segunda-feira, 25 de setembro de 2023
A oitiva do representado deve ser o último ato da instrução no procedimento de apuração de ato infracional
Interrogatório como último ato de
instrução
A Lei nº 11.343/2006 tipifica os delitos envolvendo drogas. Além
de prever os crimes, a referida Lei também traz o procedimento, ou seja, o rito
que deverá ser observado pelo juiz.
Desse modo, a Lei nº 11.343/2006 traz um procedimento especial que
possui algumas diferenças em relação ao procedimento comum ordinário previsto
no CPP. Uma das diferenças reside no momento em que é realizado o
interrogatório do réu. Vejamos:
CPP (art. 400) |
Lei nº 11.343/2006 (art. 57) |
O art. 400 do CPP foi alterado pela Lei nº 11.719/2008 e,
atualmente, o interrogatório deve ser feito depois da inquirição das
testemunhas e da realização das demais provas. Em suma, o interrogatório passou a ser o último ato da audiência
de instrução (segundo a antiga previsão, o interrogatório era o primeiro
ato). |
O art. 57 da Lei de Drogas prevê que, na audiência de instrução
e julgamento, o interrogatório do acusado seja feito antes da inquirição das
testemunhas. Em suma, o interrogatório é o primeiro ato da audiência de
instrução. |
O que é mais favorável ao réu: ser interrogado antes ou depois da
oitiva das testemunhas?
Depois. Isso porque após o acusado ouvir o
relato trazido pelas testemunhas poderá decidir a versão dos fatos que irá
apresentar. Se, por exemplo, avaliar que nenhuma testemunha o apontou como o
autor do crime, poderá sustentar a negativa de autoria ou optar pelo direito ao
silêncio. Ao contrário, se entender que as testemunhas foram sólidas em
incriminá-lo, terá como opção viável confessar e obter a atenuação da pena.
Dessa feita, a regra do art. 400 do CPP é mais favorável ao réu do
que a previsão do art. 57 da Lei nº 11.343/2006.
Diante dessa constatação, e pelo fato de a Lei nº 11.719/2008 ser
posterior à Lei de Drogas, surgiu uma corrente na doutrina defendendo que o
art. 57 foi derrogado e que, também no procedimento da Lei nº 11.343/2006, o
interrogatório deveria ser o último ato da audiência de instrução. Essa tese
foi acolhida pela jurisprudência?
SIM.
A exigência de realização do
interrogatório ao final da instrução criminal, conforme o art. 400 do CPP, é
aplicável:
• aos processos penais militares;
• aos processos penais eleitorais e
• a todos os procedimentos penais
regidos por legislação especial (ex: lei de drogas).
STF. Plenário. HC 127900/AM, Rel. Min.
Dias Toffoli, julgado em 3/3/2016 (Info 816).
O STJ também acompanhou a posição do STF e passo a decidir que, em
todos os procedimentos penais, independentemente de previsão legal, o
interrogatório deverá ser o último ato da instrução:
(...) 1. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC n.
127.900/AM, deu nova conformidade à norma contida no art. 400 do CPP (com
redação dada pela Lei n. 11.719/08), à luz do sistema constitucional acusatório
e dos princípios do contraditório e da ampla defesa. O interrogatório passa a
ser sempre o último ato da instrução, mesmo nos procedimentos regidos por lei
especial, caindo por terra a solução de antinomias com arrimo no princípio da
especialidade. (...)
STJ. 6ª Turma. HC 403.550/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis
Moura, julgado em 15/08/2017 (Info 609).
O ato infracional não é
crime. Mesmo assim, no procedimento de apuração de ato infracional, a oitiva do
representado deve ser o último ato da instrução?
SIM.
No procedimento de apuração do ato infracional, o
interrogatório do menor deve ocorrer ao final da instrução, nos moldes do art.
400 do CPP.
STJ. 3ª
Seção. HC 769.197/RJ, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 14/6/2023
(Info 13 – Edição Extraordinária).
Exemplo hipotético:
O adolescente Tiago foi
encontrado pela polícia praticando tráfico de drogas.
O Ministério Público representou
o adolescente pela prática do ato infracional análogo ao crime do art. 33,
caput, da Lei nº 11.343/2006.
Ao receber a representação, o juiz entendeu que a oitiva do
adolescente e de seus pais ou responsáveis deveria ser o último ato da
audiência de instrução e julgamento, em conformidade com a orientação fixada
pelo STF no HC 127.900/AM, acima mencionado, bem como pela aplicação
subsidiária do CPP prevista no art. 152, caput, do ECA:
Art. 152. Aos procedimentos
regulados nesta Lei aplicam-se subsidiariamente as normas gerais previstas na
legislação processual pertinente.
Sendo assim, o magistrado
determinou que fosse realizada a citação do adolescente para que apresentasse
resposta à representação, em 3 dias, seguindo-se os atos de saneamento,
audiência de instrução com apresentação do adolescente, alegações finais e sentença.
O Ministério Público não concordou e interpôs agravo de
instrumento, requerendo que a audiência de apresentação e oitiva do adolescente
fosse o primeiro ato processual instrutório, conforme previsão expressa dos
arts. 184 e 186 do ECA:
Art. 184. Oferecida a
representação, a
autoridade judiciária designará audiência de apresentação do adolescente,
decidindo, desde logo, sobre a decretação ou manutenção da internação,
observado o disposto no art. 108 e parágrafo.
§ 1º O adolescente e seus pais ou
responsável serão cientificados do teor da representação, e notificados a
comparecer à audiência, acompanhados de advogado.
(...)
Art. 186. Comparecendo o
adolescente, seus pais ou responsável, a autoridade judiciária procederá à oitiva dos mesmos, podendo
solicitar opinião de profissional qualificado.
(...)
Somente após a oitiva do adolescente e de seus pais, é que a
defesa irá apresentar o rol de testemunhas e o juiz designará audiência de
continuação para ouvi-las. É o que preveem os §§ 3º e 4º do art. 186:
Art. 186 (...)
§ 3º O advogado constituído ou o
defensor nomeado, no prazo de três dias contado da audiência de apresentação,
oferecerá defesa prévia e rol de testemunhas.
§ 4º Na audiência em continuação,
ouvidas as testemunhas arroladas na representação e na defesa prévia, cumpridas
as diligências e juntado o relatório da equipe interprofissional, será dada a
palavra ao representante do Ministério Público e ao defensor, sucessivamente,
pelo tempo de vinte minutos para cada um, prorrogável por mais dez, a critério
da autoridade judiciária, que em seguida proferirá decisão.
Desse modo, os arts. 184 e 186 do
ECA já preveem um procedimento específico para oitiva do adolescente infrator,
em primeiro lugar, seguido das inquirições das testemunhas.
Para o MP, não seria possível
aplicar o CPP de forma subsidiária porque não existe lacuna no ECA nesse
particular.
O STJ concordou com os
argumentos do juiz ou do MP?
Do Juiz.
A jurisprudência do STJ era firme
em assinalar, nos termos do art. 184 do ECA, não haver nulidade na oitiva do
adolescente como primeiro ato no procedimento de apuração de ato infracional,
haja vista a previsão de rito especial na legislação de regência.
No entanto, recentemente o STJ
reconheceu a aplicação do entendimento firmado no HC 127.900/AM à seara
menorista, sob o fundamento de que o menor de 18 anos deve ser ouvido após a
instrução probatória, pois não pode receber tratamento mais gravoso do que
aquele conferido ao adulto:
A oitiva do representado deve ser o último ato da instrução no
procedimento de apuração de ato infracional.
STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 772.228/SC, Rel. Min. Laurita Vaz,
julgado em 28/2/2023 (Info 766).
Na audiência de apresentação do
adolescente, é possível que ao adolescente em conflito com a lei se imponham
medidas socioeducativas, o que lhe traz considerável ônus e notória restrição à
sua liberdade.
O interrogatório de um
adolescente, em processo por ato infracional, há de ser visto também como meio
de defesa, e, portanto, para ser efetivo, precisa ser realizado como ato final
da instrução, a fim de que a pessoa processada tenha condições de melhor apresentar
sua defesa e influenciar a futura decisão judicial. Essa ordem de produção da
prova preserva os direitos e as garantias dos adolescentes, os quais não podem
ser tratados como mero objetos da atividade sancionadora estatal (art. 100,
parágrafo único, I, do ECA).
O art. 3º da Lei nº 8.069/90
(ECA) assegura aos adolescentes “todos os direitos fundamentais inerentes à
pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata essa lei”.
O art. 110, do mesmo estatuto,
dispõe: “Nenhum adolescente será privado de sua liberdade sem o devido processo
legal”.
Por sua vez, a Constituição
Federal de 1988 nos mostra a abrangência dessa garantia, ao assegurar, no art.
5º,m LV, da CF, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e os recursos a
ela inerentes, aos acusados em geral, direito que engloba a perspectiva de o
próprio processado confrontar as imputações e as provas produzidas em seu
desfavor. Como não é possível se defender de algo que não se sabe, o
interrogatório deve ser realizado nos moldes do art. 400 do CPP, como último
ato instrutório.
Modulação dos efeitos
O entendimento acima é o que
melhor se coaduna com um devido processo justo. Todavia, faz-se necessária a
modulação da alteração jurisprudencial, a fim de que a inovação no ordenamento
jurídico não comprometa a segurança jurídica e culmine em declaração de
invalidade de todas as representações ajuizadas no país desde a promulgação da
Constituição Federal e a vigência da Lei nº 8.069/90.
Deve-se limitar os efeitos
retrospectivos do julgado a partir de 3/3/2016, data em que o Tribunal Pleno do
Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 127.900/AM, sinalizou que o art.
400 do CPP era aplicável aos ritos previstos em leis especiais.
Assim, neste julgado foi proposto
o aperfeiçoamento da jurisprudência do STJ, para fixação das seguintes
orientações:
a) em consonância com o art. 184
do ECA, oferecida a representação, a autoridade judiciária designará audiência
de apresentação do adolescente, e decidirá, desde logo, sobre a decretação ou
manutenção da internação provisória e sobre a remissão, que pode ser concedida
a qualquer tempo antes da sentença;
b) é vedada a atividade
probatória na audiência de apresentação, e eventual colheita de confissão nessa
oportunidade não poderá, de per se, lastrear a procedência da representação;
c) diante da lacuna na Lei nº
8.069/1990, aplica-se de forma supletiva o art. 400 do CPP ao procedimento
especial de apuração do ato infracional, garantido ao adolescente o
interrogatório ao final da instrução, perante o Juiz competente, depois de ter
ciência do acervo probatório produzido em seu desfavor;
d) o novo entendimento é
aplicável aos processos com instrução encerrada após 3/3/2016, conforme julgado
proferido pelo Supremo Tribunal Federal no HC n. 127.900/AM, Rel. Ministro Dias
Toffoli, Tribunal Pleno;
e) regra geral, para acolhimento
da tese de nulidade, faz-se necessário que a defesa a aponte em momento
processual oportuno, quando o prejuízo à parte é identificável por mero
raciocínio jurídico, por inobservância do direito à autodefesa.