Art. 212 do CPP e Lei nº 11.690/2008
O
art. 212 do Código de Processo Penal dispõe sobre a forma de inquirição das
testemunhas na audiência. Este dispositivo foi alterado no ano de 2008 e
atualmente prevê:
Art. 212.
As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não
admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação
com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.
Parágrafo
único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a
inquirição.
(Redação
dada pela Lei nº 11.690/2008)
Com a reforma do CPP, operada
pela Lei nº 11.690/2008, a participação do juiz na inquirição das testemunhas
foi reduzida ao mínimo possível.
Desse modo, as perguntas agora
são formuladas diretamente pelas partes (MP e defesa) às testemunhas (sistema
de inquirição direta ou cross examination).
Quem começa perguntando: quem
arrolou
Outra inovação trazida é pela
Lei nº 11.690/2008: quem começa perguntando à testemunha é a parte que teve a
iniciativa de arrolá-la.
Ex: na denúncia, o MP arrolou
duas testemunhas (Carlos e Fernando). A defesa, na resposta escrita, também
arrolou uma testemunha (André). No momento da audiência de instrução, inicia-se
ouvindo as testemunhas arroladas pelo MP (Carlos e Fernando).
Quem primeiro fará perguntas a
essas testemunhas?
O Ministério Público. Quando o
MP acabar de perguntar, a defesa terá direito de formular seus questionamentos
e, por fim, o juiz poderá complementar a inquirição, se houver pontos não
esclarecidos.
Depois de serem ouvidas todas
as testemunhas de acusação, serão inquiridas as testemunhas de defesa (no
exemplo dado, apenas André). Quem primeiro fará as perguntas a André?
A defesa. Quando a defesa
acabar de perguntar, o Ministério Público terá direito de formular
questionamentos e, por fim, o juiz poderá complementar a inquirição, se houver
pontos não esclarecidos.
Como funciona na prática a
inquirição?
As perguntas são formuladas
pelas partes diretamente à testemunha.
É o chamado sistema da inquirição direta.
O sistema de inquirição direta
divide-se em:
a) direct examination (quando
a parte que arrolou a testemunha faz as perguntas) e
b) cross examination
(quando a parte contrária é quem formula as perguntas). Em provas, contudo, é
comum vir a expressão cross examination
como sinônima de inquirição direta.
Ex: o Juiz passa a palavra ao
promotor: “Dr., o senhor pode formular as perguntas diretamente à testemunha
arrolada pela acusação.”
Daí, então, o Promotor inicia
as perguntas, dirigindo-se diretamente à testemunha: “Você viu o réu matar a vítima? O réu segurava um revólver? Qual era a
cor de sua camisa?”
O que o juiz fará?
Em regra, o juiz deverá apenas
ficar calado, ouvindo e valorando, em seu íntimo, as perguntas e as respostas.
O juiz deverá, contudo,
intervir e indeferir a pergunta formulada pela parte caso se verifique uma das
seguintes situações:
a) Quando a pergunta feita pela
parte puder induzir a resposta da testemunha;
b) Quando a pergunta não tiver
relação com a causa;
c) Quando a pergunta for a
repetição de outra já respondida.
Se ocorrer alguma dessas três
situações, o juiz deverá indeferir a pergunta antes que a testemunha responda.
Como funciona na prática a
ordem das perguntas?
As partes formulam as perguntas à testemunha antes do juiz,
que é o último a inquirir.
A ordem de perguntas é atualmente a seguinte:
1º) A parte que arrolou a testemunha faz as perguntas que
entender necessárias;
2º) A parte contrária àquela que arrolou a testemunha faz
outras perguntas;
3º) O juiz, ao final, poderá complementar a inquirição sobre
os pontos não esclarecidos.
Ex: Ivo foi arrolado como testemunha pela defesa. A defesa
do réu começa perguntando. Quando acabar, o juiz passa a palavra ao MP, que irá
formular as perguntas que entender necessárias. Por fim, o juiz poderá
perguntar sobre algum ponto que não foi esclarecido.
Vimos que o juiz é, portanto, o
último a perguntar, fazendo-o apenas para complementar pontos não esclarecidos.
Imagine agora a seguinte situação
hipotética:
João foi denunciado pelo
Ministério Público acusado da prática de um crime.
Foi designada audiência para
oitiva das testemunhas e interrogatório do acusado.
Tanto a defesa como o Ministério
Público foram intimados.
Ocorre que, no dia da audiência,
o Promotor de Justiça, justificadamente, não compareceu no ato.
Diante disso, indaga-se: é
possível que a audiência seja realizada sem a presença do Ministério Público?
SIM. Isso porque o Ministério
Público foi intimado. O que se exige é a intimação do Parquet. Se ele, mesmo
intimado, não comparece, o ato processual pode ser realizado, não havendo que
se falar em nulidade:
Não há vício a ser sanado quando, apesar de intimado, o
Ministério Público deixa de comparecer aos atos processuais.
Trata-se de nulidade relativa, devendo subsistir alegação
oportuna e demonstração do prejuízo, inexistente no caso concreto.
STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp n. 1.566.596/RS, Rel. Min. Joel Ilan
Paciornik, julgado em 27/6/2017.
O Superior Tribunal de Justiça é firme em assinalar que da mera
ausência do Ministério Público na audiência de oitiva de testemunhas não
decorre a nulidade do ato, devendo a defesa oportunamente arguir a sua
nulidade, com a devida comprovação do prejuízo imposto ao réu.
STJ. 6ª Turma. REsp 1.493.227/RS, Rel. Min. Rogerio Schietti
Cruz, julgado em 13/9/2016.
Voltando ao caso
hipotético:
O Promotor de Justiça, apesar de
devidamente intimado, não compareceu à audiência.
As testemunhas, o réu e seu
advogado se fizeram presentes.
A juíza decidiu fazer a audiência
sem o Ministério Público. Até aí, tudo bem.
O problema foi que a própria magistrada
fez todas as perguntas para as testemunhas de acusação.
A defesa se insurgiu contra isso
alegando que houve um desvirtuamento da regra do art. 212 do CPP.
A despeito disso, a Juíza
rejeitou o pedido da defesa e, ao final, condenou o réu.
Na sentença, foram mencionados os
depoimentos das testemunhas como sendo as provas para a condenação do réu.
A defesa impetrou habeas corpus
sustentando a nulidade.
O pedido da defesa foi
acolhido pelo STJ? Houve nulidade?
SIM.
Juiz assumiu o protagonismo
ao inquirir sozinho as testemunhas arroladas pela acusação
No caso, consta no termo de
audiência que o membro do Ministério Público não esteve presente na audiência
de instrução e, mesmo sob protestos da defesa, a Magistrada processante
prosseguiu com o ato, inquirindo todas as testemunhas arroladas na denúncia.
É bem verdade que a legislação infraconstitucional confere
poderes instrutórios ao Juiz. O art. 209, caput e § 1º, do Código de Processo
Penal, por exemplo, preceitua que, quando necessário, o Juiz pode ouvir outras
testemunhas, além das indicadas pelas partes, facultando, ainda, a oitiva de
testemunhas referidas:
Art. 209. O juiz, quando julgar necessário, poderá
ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes.
§ 1º Se ao juiz parecer
conveniente, serão ouvidas as pessoas a que as testemunhas se referirem.
(...)
No entanto, o exercício de tais
poderes deve ocorrer de forma residual, a fim de não substituir os sujeitos
processuais a quem primeiro recai o ônus probatório.
É, justamente, afinada com esse
juízo de complementaridade da atuação do Magistrado quanto à produção
probatória que a atual redação do art. 212, parágrafo único, do Código de
Processo Penal preleciona que “Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá
complementar a inquirição”.
Como se vê, a lei não exclui o
julgador do procedimento de inquirição de testemunhas, porém lhe interdita a
possibilidade de atuar como protagonista do ato, em completa substituição das
partes.
Defesa demonstrou o efetivo
prejuízo
A consolidada orientação
jurisprudencial do STJ dispõe que:
Tanto nos casos de nulidade relativa quanto nos casos de
nulidade absoluta, o reconhecimento de vício que enseje a anulação de ato processual
exige a efetiva demonstração de prejuízo ao acusado.
STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 711.657/RJ, Rel. Min. Laurita Vaz,
julgado em 14/3/2023.
No caso, a defesa, de fato, se
desincumbiu do ônus de demonstrar o prejuízo sofrido, tendo em vista que o
decreto condenatório foi lastreado justamente no depoimento das testemunhas
ouvidas em audiência de instrução sem a presença do Parquet - inquirição que
foi conduzida, de forma protagonista, pela Magistrada da causa, em substituição
à atividade típica das partes.
A matéria foi arguida em
momento oportuno, não tendo havido preclusão
Ademais, a matéria foi arguida
oportunamente, isto é, a Defesa manifestou seu inconformismo durante a própria
audiência e, ainda, renovou a questão em alegações finais e em preliminar de
apelação, razão pela qual não há se falar em preclusão.
Portanto, considerando-se o
desrespeito à forma legal e, concomitantemente, a demonstração do efetivo
prejuízo suportado pela ré e a ausência de preclusão da matéria arguida
oportunamente, de rigor a anulação do processo-crime desde a audiência de
instrução, a fim de que seja refeito o ato, desta feita, com a observância das
formalidades legais.
Em suma:
STJ. 6ª Turma. HC 708.007-RS, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em
18/4/2023 (Info 13 – Edição Extraordinária).
No mesmo sentido:
STJ. 6ª Turma. REsp 1.846.407-RS, Rel. Min. Sebastião Reis
Júnior, julgado em 13/12/2022 (Info 761).
A inquirição de testemunhas diretamente pelo magistrado que
assume o protagonismo na audiência de instrução e julgamento viola o art. 212
do CPP.
Neste caso, o membro do MP estava na audiência, mas não fez
perguntas, apenas o juiz.
STJ. 6ª Turma
HC 735519-SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 16/08/2022
(Info 745).
(...) 5. A redação do art. 212 é clara e não encerra uma opção
ou recomendação. Trata-se de norma cogente, de aplicabilidade imediata, e
portanto o seu descumprimento pelo magistrado acarreta nulidade à ação penal
correlata quando demonstrado prejuízo ao acusado.
6. A demonstração de efetivo prejuízo no campo das nulidades
processuais penais é sempre prospectiva e nunca presumida. É dizer, não cabe ao
magistrado já antecipar e prever que a inobservância a norma processual cogente
gerará ou não prejuízo à parte, pois desconhece quo ante a estratégia
defensiva.
7. Demonstrado, no caso dos autos, iniciativa e protagonismo
exercido pelo Juízo singular na inquirição das testemunhas de acusação e
verificado que foram esses elementos considerados na fundamentação do decreto
condenatório, forçoso reconhecer a existência de prejuízo ao acusado.
(...) 9. Habeas corpus concedido de ofício a fim de reconhecer a
nulidade da ação penal originária a partir da audiência de instrução e
julgamento e, como consequência, restituir a liberdade ao acusado, a fim de que
responda solto à instrução da ação penal que deverá ser renovada.
STF. 2ª Turma.
HC 202557, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 03/08/2021.