segunda-feira, 7 de agosto de 2023
Se ficar demonstrado que a infecção hospitalar tem liame causal com os danos sofridos por recém-nascido, o hospital deverá indenizar mesmo que o bebê já tenha nascido prematuro e com baixo peso
Imagine a seguinte situação adaptada:
Lucas nasceu prematuro e com
baixo peso.
Por esse motivo, precisou ficar
internado na UTI neonatal.
Durante o período em que ficou
internado, Lucas adquiriu severa infecção hospitalar. Felizmente, ele conseguiu
sobreviver, no entanto, lamentavelmente, ficou com sequelas.
Vale ressaltar que, além de
Lucas, outras crianças que estavam internadas e que nem eram prematuras, também
tiveram infecção hospitalar no mesmo período.
Lucas e sua mãe ajuizaram ação de
indenização por danos morais e materiais contra o hospital.
A instituição de saúde contestou
argumentando que a prematuridade e o baixo peso do bebê foram causas que
contribuíram para as sequelas sofridas. Logo, aplicando-se a teoria da
equivalência dos antecedentes, conclui-se que a prematuridade extrema e o baixo
peso foram predominantes para as implicações causadas pela infecção hospitalar,
motivo pelo qual a instituição de saúde não teria o dever de indenizar.
A questão chegou até o STJ.
O Tribunal concordou com os argumentos do hospital?
NÃO.
STJ. 4ª Turma. REsp 2.069.914/DF, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em
6/6/2023 (Info 778).
Nexo causal
O nexo causal é um dos pressupostos
da responsabilidade civil, seja ela objetiva ou subjetiva.
No âmbito do direito civil, o
nexo de causalidade é analisado a partir do art. 403 do CC, segundo o qual os
prejuízos indenizáveis ou ressarcíveis são aqueles que decorrem direta e imediatamente do seu fato gerador.
Foram desenvolvidas, ao longo do
tempo, algumas teorias para melhor elucidar o nexo de causalidade.
Teorias
clássicas sobre o nexo causal na responsabilidade civil
TEORIAS CLÁSSICAS SOBRE O NEXO CAUSAL NA RESPONSABILIDADE CIVIL |
||
Teoria da equivalência das condições [1] |
Teoria da causalidade adequada |
Teoria do dano direto e imediato [2] |
Equivalência das condições, ou seja, tudo aquilo
que antecede o dano será considerado sua causa. |
Nem toda e qualquer condição (ou antecedente) é
causa do dano, e sim apenas aquela adequada/apta/idônea. |
Somente a condição imediata e direta é
necessariamente a causa do dano. |
Ex.: se o agente bate o seu carro em outro veículo,
não só ele seria responsabilizado como também o fabricante e a concessionária
(= infinita espiral de concausas). |
Ex.: se o agente bate o seu carro em outro veículo,
o fabricante e a concessionária não seriam “causa adequada” para o dano. |
Ex.: somente o agente que bate o seu carro em outro
veículo é o responsável pelo dano. |
[1] Também chamada de “teoria da
equivalência dos antecedentes” ou “teoria do histórico dos antecedentes (sine qua non)”.
[2] Também chamada de “teoria da
interrupção do nexo causal” ou “teoria da causalidade necessária”.
Segundo afirmou o Min. Marco
Buzzi, em seu voto, o Direito Civil adotou, precipuamente, as teorias da
causalidade adequada e do dano direto e imediato, que somente consideram
existente o nexo causal quando o dano é efeito necessário e/ou adequado de uma
causa (ação ou omissão).
É diferente do Direito Penal, no
qual é empregada a teoria da equivalência dos antecedentes - conditio sine
qua non -, onde não há distinção entre causa e condição, de forma que tudo
aquilo que contribui para a ocorrência do crime gera responsabilidade penal
(art. 13 do CP).
Jurisprudência do STJ, em
muitas vezes, usa a teoria da causalidade adequada e a teoria do dano direto e
imediato como se fossem sinônimas
A jurisprudência do STJ não
distingue de maneira muito explícita as aludidas teorias, usando-as como
sinônimos em diversos julgados, como se vê abaixo:
(...) 2. Na aferição do nexo de causalidade, a doutrina majoritária de Direito Civil
adota a teoria da causalidade adequada ou do dano direto e imediato, de
maneira que somente se considera existente o nexo causal quando o dano é efeito
necessário e adequado da causa cogitada (ação ou omissão). Logo, a configuração
do nexo de causalidade, a ensejar a responsabilidade civil do agente, demanda a
comprovação de conduta comissiva ou omissiva determinante e diretamente atrelada
ao dano. (...)
STJ. 4ª Turma. AgInt no REsp 1.401.555/MG, Rel. Min. Raul
Araújo, julgado em 3/10/2022.
O direito brasileiro adota, no campo civil, a chamada “Teoria da
Causalidade Adequada” (ou dos “Danos Diretos e Imediatos”), segundo a qual
somente se considera existente o nexo causal em relação à conduta que se
afigura determinante para a ocorrência do dano.
STJ. 4ª Turma. AgInt no REsp 1.791.440/BA, Rel. Min. Antonio
Carlos Ferreira, julgado em 26/10/2020.
Dessa forma, a configuração do
nexo de causalidade, no caso concreto, deve ser apreciada nos moldes da teoria
da causalidade adequada (ou dos danos diretos e imediatos).
O que o hospital pretende é
aplicar a teoria da equivalência dos antecedentes para se isentar da
responsabilidade
O hospital, sem refutar que houve
infecção hospitalar (falha na prestação do serviço nosocomial), defendeu que a
prematuridade extrema e o baixo peso foram predominantes para as implicações
causadas pela infecção. Com isso, pretende adotar a teoria da equivalência dos
antecedentes.
Vale ressaltar, contudo, que essa
não é a teoria adotada para responsabilidade civil.
Responsabilidade civil no
Código de Defesa do Consumidor
Trazendo também a análise para a
ótica do direito consumerista, é importante recordar que, de acordo com a o
art. 14 do CDC, o prestador de serviço responde, independentemente de culpa,
pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos em seu
fornecimento.
Com base nesse dispositivo, o STJ
possui jurisprudência consolidada no sentido de que é objetiva a responsabilidade
do hospital nos casos relacionados à falha na prestação de serviço, sobretudo
nos quais os danos sofridos resultam de infecção hospitalar, revelando-se
desnecessária a comprovação de erro médico (culpa lato sensu).
Segundo a jurisprudência desta Corte Superior, a
responsabilidade dos hospitais e clínicas (fornecedores de serviços) é
objetiva, dispensando a comprovação de culpa, notadamente nos casos em que os
danos sofridos resultam de infecção hospitalar.
STJ. 4ª Turma. AgInt no AREsp 608.350/SP, Rel. Min. Antonio
Carlos Ferreira, julgado em 7/12/2020.
O § 3º do art. 14 do CDC
estabelece que as causas excludentes de responsabilidade são:
a) a inexistência de defeito do
serviço;
b) o fato exclusivo da vítima ou
de terceiros.
O ônus de provar qualquer uma
dessas causas é do hospital:
A culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro deve ser
cabalmente comprovada pelo fornecedor de serviços, a fim de romper o nexo de
causalidade e, consequentemente, ilidir a sua responsabilidade objetiva.
STJ. 3ª Turma. AgInt no AREsp 1.604.779/SP, Rel. Min. Marco
Aurélio Bellizze, julgado em 20/4/2020.
A prematuridade e o baixo
peso do recém-nascido não afastam a responsabilidade do hospital em caso de
infecção hospitalar
O hospital busca afastar sua
responsabilidade objetiva sob a alegação de fato exclusivo do consumidor,
fundamentando sua tese na gravidez tardia da genitora, no parto prematuro, no
colo do útero curto e nas condições físicas do menor ao nascer, quais sejam,
prematuridade extrema e baixo peso.
Essas circunstâncias são, na
verdade, riscos intrínsecos à própria atividade desenvolvida pelo hospital, não
se mostrando aptos a rechaçar o nexo de causalidade entre a falha no
fornecimento do serviço e as sequelas sofridas pelo menor.
Os casos de prematuridade no
Brasil, segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria, representam cerca de 12%
(entre 10 e 15%) dos recém-nascidos no país, dos 3 milhões de nascidos vivos.
Isso significa que cerca de 360 mil crianças nascem prematuras todo ano, quase
mil crianças ao dia. (Nota técnica 2019: Prematuridade; Sociedade Brasileira de
Pediatria, disponível em:
https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/Nota_Tecnica_2019_Prematuridade.pdf;).
Como se vê, as condições pessoais
do bebê apontadas pelo hospital (prematuridade e baixo peso), não se revelam
fatores extraordinários ou raros, mas sim rotineiros e frequentes no ambiente
nosocomial.
Apesar de a prematuridade e do
baixo peso serem fatores que potencializam o risco de infecções hospitalares,
houve também, no caso, o contágio de bebês sem essas características, ou seja,
recém-nascidos que não eram prematuros, o que afasta a presunção de que tais
condições foram determinantes para o contágio da infecção hospitalar.
Portanto, a única causa
necessária e preponderante para o desenvolvimento do quadro de saúde da criança
evidenciada foi a infecção hospitalar adquirida na UTI neonatal, porquanto
ausente a demonstração do nexo de causalidade entre as condições do
recém-nascido e os danos por ele suportados.
Em suma:
A infecção hospitalar que, reconhecidamente tem liame
causal com os danos sofridos por recém-nascido, impõe o afastamento das
concausas - a prematuridade e o baixo peso do bebê recém-nascido -, atraindo
assim a responsabilidade do hospital pelo pagamento integral das indenizações,
à luz da teoria da causalidade adequada (dano direto e imediato).
STJ. 4ª
Turma. REsp 2.069.914/DF, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 6/6/2023 (Info
778).
A título de curiosidade, a sentença
– mantida ao final pelo STJ – condenou o hospital a pagar:
a) danos materiais no valor de R$
60.876,44;
b) todos os medicamentos,
consultas e materiais de estimulação,
bem como os tratamentos e terapias, que se fizerem necessários para o prolongamento e melhora da qualidade de vida
do menor;
c) pensionamento, em favor da
criança, no valor de 4 salários-mínimos, a partir da data em que completar 14
anos, em razão de o ato ilícito ter lhe causado a diminuição da capacidade para
o trabalho;
d) danos morais do menor em R$
100 mil e da genitora em R$ 50 mil;
e R$ 100 mil para a criança, a
título de indenização pelos danos estéticos.