Imagine a seguinte situação
hipotética:
Beatriz, criança representada
pela mãe, iniciou execução de alimentos contra o pai, na qual cobrou parcelas
pretéritas dos alimentos que não tinham sido pagas pelo genitor.
Na audiência de conciliação, os
genitores de Beatriz transacionaram acerca de tais parcelas, sendo que a
genitora renunciou de parte delas.
Sendo mais detalhado: o débito era
de R$ 3.270,00. O pai quitou R$ 2 mil e ficou liberado de pagar R$ 1.270,00.
Além disso, passou a pagar regularmente a pensão alimentícia dos meses
subsequentes.
O acordo foi homologado pelo
juiz.
O Ministério Público, atuando
como fiscal da ordem jurídica, interpôs recurso de apelação, no qual argumentou
que a obrigação alimentar possuía caráter irrenunciável e personalíssimo,
motivo pelo qual não poderia ter sido objeto de transação.
Sustentou ainda que estaria presente conflito de interesses
entre a criança e os genitores e que, por isso, haveria necessidade de nomeação
de curador especial, conforme dispõe o art. 72, I, do CPC, o art. 142,
parágrafo único, do ECA, art. 671, II, do CPC e 1.692 do CC:
CPC
Art. 72. O juiz nomeará curador
especial ao:
I - incapaz, se não tiver
representante legal ou se os interesses deste colidirem com os daquele,
enquanto durar a incapacidade;
(...)
Art. 671. O juiz nomeará curador especial:
I - ao ausente, se não o tiver;
II - ao incapaz, se concorrer na
partilha com o seu representante, desde que exista colisão de interesses.
ECA
Art. 142. Os menores de dezesseis
anos serão representados e os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos
assistidos por seus pais, tutores ou curadores, na forma da legislação civil ou
processual.
Parágrafo único. A autoridade
judiciária dará curador especial à criança ou adolescente, sempre que os
interesses destes colidirem com os de seus pais ou responsável, ou quando
carecer de representação ou assistência legal ainda que eventual.
CC
Art. 1.692. Sempre que no
exercício do poder familiar colidir o interesse dos pais com o do filho, a
requerimento deste ou do Ministério Público o juiz lhe dará curador especial.
O STJ acolheu os argumentos do Ministério Público?
NÃO.
É possível a renúncia dos alimentos
pretéritos devidos e não prestados
Inicialmente, é importante
esclarecer que:
É irrenunciável o direito aos alimentos presentes e futuros (art.
1.707 do Código Civil).
Contudo, o credor pode renunciar aos alimentos pretéritos
devidos e não prestados. Isso porque a irrenunciabilidade atinge o direito, e
não o seu exercício.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.529.532-DF, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas
Cueva, julgado em 09/06/2020 (Info 673).
Ausência de conflito de
interesses
O simples fato de haver entre os
genitores acordo sobre as parcelas pretéritas dos alimentos devidos ao menor
não configura, por si, conflito de interesses, devendo sempre serem analisadas
as peculiaridades do caso concreto.
Na situação analisada, em que
pese o perdão de cerca de 1/3 da dívida, não se vislumbra, em princípio,
qualquer ilegalidade na referida transação, sobretudo porque não subsiste nos
autos quaisquer elementos a revelar a prática de coação ou mesmo quadro de
extrema penúria que denunciasse eventual abusividade no exercício da renúncia
parcial do crédito.
Em reforço, cabe salientar que, no
presente caso, não se identifica grave prejuízo a alimentada, na medida em que,
ao que se percebe, sua genitora proveu seu sustento no período em que o pai permaneceu
inadimplente.
Em suma:
STJ. 4ª
Turma. Processo em segredo de justiça, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira,
julgado em 20/6/2023 (Info 12 – Edição Extraordinária).