegacia apenas para acompanhar seu pai (Isaías), que havia sido preso pelo roubo.

Para realizar o procedimento de reconhecimento pessoal do genitor, Igor concordou, junto com seu irmão Paulo, em figurar como dublê (filler) para preencher o alinhamento exigido pelo art. 226 do CPP.

Um filler, por definição, é uma “pessoa livre de qualquer suspeita de ter cometido o crime investigado, que é apresentada em conjunto com o suspeito em um alinhamento” (IDDD, Relatório “Prova sob suspeita”, p. 10, disponível em http://www.iddd.org.br/wpcontent/uploads/2021/04/linhas-defensivas-iddd.pdf).

Todavia, o ato, que era destinado apenas ao reconhecimento do suspeito (Isaías), acabou, por acaso, resultando também no reconhecimento do paciente (Igor), e foi apenas isso, sem nenhuma prova adicional, que levou à condenação dele.

Ou seja, o paciente não estava ali na condição de suspeito a ser reconhecido, mas, tão somente, de “figurante”. Admitir a condenação dele por esse reconhecimento, sem nenhum elemento de corroboração, implicaria, por consequência, aceitar o absurdo de que, toda vez que algum dublê – por exemplo, um estagiário do fórum ou da delegacia – for reconhecido por engano ao preencher o alinhamento de pessoas – acontecimento corriqueiro na praxe forense –, isso bastaria para a sua condenação. A par da pouca confiabilidade epistêmica de um reconhecimento, isoladamente considerado, para um juízo de condenação, evidencia-se ainda a total ilegalidade do ato, visto que colocado o suspeito, de meia idade, ao lado de seus filhos, muito mais jovens, sem outras pessoas e sem observar que o reconhecimento formal não pode ser feito com o alinhamento de mais de um suspeito por vez. Assim, caso se suspeitasse do envolvimento de todos eles no crime, deveria haver sido feito um alinhamento para cada um. De todo modo, ainda que, por hipótese, se considerasse formalmente válido o ato, não foi apontado nenhum outro elemento concreto que pudesse corroborar tal prova, a qual, por si só, não é suficiente para um decreto condenatório.

Em reforço a essas considerações, cabe salientar que foram aportados aos autos indícios plausíveis que atestariam a alegada inocência suscitada pela defesa, a saber:

a) três testemunhas declararam que Igor trabalhava como entregador numa lanchonete e estava a serviço no momento do crime;

b) o laudo de assistente técnico apresentado pela defesa afirmou que as características físicas do réu são incompatíveis com as dos três indivíduos que aparecem nas filmagens das câmeras de segurança;

c) era pouco plausível que o réu, se tivesse efetivamente tomado parte no roubo, iria até a delegacia acompanhar seu pai, principal suspeito do crime, e ainda aceitar participar como dublê de reconhecimento perante os ofendidos;

d) o coautor do roubo que se considerou ser o ora paciente estava, como visto na filmagem do local, com o rosto parcialmente coberto durante a ação delituosa.

 

Esses fatores, somados, fragilizam a única prova usada para condenar o paciente, e ainda suscitam razoáveis dúvidas quanto à sua alegada participação no delito, de sorte a atrair a incidência do princípio da presunção de inocência – e de um de seus consectários, a regra do in dubio pro reo – ante a carência de um standard probatório mínimo para a condenação.

A condenação de alguém, em um processo penal, não pode ser decorrente de mera convicção íntima do juiz, ou mesmo de uma convicção apoiada em prova que, confrontada por evidências contrárias, suscitem razoável dúvida quanto à narrativa acusatória, sob pena de inversão do ônus da prova, que, no âmbito criminal, recai todo sobre a acusação.

Na hipótese, houve clara violação à regra de que ninguém pode ser condenado com prova que não supere a dúvida razoável quanto à participação delitiva do acusado. É pertinente ressaltar, por oportuno, que não se trata, no caso, de negar a validade integral do depoimento das vítimas; mas sim, de negar validade à condenação baseada em prova frágil e produzida de forma ilegal.

Também não se trata, aqui, de insinuar que as vítimas mentiram.

A epistemologia do testemunho* nos alerta para o conceito de “erros honestos”. Para esse ramo da ciência, o oposto da ideia de “mentira” não é a “verdade”, mas sim a “sinceridade”. Quando se coloca em dúvida a confiabilidade do reconhecimento feito pela vítima, mesmo nas hipóteses em que ela diga ter “certeza absoluta” do que afirma, não se está a questionar a idoneidade moral daquela pessoa ou a imputar-lhe má-fé, vale dizer, não se insinua que ela esteja mentindo para incriminar um inocente. De forma alguma. O que se pondera, apenas, é que, não obstante a vítima esteja sendo sincera, isto é, afirmando aquele fato de boa-fé, a afirmação dela pode não corresponder à realidade por decorrer de um “erro honesto”, causado pelo fenômeno das falsas memórias.

 

* Epistemologia do testemunho refere-se ao estudo filosófico sobre o conhecimento adquirido através do testemunho de outras pessoas. Em outras palavras, quando alguém nos diz algo e acreditamos ou aceitamos o que nos foi dito, estamos confiando no testemunho dessa pessoa. A epistemologia do testemunho busca entender as condições sob as quais é razoável ou justificado aceitar o testemunho de alguém como fonte de conhecimento.

 

Assim, trata-se de um erro honesto, e não de uma mentira, porque a vítima acredita piamente no que está dizendo; entretanto, muitas vezes – como demonstram as inúmeras estatísticas sobre condenações injustas baseadas em reconhecimentos equivocados – sua percepção diverge do que realmente aconteceu.

Vale relembrar que, em caso de dúvida relevante no processo penal, deve prevalecer a solução favorável ao réu (favor rei). Afinal, “a certeza perseguida pelo direito penal mínimo está, ao contrário, em que nenhum inocente seja punido à custa da incerteza de que também algum culpado possa ficar impune” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 85).

Desse modo, o STJ entendeu que não era possível ratificar a condenação do acusado, visto que apoiada em prova desconforme ao modelo legal e não corroborada por elementos autônomos e independentes, suficientes, por si sós, para lastrear a autoria delitiva.

 

Em suma:


Dizer o Direito!