Dizer o Direito

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

MP não compareceu à audiência. Juíza fez todas as perguntas para as testemunhas de acusação. Defesa protestou durante o ato alegando que isso violaria o sistema acusatório, mas teve sua impugnação rejeitada. A sentença utilizou os depoimentos das testemunhas para condenar o réu. Essa condenação é válida?

Art. 212 do CPP e Lei nº 11.690/2008

O art. 212 do Código de Processo Penal dispõe sobre a forma de inquirição das testemunhas na audiência. Este dispositivo foi alterado no ano de 2008 e atualmente prevê:

Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.

Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.

(Redação dada pela Lei nº 11.690/2008)

 

Com a reforma do CPP, operada pela Lei nº 11.690/2008, a participação do juiz na inquirição das testemunhas foi reduzida ao mínimo possível.

Desse modo, as perguntas agora são formuladas diretamente pelas partes (MP e defesa) às testemunhas (sistema de inquirição direta ou cross examination).

 

Quem começa perguntando: quem arrolou

Outra inovação trazida é pela Lei nº 11.690/2008: quem começa perguntando à testemunha é a parte que teve a iniciativa de arrolá-la.

Ex: na denúncia, o MP arrolou duas testemunhas (Carlos e Fernando). A defesa, na resposta escrita, também arrolou uma testemunha (André). No momento da audiência de instrução, inicia-se ouvindo as testemunhas arroladas pelo MP (Carlos e Fernando).

 

Quem primeiro fará perguntas a essas testemunhas?

O Ministério Público. Quando o MP acabar de perguntar, a defesa terá direito de formular seus questionamentos e, por fim, o juiz poderá complementar a inquirição, se houver pontos não esclarecidos.

 

Depois de serem ouvidas todas as testemunhas de acusação, serão inquiridas as testemunhas de defesa (no exemplo dado, apenas André). Quem primeiro fará as perguntas a André?

A defesa. Quando a defesa acabar de perguntar, o Ministério Público terá direito de formular questionamentos e, por fim, o juiz poderá complementar a inquirição, se houver pontos não esclarecidos.

 

Como funciona na prática a inquirição?

As perguntas são formuladas pelas partes diretamente à testemunha.

É o chamado sistema da inquirição direta.

O sistema de inquirição direta divide-se em:

a) direct examination (quando a parte que arrolou a testemunha faz as perguntas) e

b) cross examination (quando a parte contrária é quem formula as perguntas). Em provas, contudo, é comum vir a expressão cross examination como sinônima de inquirição direta.

 

Ex: o Juiz passa a palavra ao promotor: “Dr., o senhor pode formular as perguntas diretamente à testemunha arrolada pela acusação.”

Daí, então, o Promotor inicia as perguntas, dirigindo-se diretamente à testemunha: “Você viu o réu matar a vítima? O réu segurava um revólver? Qual era a cor de sua camisa?”

 

O que o juiz fará?

Em regra, o juiz deverá apenas ficar calado, ouvindo e valorando, em seu íntimo, as perguntas e as respostas.

O juiz deverá, contudo, intervir e indeferir a pergunta formulada pela parte caso se verifique uma das seguintes situações:

a) Quando a pergunta feita pela parte puder induzir a resposta da testemunha;

b) Quando a pergunta não tiver relação com a causa;

c) Quando a pergunta for a repetição de outra já respondida.

 

Se ocorrer alguma dessas três situações, o juiz deverá indeferir a pergunta antes que a testemunha responda.

 

Como funciona na prática a ordem das perguntas?

As partes formulam as perguntas à testemunha antes do juiz, que é o último a inquirir.

A ordem de perguntas é atualmente a seguinte:

1º) A parte que arrolou a testemunha faz as perguntas que entender necessárias;

2º) A parte contrária àquela que arrolou a testemunha faz outras perguntas;

3º) O juiz, ao final, poderá complementar a inquirição sobre os pontos não esclarecidos.

 

Ex: Ivo foi arrolado como testemunha pela defesa. A defesa do réu começa perguntando. Quando acabar, o juiz passa a palavra ao MP, que irá formular as perguntas que entender necessárias. Por fim, o juiz poderá perguntar sobre algum ponto que não foi esclarecido.

 

Vimos que o juiz é, portanto, o último a perguntar, fazendo-o apenas para complementar pontos não esclarecidos.

 

Imagine agora a seguinte situação hipotética:

João foi denunciado pelo Ministério Público acusado da prática de um crime.

Foi designada audiência para oitiva das testemunhas e interrogatório do acusado.

Tanto a defesa como o Ministério Público foram intimados.

Ocorre que, no dia da audiência, o Promotor de Justiça, justificadamente, não compareceu no ato.

 

Diante disso, indaga-se: é possível que a audiência seja realizada sem a presença do Ministério Público?

SIM. Isso porque o Ministério Público foi intimado. O que se exige é a intimação do Parquet. Se ele, mesmo intimado, não comparece, o ato processual pode ser realizado, não havendo que se falar em nulidade:

Não há vício a ser sanado quando, apesar de intimado, o Ministério Público deixa de comparecer aos atos processuais.

Trata-se de nulidade relativa, devendo subsistir alegação oportuna e demonstração do prejuízo, inexistente no caso concreto.

STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp n. 1.566.596/RS, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 27/6/2017.

 

O Superior Tribunal de Justiça é firme em assinalar que da mera ausência do Ministério Público na audiência de oitiva de testemunhas não decorre a nulidade do ato, devendo a defesa oportunamente arguir a sua nulidade, com a devida comprovação do prejuízo imposto ao réu.

STJ. 6ª Turma. REsp 1.493.227/RS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 13/9/2016.

 

Voltando ao caso hipotético:

O Promotor de Justiça, apesar de devidamente intimado, não compareceu à audiência.

As testemunhas, o réu e seu advogado se fizeram presentes.

A juíza decidiu fazer a audiência sem o Ministério Público. Até aí, tudo bem.

O problema foi que a própria magistrada fez todas as perguntas para as testemunhas de acusação.

A defesa se insurgiu contra isso alegando que houve um desvirtuamento da regra do art. 212 do CPP.

A despeito disso, a Juíza rejeitou o pedido da defesa e, ao final, condenou o réu.

Na sentença, foram mencionados os depoimentos das testemunhas como sendo as provas para a condenação do réu.

A defesa impetrou habeas corpus sustentando a nulidade.

 

O pedido da defesa foi acolhido pelo STJ? Houve nulidade?

SIM.

 

Juiz assumiu o protagonismo ao inquirir sozinho as testemunhas arroladas pela acusação

No caso, consta no termo de audiência que o membro do Ministério Público não esteve presente na audiência de instrução e, mesmo sob protestos da defesa, a Magistrada processante prosseguiu com o ato, inquirindo todas as testemunhas arroladas na denúncia.

É bem verdade que a legislação infraconstitucional confere poderes instrutórios ao Juiz. O art. 209, caput e § 1º, do Código de Processo Penal, por exemplo, preceitua que, quando necessário, o Juiz pode ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes, facultando, ainda, a oitiva de testemunhas referidas:

Art. 209.  O juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes.

§ 1º Se ao juiz parecer conveniente, serão ouvidas as pessoas a que as testemunhas se referirem.

(...)

 

No entanto, o exercício de tais poderes deve ocorrer de forma residual, a fim de não substituir os sujeitos processuais a quem primeiro recai o ônus probatório.

É, justamente, afinada com esse juízo de complementaridade da atuação do Magistrado quanto à produção probatória que a atual redação do art. 212, parágrafo único, do Código de Processo Penal preleciona que “Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição”.

Como se vê, a lei não exclui o julgador do procedimento de inquirição de testemunhas, porém lhe interdita a possibilidade de atuar como protagonista do ato, em completa substituição das partes.

 

Defesa demonstrou o efetivo prejuízo

A consolidada orientação jurisprudencial do STJ dispõe que:

Tanto nos casos de nulidade relativa quanto nos casos de nulidade absoluta, o reconhecimento de vício que enseje a anulação de ato processual exige a efetiva demonstração de prejuízo ao acusado.

STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 711.657/RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 14/3/2023.

 

No caso, a defesa, de fato, se desincumbiu do ônus de demonstrar o prejuízo sofrido, tendo em vista que o decreto condenatório foi lastreado justamente no depoimento das testemunhas ouvidas em audiência de instrução sem a presença do Parquet - inquirição que foi conduzida, de forma protagonista, pela Magistrada da causa, em substituição à atividade típica das partes.

 

A matéria foi arguida em momento oportuno, não tendo havido preclusão

Ademais, a matéria foi arguida oportunamente, isto é, a Defesa manifestou seu inconformismo durante a própria audiência e, ainda, renovou a questão em alegações finais e em preliminar de apelação, razão pela qual não há se falar em preclusão.

Portanto, considerando-se o desrespeito à forma legal e, concomitantemente, a demonstração do efetivo prejuízo suportado pela ré e a ausência de preclusão da matéria arguida oportunamente, de rigor a anulação do processo-crime desde a audiência de instrução, a fim de que seja refeito o ato, desta feita, com a observância das formalidades legais.

 

Em suma:

 

No mesmo sentido:

 

A inquirição de testemunhas diretamente pelo magistrado que assume o protagonismo na audiência de instrução e julgamento viola o art. 212 do CPP.

Neste caso, o membro do MP estava na audiência, mas não fez perguntas, apenas o juiz.

STJ. 6ª Turma HC 735519-SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 16/08/2022 (Info 745).

 

(...) 5. A redação do art. 212 é clara e não encerra uma opção ou recomendação. Trata-se de norma cogente, de aplicabilidade imediata, e portanto o seu descumprimento pelo magistrado acarreta nulidade à ação penal correlata quando demonstrado prejuízo ao acusado.

6. A demonstração de efetivo prejuízo no campo das nulidades processuais penais é sempre prospectiva e nunca presumida. É dizer, não cabe ao magistrado já antecipar e prever que a inobservância a norma processual cogente gerará ou não prejuízo à parte, pois desconhece quo ante a estratégia defensiva.

7. Demonstrado, no caso dos autos, iniciativa e protagonismo exercido pelo Juízo singular na inquirição das testemunhas de acusação e verificado que foram esses elementos considerados na fundamentação do decreto condenatório, forçoso reconhecer a existência de prejuízo ao acusado.

(...) 9. Habeas corpus concedido de ofício a fim de reconhecer a nulidade da ação penal originária a partir da audiência de instrução e julgamento e, como consequência, restituir a liberdade ao acusado, a fim de que responda solto à instrução da ação penal que deverá ser renovada.

STF. 2ª Turma. HC 202557, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 03/08/2021.


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