Imagine a seguinte situação
hipotética:
A polícia prendeu em flagrante João
que estava com cinco porções de maconha (500g) e 11 porções de cocaína (250g).
Em sua residência também foram apreendidos petrechos para o comércio de
entorpecentes, como balança de precisão.
João confessou a prática do crime e
admitiu que traficava as substâncias entorpecentes há três meses.
O agente foi denunciado pela prática
do crime de tráfico de drogas (art. 33, caput, da Lei nº 11.340/2006).
Ao final, o réu foi condenado pelo
crime de tráfico de drogas.
Irresignada, a defesa interpôs apelação pedindo o reconhecimento
da causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006:
Art. 33 (...)
§ 4º Nos delitos definidos no
caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois
terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente
seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas
nem integre organização criminosa.
O Tribunal de Justiça negou provimento
à apelação.
Ainda inconformado, o réu ingressou
com recurso especial, que não foi conhecido porque interposto fora do prazo
(intempestividade).
Houve o trânsito em julgado.
A defesa do condenado impetrou, então,
habeas corpus no STJ, aduzindo a ilegalidade do acórdão que afastou a
aplicação da causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006.
O advogado de João pediu que fosse
reconhecido o tráfico privilegiado do art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006. Com
esse reconhecimento, a pena ficaria abaixo de 4 anos e seria possível a
realização de acordo de não persecução penal.
Requereu, portanto, a redução da pena
em 2/3 e a remessa do processo à origem para que lhe fosse oportunizado o
acordo de não persecução penal.
O STJ concordou com o pedido da defesa?
SIM. O STJ não conheceu do habeas
corpus, tendo em vista o não cabimento como substituto de recurso próprio,
mas concedeu de ofício a ordem para reconhecer o tráfico privilegiado,
determinando-se a remessa dos autos ao Juízo Criminal para a proceder a
intimação do Ministério Público, a fim de possibilitar a proposta do ANPP.
Vamos entender com calma.
O que é o acordo de não persecução
penal?
O acordo de não persecução penal
é um ajuste pré-processual celebrado entre o órgão acusador e o autor do delito
se atendidos os requisitos previstos, expressamente, no Código de Processo
Penal:
1) confissão formal e
circunstanciada;
2) infração penal sem violência
ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos; e
3) necessidade e suficiência para
reprovação e prevenção do crime.
Trata-se de instituto resultante
de acordo de vontades entre o Ministério Público e o acusado com vistas a dar
solução negociada a processos cuja origem sejam crimes de menor gravidade.
Porém, não se trata de direito subjetivo do acusado, devendo existir, além da
confluência dos requisitos exigidos pela lei, o interesse do órgão acusador em
propor o acordo.
É cabível ANPP em caso de
tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/2006)?
Em regra, não. Isso porque a pena
mínima do crime de tráfico de drogas é de 5 anos, nos termos do caput do art.
33 da Lei nº 11.343/2006.
Contudo, se for reconhecida a
aplicação da minorante do tráfico privilegiado (§ 4º do art. 33), aí sim
caberá, em tese, o oferecimento de ANPP porque a pena mínima ficará abaixo de 4
anos.
Se o Ministério Público
denunciar o acusado por um crime cuja pena mínima é igual ou superior a 4 anos
não será possível o ANPP. Imagine, contudo, que, supervenientemente, há
alteração do enquadramento jurídico ou desclassificação do delito. O novo crime
resultante desse reenquadramento ou desclassificação tem pena mínima inferior a
4 anos. Diante dessa alteração, será possível abrir vista ao MP para oferecer o
ANPP?
SIM. O STJ entende que, nos casos
em que ocorre a alteração do enquadramento jurídico ou da desclassificação do
delito, seja por meio de emendatio libelli ou de mutatio libelli,
é possível aplicar o ANPP, desde que preenchidos os requisitos legais exigidos
para esse instituto negocial:
Nos casos em que houver a modificação do quadro fático-jurídico,
e, ainda, em situações em que houver a desclassificação do delito - seja por
emendatio ou mutatiolibelli -, uma vez preenchidos os requisitos legais
exigidos para o Acordo de Não Persecução Penal, torna-se cabível o instituto
negocial.
STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 2.016.905-SP, Rel. Min. Messod
Azulay Neto, julgado em 7/3/2023 (Info 772).
Aplica-se aqui, mutatis
mutandis, raciocínio similar àquele constante da Súmula 337 do STJ (É
cabível a suspensão condicional do processo na desclassificação do crime e na
procedência parcial da pretensão punitiva).
Portanto, se houver a
desclassificação da imputação para outra infração que admite benefícios
despenalizadores do art. 89, caput, da Lei nº 9.099/95, os autos do processo
devem retornar à instância de origem para aplicação desses institutos.
Voltando ao caso concreto:
A situação em análise segue o
mesmo raciocínio, uma vez que foi constatado um equívoco na descrição dos fatos
narrados para a imputação do art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006 (tráfico de
drogas) ao acusado. O MP imputou ao réu a prática do tráfico do caput do art.
33 da LD, no entanto, o correto seria ter reconhecido, já antes da denúncia,
que o agente era traficante privilegiado, merecendo o enquadramento no § 4º do
art. 33, o que permitiria o oferecimento do ANPP.
Com a aplicação da minorante
neste STJ, o acusado tem direito ao ANPP, mesmo se o Parquet tiver descrito os
fatos na denúncia de maneira imperfeita, pois o excesso de acusação
(overcharging) não deve prejudicar o acusado.
É essencial garantir que o
acusado possa usufruir do ANPP, independentemente das descrições exatas dos
fatos na denúncia. Afinal, a finalidade desse instituto é oferecer uma
alternativa para a resolução de casos penais, proporcionando uma solução
negociada.
Diante desse cenário, é
necessário que o processo retorne à sua origem para avaliar a possibilidade de
propositura do ANPP.
O que se entende por
“overcharging”?
Segundo Renato Brasileiro de Lima (Manual de processo
penal..., Juspodivm, 2023, p. 1468):
“Há abuso quando o promotor ou o querelante
classifica o fato descrito em um tipo rigoroso em vez de situá-lo em outro
menos grave e mais apropriado. Cuida-se do de nominado overcharging [classificação
excessiva], estratégia processual por meio da qual se busca
agregar fatos, crimes e fundamentos claramente desvinculados do objeto do
processo ou das provas dos autos para fins de obtenção de uma vantagem
processual indevida”.
Exemplo prático
Exemplificando, nas palavras de Renato Brasileiro de Lima
(Manual de processo penal..., Juspodivm, 2023, p. 1468):
“A título de exemplo, basta imaginar hipótese em
que, por evidente excesso da acusação, veja-se o acusado denunciado pela
prática do crime de tráfico de drogas. Ora, supondo que o juiz visualize, desde
logo, a possível desclassificação do delito de tráfico para porte de drogas
para consumo pessoal, seja em virtude da natureza e quantidade da substância
apreendida, local e condições em que se desenvolveu a ação, circunstâncias
sociais e pessoais, seja em virtude da conduta e antecedentes do agente (Lei nº
11.343/06, art. 28, § 2º), estaria o juiz obrigado a determinar o
prosseguimento do feito com a classificação de tráfico de drogas pelo simples
fato de não se admitir a realização da emendatio libelli por ocasião do juízo
de admissibilidade da peça acusatória? A nosso ver, não se cuida de rejeição da
peça acusatória, nem de aditamento pelo Ministério Público, mas sim de atuação
jurisdicional objetivando assegurar ao acusado a garantia constitucional da
liberdade provisória. Nesse caso, incumbe ao juiz receber a denúncia, o que, no
entanto, não o impede de apreciar o excesso na capitulação para admitir a
liberdade provisória, fazendo-o por meio de um juízo provisório e não de
prejulgamento do mérito da acusação. Nesse caso, como a análise da
classificação está inserida no caminho a ser percorrido pelo juiz para resolver
tal questão, torna-se impossível impedi-lo de corrigir a adequação do fato
feita pelo promotor, embora o faça de maneira incidental e provisória, apenas
para decidir quanto ao cabimento da liberdade provisória. Não faria sentido
manter o acusado preso ao longo de toda a instrução processual penal para, ao
final, desclassificar a imputação para porte de drogas para consumo pessoal, e
somente então poder colocar o acusado em liberdade”.
Continuando o exemplo
acima, é possível aplicar o chamado princípio da correção do excesso?
Explica Renato Brasileiro de Lima (Manual de processo
penal..., Juspodivm, 2023, p. 1468):
“Vige, nessa hipótese, o princípio da correção do excesso, segundo o qual o juiz
pode corrigir eventuais excessos formulados pela acusação, quando estiverem
desprovidos de justa causa. Portanto, como garantidor constitucional, e no
exercício desse mister, pode o juiz conceder benefícios legais, relativamente ao
status libertatis do acusado, se verificar a possibilidade de outra
tipificação do fato descrito na inicial, porém com a cautela de não declarar
expressamente o tipo penal que entende adequado, para não ensejar um
prejulgamento. Na mesma esteira, havendo, na peça acusatória, simples erro de
direito na classificação da imputação de fato idoneamente formulada, também é
possível que o juiz, sem antecipar formalmente a desclassificação, afaste de
imediato as consequências processuais ou procedimentais oriundas do equívoco e
prejudiciais ao acusado. Nessa hipótese de erro de direito na tipificação do
fato contido na peça acusatória, também é possível, de logo, proceder-se à
desclassificação, recebendo-se a exordial com a classificação adequada à
imputação fática, caso da qualificação jurídica dependa a fixação da
competência ou do procedimento a ser observado. Solução diversa, todavia, deve
ser aplicada quando a imputação de fato não for idônea, seja porque divorciada
dos elementos de informação disponíveis, seja porque a descrição contida na
peça acusatória não corresponda à acertada tipificação do episódio real,
segundo os elementos informativos recolhidos. É bem verdade que o órgão
jurisdicional não pode substituir-se ao órgão do Ministério Público, titular da
ação penal pública, para, a fim de retificar a classificação jurídica proposta,
aditar à denúncia elementar ou circunstância nela não contida, mesmo que
resultante dos elementos produzidos na fase investigatória, sob pena de
violação ao sistema acusatório adotado pela Constituição Federal (art. 129, I).
Isso, no entanto, não significa dizer que o juiz não possa rejeitar a peça
acusatória por ausência de justa causa (CPP, art. 395, III), quando verificar
que a denúncia veicula circunstância essencial desamparada por elementos
mínimos de suspeita plausível da sua realidade, ou quando omitir circunstância
do fato, igualmente essencial à sua qualificação jurídica, cuja realidade os
elementos de informação evidenciem”.
Em suma:
STJ. 5ª Turma. HC 822.947-GO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em
27/6/2023 (Info 13 – Edição Extraordinária).