Dizer o Direito

terça-feira, 26 de setembro de 2023

MP denunciou o acusado por crime cuja pena mínima é igual ou superior a 4 anos. No curso do processo houve a alteração do enquadramento jurídico ou a desclassificação para um delito menos grave. O novo crime menos grave tem pena mínima inferior a 4 anos. Diante dessa alteração, será possível oferecer o ANPP?

Imagine a seguinte situação hipotética:

A polícia prendeu em flagrante João que estava com cinco porções de maconha (500g) e 11 porções de cocaína (250g). Em sua residência também foram apreendidos petrechos para o comércio de entorpecentes, como balança de precisão.

João confessou a prática do crime e admitiu que traficava as substâncias entorpecentes há três meses.

O agente foi denunciado pela prática do crime de tráfico de drogas (art. 33, caput, da Lei nº 11.340/2006).

Ao final, o réu foi condenado pelo crime de tráfico de drogas.

Irresignada, a defesa interpôs apelação pedindo o reconhecimento da causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006:

Art. 33 (...)

§ 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.

 

O Tribunal de Justiça negou provimento à apelação.

Ainda inconformado, o réu ingressou com recurso especial, que não foi conhecido porque interposto fora do prazo (intempestividade).

Houve o trânsito em julgado.

A defesa do condenado impetrou, então, habeas corpus no STJ, aduzindo a ilegalidade do acórdão que afastou a aplicação da causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006.

O advogado de João pediu que fosse reconhecido o tráfico privilegiado do art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006. Com esse reconhecimento, a pena ficaria abaixo de 4 anos e seria possível a realização de acordo de não persecução penal.

Requereu, portanto, a redução da pena em 2/3 e a remessa do processo à origem para que lhe fosse oportunizado o acordo de não persecução penal.

 

O STJ concordou com o pedido da defesa?

SIM. O STJ não conheceu do habeas corpus, tendo em vista o não cabimento como substituto de recurso próprio, mas concedeu de ofício a ordem para reconhecer o tráfico privilegiado, determinando-se a remessa dos autos ao Juízo Criminal para a proceder a intimação do Ministério Público, a fim de possibilitar a proposta do ANPP.

Vamos entender com calma.

 

O que é o acordo de não persecução penal?

O acordo de não persecução penal é um ajuste pré-processual celebrado entre o órgão acusador e o autor do delito se atendidos os requisitos previstos, expressamente, no Código de Processo Penal:

1) confissão formal e circunstanciada;

2) infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos; e

3) necessidade e suficiência para reprovação e prevenção do crime.

 

Trata-se de instituto resultante de acordo de vontades entre o Ministério Público e o acusado com vistas a dar solução negociada a processos cuja origem sejam crimes de menor gravidade. Porém, não se trata de direito subjetivo do acusado, devendo existir, além da confluência dos requisitos exigidos pela lei, o interesse do órgão acusador em propor o acordo.

 

É cabível ANPP em caso de tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/2006)?

Em regra, não. Isso porque a pena mínima do crime de tráfico de drogas é de 5 anos, nos termos do caput do art. 33 da Lei nº 11.343/2006.

Contudo, se for reconhecida a aplicação da minorante do tráfico privilegiado (§ 4º do art. 33), aí sim caberá, em tese, o oferecimento de ANPP porque a pena mínima ficará abaixo de 4 anos.

 

Se o Ministério Público denunciar o acusado por um crime cuja pena mínima é igual ou superior a 4 anos não será possível o ANPP. Imagine, contudo, que, supervenientemente, há alteração do enquadramento jurídico ou desclassificação do delito. O novo crime resultante desse reenquadramento ou desclassificação tem pena mínima inferior a 4 anos. Diante dessa alteração, será possível abrir vista ao MP para oferecer o ANPP?

SIM. O STJ entende que, nos casos em que ocorre a alteração do enquadramento jurídico ou da desclassificação do delito, seja por meio de emendatio libelli ou de mutatio libelli, é possível aplicar o ANPP, desde que preenchidos os requisitos legais exigidos para esse instituto negocial:

Nos casos em que houver a modificação do quadro fático-jurídico, e, ainda, em situações em que houver a desclassificação do delito - seja por emendatio ou mutatiolibelli -, uma vez preenchidos os requisitos legais exigidos para o Acordo de Não Persecução Penal, torna-se cabível o instituto negocial.

STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 2.016.905-SP, Rel. Min. Messod Azulay Neto, julgado em 7/3/2023 (Info 772).

 

Aplica-se aqui, mutatis mutandis, raciocínio similar àquele constante da Súmula 337 do STJ (É cabível a suspensão condicional do processo na desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão punitiva).

Portanto, se houver a desclassificação da imputação para outra infração que admite benefícios despenalizadores do art. 89, caput, da Lei nº 9.099/95, os autos do processo devem retornar à instância de origem para aplicação desses institutos.

 

Voltando ao caso concreto:

A situação em análise segue o mesmo raciocínio, uma vez que foi constatado um equívoco na descrição dos fatos narrados para a imputação do art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006 (tráfico de drogas) ao acusado. O MP imputou ao réu a prática do tráfico do caput do art. 33 da LD, no entanto, o correto seria ter reconhecido, já antes da denúncia, que o agente era traficante privilegiado, merecendo o enquadramento no § 4º do art. 33, o que permitiria o oferecimento do ANPP.

Com a aplicação da minorante neste STJ, o acusado tem direito ao ANPP, mesmo se o Parquet tiver descrito os fatos na denúncia de maneira imperfeita, pois o excesso de acusação (overcharging) não deve prejudicar o acusado.

É essencial garantir que o acusado possa usufruir do ANPP, independentemente das descrições exatas dos fatos na denúncia. Afinal, a finalidade desse instituto é oferecer uma alternativa para a resolução de casos penais, proporcionando uma solução negociada.

Diante desse cenário, é necessário que o processo retorne à sua origem para avaliar a possibilidade de propositura do ANPP.

 

O que se entende por “overcharging”?

Segundo Renato Brasileiro de Lima (Manual de processo penal..., Juspodivm, 2023, p. 1468):

“Há abuso quando o promotor ou o querelante classifica o fato descrito em um tipo rigoroso em vez de situá-lo em outro menos grave e mais apropriado. Cuida-se do de nominado overcharging [classificação excessiva], estratégia processual por meio da qual se busca agregar fatos, crimes e fundamentos claramente desvinculados do objeto do processo ou das provas dos autos para fins de obtenção de uma vantagem processual indevida”.

 

Exemplo prático

Exemplificando, nas palavras de Renato Brasileiro de Lima (Manual de processo penal..., Juspodivm, 2023, p. 1468):

“A título de exemplo, basta imaginar hipótese em que, por evidente excesso da acusação, veja-se o acusado denunciado pela prática do crime de tráfico de drogas. Ora, supondo que o juiz visualize, desde logo, a possível desclassificação do delito de tráfico para porte de drogas para consumo pessoal, seja em virtude da natureza e quantidade da substância apreendida, local e condições em que se desenvolveu a ação, circunstâncias sociais e pessoais, seja em virtude da conduta e antecedentes do agente (Lei nº 11.343/06, art. 28, § 2º), estaria o juiz obrigado a determinar o prosseguimento do feito com a classificação de tráfico de drogas pelo simples fato de não se admitir a realização da emendatio libelli por ocasião do juízo de admissibilidade da peça acusatória? A nosso ver, não se cuida de rejeição da peça acusatória, nem de aditamento pelo Ministério Público, mas sim de atuação jurisdicional objetivando assegurar ao acusado a garantia constitucional da liberdade provisória. Nesse caso, incumbe ao juiz receber a denúncia, o que, no entanto, não o impede de apreciar o excesso na capitulação para admitir a liberdade provisória, fazendo-o por meio de um juízo provisório e não de prejulgamento do mérito da acusação. Nesse caso, como a análise da classificação está inserida no caminho a ser percorrido pelo juiz para resolver tal questão, torna-se impossível impedi-lo de corrigir a adequação do fato feita pelo promotor, embora o faça de maneira incidental e provisória, apenas para decidir quanto ao cabimento da liberdade provisória. Não faria sentido manter o acusado preso ao longo de toda a instrução processual penal para, ao final, desclassificar a imputação para porte de drogas para consumo pessoal, e somente então poder colocar o acusado em liberdade”.

 

Continuando o exemplo acima, é possível aplicar o chamado princípio da correção do excesso?

Explica Renato Brasileiro de Lima (Manual de processo penal..., Juspodivm, 2023, p. 1468):

“Vige, nessa hipótese, o princípio da correção do excesso, segundo o qual o juiz pode corrigir eventuais excessos formulados pela acusação, quando estiverem desprovidos de justa causa. Portanto, como garantidor constitucional, e no exercício desse mister, pode o juiz conceder benefícios legais, relativamente ao status libertatis do acusado, se verificar a possibilidade de outra tipificação do fato descrito na inicial, porém com a cautela de não declarar expressamente o tipo penal que entende adequado, para não ensejar um prejulgamento. Na mesma esteira, havendo, na peça acusatória, simples erro de direito na classificação da imputação de fato idoneamente formulada, também é possível que o juiz, sem antecipar formalmente a desclassificação, afaste de imediato as consequências processuais ou procedimentais oriundas do equívoco e prejudiciais ao acusado. Nessa hipótese de erro de direito na tipificação do fato contido na peça acusatória, também é possível, de logo, proceder-se à desclassificação, recebendo-se a exordial com a classificação adequada à imputação fática, caso da qualificação jurídica dependa a fixação da competência ou do procedimento a ser observado. Solução diversa, todavia, deve ser aplicada quando a imputação de fato não for idônea, seja porque divorciada dos elementos de informação disponíveis, seja porque a descrição contida na peça acusatória não corresponda à acertada tipificação do episódio real, segundo os elementos informativos recolhidos. É bem verdade que o órgão jurisdicional não pode substituir-se ao órgão do Ministério Público, titular da ação penal pública, para, a fim de retificar a classificação jurídica proposta, aditar à denúncia elementar ou circunstância nela não contida, mesmo que resultante dos elementos produzidos na fase investigatória, sob pena de violação ao sistema acusatório adotado pela Constituição Federal (art. 129, I). Isso, no entanto, não significa dizer que o juiz não possa rejeitar a peça acusatória por ausência de justa causa (CPP, art. 395, III), quando verificar que a denúncia veicula circunstância essencial desamparada por elementos mínimos de suspeita plausível da sua realidade, ou quando omitir circunstância do fato, igualmente essencial à sua qualificação jurídica, cuja realidade os elementos de informação evidenciem”.

 

Em suma:


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