Dizer o Direito

sábado, 16 de setembro de 2023

Imóvel que está em nome da sociedade empresária pode ser considerado bem de família se o sócio nele residir; neste caso, contudo, será possível penhorar bens pessoais do sócio já que se trata de uma via de mão dupla: deve-se proteger a moradia do sócio mas também o credor

Imagine a seguinte situação hipotética:

A empresa “XX” ingressou com execução cobrando R$ 500 mil da empresa “JJ”.

Foi encontrado um imóvel em nome da empresa executada: um apartamento.

O juiz determinou, então, a penhora desse imóvel para pagamento da dívida.

João, sócio da empresa “JJ”, apresentou embargos de terceiro provando que mora neste apartamento com seus filhos, de forma que o imóvel se constitui em bem de família.

A exequente impugnou o pedido afirmando que o imóvel está em nome da empresa devedora e que a dívida é da pessoa jurídica. Dessa forma, não há motivo para se conferir a proteção da impenhorabilidade do bem de família.

 

Qual das duas teses prevaleceu no STJ? O imóvel que está em nome da pessoa jurídica, mas onde reside o sócio também pode gozar da proteção de impenhorabilidade como bem de família?

Segundo a jurisprudência do STJ, a resposta é SIM.

No entanto, antes de mencionarmos os julgados do STJ que acolhem o argumento do devedor, é importante fazermos algumas considerações.

 

Se fossemos analisar a pergunta acima pela ótica da autonomia patrimonial, a resposta seria “não”

O art. 1º, caput, da Lei nº 8.009/90 (Lei do Bem de Família) prevê que:

Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.

 

Se analisarmos a redação literal do art. 1º da Lei nº 8.009/90 perceberemos que a proteção legal é conferida a imóvel de propriedade da pessoa física devedora, não havendo menção alguma à possibilidade de reconhecimento da impenhorabilidade a imóveis pertencentes a pessoa jurídica, notadamente em razão da inaplicabilidade dos conceitos de residência e moradia, bem como em virtude dos princípios da autonomia da vontade e da autonomia patrimonial da sociedade empresarial.

Os bens pertencentes à pessoa jurídica da qual o devedor é sócio não integram o patrimônio deste, dada a completa autonomia patrimonial da pessoa jurídica em face de seus membros.

A autonomia patrimonial configura via de mão dupla. Isso porque tem por objetivo:

• proteger o patrimônio dos sócios para que, em princípio, não respondam por dívidas relacionadas à atividade empresarial; e

• proteger o patrimônio da própria pessoa jurídica (e seus eventuais credores), no tocante a dívidas dos sócios.

 

Dessa forma, a extensão da impenhorabilidade conferida pela lei a título de bem de família a imóveis pertencentes ao patrimônio de pessoa jurídica implicaria, em regra, desrespeito à autonomia patrimonial da empresa.

 

Se fossemos analisar a pergunta acima pela ótica da boa-fé objetiva, a resposta seria “não”

Impedir a penhora do imóvel da pessoa jurídica pelo simples fato de o sócio residir no local ofende, de alguma forma, a vedação do venire contra factum proprium. Isso porque se o imóvel foi voluntariamente transferido ao patrimônio da pessoa jurídica para integralização da quota do sócio no capital da sociedade haverá um comportamento contraditório do sócio devedor alegar que esse imóvel é o seu bem de família.

 

O STJ, contudo, optou por responder “sim” à pergunta com base no direito fundamental à moradia, corolário da dignidade da pessoa humana, razão pela qual é preciso que seja dada uma interpretação ampliativa à proteção legal

Embora a Lei nº 8.009/90 confira proteção apenas ao imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, sem mencionar a extensão do benefício a imóvel que não seja de propriedade do ocupante mas de pessoa jurídica, há diversos julgados do STJ que reconheceram a impenhorabilidade de imóvel de propriedade da empresa, caso comprovado que nele residam os sócios.

No início, o STJ conferia essa proteção apenas para imóveis de pequenas empresas familiares, cujas quotas eram inteiramente pertencentes aos devedores e seus familiares, em razão da confusão patrimonial, na prática, inerente a esse tipo de sociedade.

Atualmente, contudo, a aplicação desse entendimento ocorre de forma bem ampla.

A jurisprudência desta egrégia Corte orienta-se no sentido de considerar que é impenhorável a residência do casal, ainda que de propriedade de sociedade comercial.

STJ. 4ª Turma. EDcl no AREsp 511.486/SC, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 3/3/2016.

 

(...) 1. Inafastável o entendimento desta Corte, que reconhece à impenhorabilidade de imóvel de propriedade de pessoa jurídica quando servir de residência para a família do sócio.

2. “Não se faz necessário provar que o imóvel em que reside o devedor seja o único de sua propriedade para que se reconheça a impossibilidade de penhora do bem de família, uma vez que essa exigência inexiste no conjunto de normas que disciplina a matéria” (REsp n. 1.762.249/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 4/12/2018, DJe 7/12/2018).

3. Agravo interno a que se nega provimento.

STJ. 4ª Turma. Ag no AREsp 909.458/SP, Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira, DJe 4/6/2019.

 

Ao se conferir a proteção da impenhorabilidade, o que se está fazendo é o contrário da desconsideração da personalidade jurídica; trata-se da desconsideração da personalidade jurídica POSITIVA

O art. 50 do Código Civil prevê que, se houver confusão patrimonial entre a pessoa jurídica e a de seus sócios, isso é uma hipótese que autoriza a desconsideração da personalidade jurídica. Isso para proteger o interesse do credor:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

(...)

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:

I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;

II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e

III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

 

O motivo que levou à criação da doutrina da desconsideração da personalidade, desde sua origem no direito anglo-americano (disregard of the legal entity), foi afastar temporariamente a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para satisfazer interesse do credor em razão de prática abusiva do sócio.

Quando o STJ reconhece que o imóvel que pertence à pessoa jurídica pode ser considerado bem de família pelo simples fato de o sócio nele morar, o que o Tribunal está fazendo é o inverso da desconsideração da personalidade jurídica. Isso porque neste caso se está afastando a personalidade jurídica da sociedade empresarial para se conferir proteção ao devedor que utiliza imóvel de propriedade da empresa como moradia.

Trata-se da denominada “desconsideração da personalidade jurídica positiva”, expressão cunhada pela doutrina para justificar proteção conferida pela Lei nº 8.009/90 a imóvel pertencente à pessoa jurídica, no qual residam os sócios.

Sustenta-se que “a teoria da desconsideração da personalidade sempre foi utilizada sob o aspecto negativo (punitivo/repressivo) (...)”, propondo Fábio Ricardo Rodrigues Brasilino seja utilizada também "sob o ponto de vista positivo, ou seja, para resguardo a dignidade da pessoa e outros valores constitucionais" ("A desconsideração da personalidade jurídica positiva". Revista de Direito Empresarial: ReDE, v. 2, n. 6, p. 91-105, nov./dez. 2014).

 

Proposta da Min. Maria Isabel Gallotti

No voto deste julgado ora comentado, a Min. Maria Isabel Gallotti defendeu os seguintes argumentos:

• como regra, a impenhorabilidade da Lei 8.009/90 destina-se às pessoas físicas. A desconsideração da personalidade da empresa proprietária deve ocorrer em situações particulares, de forma a não tornar letra morta o princípio basilar de direito societário da autonomia patrimonial;

• a base da aplicação da teoria da desconsideração rotulada “positiva” deve, portanto, ser a configuração da pessoa jurídica como pequena empresa familiar, em que o imóvel de moradia, embora formalmente em nome da empresa, na realidade, se confunda com o patrimônio da família.

• na linha da doutrina citada, impõe-se também a demonstração da boa-fé do sócio morador, que se infere de circunstâncias a serem aferidas caso a caso, como ser o imóvel de residência habitual da família, desde antes do vencimento da dívida, ou, em se tratando de construção, ter ela sido iniciada “antes da instauração do processo executivo”.

  condutas como a compra pela sociedade de imóveis residenciais para a moradia dos sócios, de forma a destituir a empresa de patrimônio apto a servir de meio para a satisfação das obrigações contraídas no giro de seus negócios, não devem dar ensejo a esse tipo de desconsideração.

• por outro lado, a desconsideração quando aplicada nessas hipóteses particulares deve ser via de mão dupla. Isso porque tem como pressuposto teórico a confusão entre o patrimônio da empresa familiar e o patrimônio da família (ou “identidade de patrimônios”).

• havendo desconsideração da personalidade em proveito de sócio morador de imóvel de titularidade da sociedade, haverá, na prática, desfalque do patrimônio social garantidor do cumprimento das obrigações da pessoa jurídica e, portanto, sendo a desconsideração via de mão dupla, poderão ser executados bens pessoais dos sócios até o limite do valor de mercado do bem subtraído da execução, independentemente do preenchimento de requisitos como má-fé e desvio de finalidade previstos no caput do art. 50 do Código Civil. A confusão patrimonial de ordem prática entre a sociedade familiar e o sócio morador, base para o benefício, será igualmente a base para a excussão de bens particulares dos sócios.

• essa solução preserva o princípio da integridade do capital social da empresa, atendendo à necessidade de proteção da residência familiar, escopo da Lei nº 8.009/90, sem descurar, na medida do possível dos direitos dos credores da sociedade.

 

Ficou assim no resumo do informativo original:

Havendo desconsideração da personalidade jurídica, em proveito de sócio morador de imóvel de titularidade da sociedade empresária devedora, poderão ser executados bens pessoais dos sócios até o limite do valor de mercado do bem subtraído da execução, independentemente do preenchimento de requisitos como má-fé e desvio de finalidade previstos no caput do art. 50 do Código Civil.

STJ. 4ª Turma. REsp 1.514.567-SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 14/3/2023 (Info 12 – Edição Extraordinária).

 

Confira trechos da ementa oficial:

(...) 1. A autonomia patrimonial da sociedade, princípio basilar do direito societário, configura via de mão dupla, de modo a proteger, nos termos da legislação de regência, o patrimônio dos sócios e da própria pessoa jurídica (e seus eventuais credores).

2. "A impenhorabilidade da Lei nº 8.009/90, ainda que tenha como destinatários as pessoas físicas, merece ser aplicada a certas pessoas jurídicas, às firmas individuais, às pequenas empresas com conotação familiar, por exemplo, por haver identidade de patrimônios." (FACHIN, Luiz Edson. "Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo", Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 154).

3. A desconsideração parcial da personalidade da empresa proprietária para a subtração do imóvel de moradia do sócio do patrimônio social apto a responder pelas obrigações sociais deve ocorrer em situações particulares, quando evidenciada confusão entre o patrimônio da empresa familiar e o patrimônio pessoal dos sócios.

4. Impõe-se também a demonstração da boa-fé do sócio morador, que se infere de circunstâncias a serem aferidas caso a caso, como ser o imóvel de residência habitual da família, desde antes do vencimento da dívida.

5. Havendo desconsideração da personalidade em proveito de sócio morador de imóvel de titularidade da sociedade, haverá, na prática, desfalque do patrimônio social garantidor do cumprimento das obrigações da pessoa jurídica e, portanto, sendo a desconsideração via de mão dupla, poderão ser executados bens pessoais dos sócios até o limite do valor de mercado do bem subtraído à execução, independentemente do preenchimento de requisitos como má-fé e desvio de finalidade previstos no caput do art. 50 do Código Civil. A confusão patrimonial entre a sociedade familiar e o sócio morador, base para o benefício, será igualmente o fundamento para a eventual excussão de bens particulares dos sócios.

6. Recurso especial provido para o retorno dos autos à origem, onde deve ser apreciada a prova dos autos a respeito da alegação de residência dos sócios da empresa devedora no imóvel.


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