Imagine a seguinte situação adaptada:
Policiais realizavam
patrulhamento de rotina em local conhecido como ponto de venda de drogas,
quando avistaram João em atitude suspeita, pois ele se agachou e se escondeu
atrás de um veículo estacionado, após notar a presença da viatura policial.
Próximo ao local da abordagem, os
policiais encontraram uma sacola plástica que continha entorpecentes destinados
à venda.
O suspeito foi conduzido à
delegacia e permaneceu em silêncio diante da autoridade policial.
João foi denunciado pelo crime de tráfico de drogas.
Em depoimento, os policiais responsáveis pela prisão não se lembravam com
detalhes do que aconteceu, onde a sacola foi encontrada, qual era a droga nem a
quantidade apreendida. Relataram que avistaram o acusado descartando as drogas e
que ao ser preso, admitiu que, por estar em dificuldades financeiras,
resolveu traficar.
Interrogado em juízo, o réu negou
o tráfico de drogas, dizendo que se dirigiu ao local para comprar entorpecente
para seu uso e, ante a aproximação da viatura policial, se abaixou para não ser
visto, enquanto o traficante correu para dentro de uma casa e o entorpecente
foi localizado junto ao portão daquela casa.
A magistrada entendeu que os
fatos provados no curso do processo eram compatíveis com a hipótese fática
trazida pela defesa, de que o réu não traficava, senão que teria acabado de
comprar droga para consumo próprio. Ela sinalizou que os testemunhos dos
policiais deixaram lacunas que impuseram a absolvição do réu.
O Ministério Público interpôs apelação, pugnando pela condenação
do réu nos termos da denúncia.
O Tribunal de Justiça, ao dar provimento ao recurso do MP e
estabelecer a condenação do réu, entendeu suficientemente demonstrada a
veracidade dos fatos narrados na denúncia e concluiu que a negativa judicial
prestada em depoimento era frágil, em razão do silencio do réu perante a
autoridade policial.
O trecho do acórdão foi o seguinte:
“Fosse
verdadeira a frágil negativa judicial, certamente o réu a teria apresentado
perante a autoridade policial, quando, entretanto, valeu-se do direito
constitucional ao silêncio, comportamento que, se por um lado não pode
prejudicá-lo, por outro permite afirmar que a simplória negativa é mera
tentativa de se livrar da condenação”.
A defesa interpôs recurso
especial alegando, em síntese, que houve “violação da garantia legal ao
silêncio, prevista no 186 do Código de Processo Penal, pois se consignou no
acórdão condenatório que o silêncio do réu na fase policial faz prova contra
ele e leva a ausência de credibilidade de sua negativa de autoria em juízo”.
O STJ concordou com os argumentos da defesa?
SIM.
O direito ao silêncio, enumerado
na Constituição Federal como direito de permanecer calado, é sucedâneo lógico
do princípio nemo tenetur se detegere. Nesse sentido, é equivocado
qualquer entendimento de que se conclua que seu exercício possa acarretar alguma
punição ao acusado. A pessoa não pode ser punida por realizar um comportamento
a que tem direito.
O art. 5º, inc. LXIII, da CF/88, não deixa dúvidas quanto à
não recepção do art. 198 do CPP, quando diz que o silêncio do acusado, ainda
que não importe em confissão, poderá se constituir elemento para a formação do
convencimento do juiz:
Art. 5º (...)
LXIII - o preso será informado de
seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a
assistência da família e de advogado;
CPP
Art. 198. O silêncio do acusado não importará
confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do
juiz. (não recepcionado pela CF/88)
Esse reprovável subterfúgio
processual foi enfrentado pelo STJ no julgamento do HC 330.559/SC. Consta, na
ementa daquela decisão que:
Na verdade, qualquer pessoa ao confrontar-se com o Estado em sua
atividade persecutória, deve ter a proteção jurídica contra eventual tentativa
de induzir-lhe à produção de prova favorável ao interesse punitivo estatal,
especialmente se do silêncio puder decorrer responsabilização penal do próprio
depoente.
STJ. 6ª Turma. HC
330559/SC, Rel. Min. Rogerio Schietti, DJe 9/10/2018.
No caso, a absolvição em primeira
instância foi revista pelo Tribunal que, acolhendo a apelação interposta pela
acusação, condenou o réu pela prática do delito incurso no art. 33, caput, da
Lei nº 11.343/2006.
Na linha argumentativa
desenvolvida a negativa do réu em juízo quanto à comissão do delito seria
estratégia para evitar a condenação. As exatas palavras utilizadas no acórdão
recorrido foram que: “Fosse verdadeira a frágil negativa judicial, certamente o
réu a teria apresentado perante a autoridade policial, quando entretanto,
valeu-se do direito constitucional ao silêncio, comportamento que, se por um
lado não pode prejudicá-lo, por outro permite afirmar que a simplória negativa
é mera tentativa de se livrar da condenação”. Houve, portanto, violação direta
ao art. 186 do CPP.
O raciocínio enviesado que
concedeu inequívoco valor de verdade à palavra dos policiais e que interpretou
a negativa do acusado em juízo como mentira, teve o silêncio do réu em sede
policial como ponto de partida. A instância de segundo grau erroneamente
preencheu o silêncio do réu com palavras que ele pode nunca ter pronunciado, já
que, do ponto de vista processual-probatório, tem-se apenas o que os policiais
afirmaram haver escutado, em modo informal, ainda no local do fato.
Decidiu o Tribunal estadual,
então, que, se de um lado havia razões para crer que o réu mentia em juízo, de
outro, estavam os desembargadores julgadores autorizados a acreditar que os
policiais é que traziam relatos correspondentes à realidade, ao afirmarem:
1) que avistaram o acusado
descartando as drogas que foram encontradas no chão;
2) que a balança de precisão que
estava no interior de um carro abandonado seria do acusado e, adicionalmente;
3) que ainda na cena do crime, o
recorrente haveria confessado informalmente que, sim, traficava.
Essa narrativa toma como verídica
uma situação em que o investigado ofereceu àqueles policiais,
desembaraçadamente, a verdade dos fatos, em retribuição à empatia com que fora
tratado por eles; como se houvesse confidenciado um segredo a novos amigos, e
não confessado a prática de um delito a agentes da lei. Se é que de fato o
acusado confirmou para os policiais que traficava por passar por dificuldades
financeiras, é ingenuidade supor que o tenha feito em cenário totalmente livre
da mais mínima injusta pressão.
O Tribunal incorreu em injustiças
epistêmicas de diversos tipos, seja por excesso de credibilidade conferido ao
testemunho dos policiais, seja a injustiça epistêmica cometida contra o réu, ao
lhe conferir credibilidade justamente quando menos teve oportunidade de atuar
como sujeito de direitos.
Nesse contexto, é preciso
reconhecer que, se se pretende aproveitar a palavra do policial, impõe-se a
exigência de respaldo probatório que vá além do silêncio do investigado ou réu.
O silêncio não descredibiliza o imputado e não autoriza que magistrados
concedam automática presunção de veracidade às versões sustentadas por
policiais.
Por fim, ante a manifesta
escassez probatória que - em violação ao art. 186 do CPP - se extraiu do
silêncio do acusado inferências que a lei não autoriza extrair, impõe-se
reconhecer que o standard probatório próprio do processo penal, para a
condenação, não foi superado.
Em suma:
STJ. 6ª
Turma. REsp 2.037.491-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 6/6/2023 (Info
780).
DOD Plus – fique atenta (o) para essas expressões
mencionadas no acórdão do STJ:
1) Injustiça epistêmica
testemunhal
Conforme nos ensinam os seus estudiosos, sociedades marcadas
por preconceitos identitários — como, aliás, é o caso da sociedade brasileira —
acabam por apresentar trocas comunicativas injustas. Por vezes, a pessoa deixa
de ser considerada enquanto sujeito capaz de conhecer o mundo adequadamente
pelo simples fato de ser quem é. Sobre essas situações, Miranda Fricker explica
que se comete uma injustiça epistêmica testemunhal quando um ouvinte reduz a
credibilidade do relato oferecido por um falante por ter, contra ele, ainda que
não de forma consciente e deliberada, algum(s) preconceito(s) identitário(s)
(FRICKER, Miranda. Epistemic
Injustice: Power and the ethics of knowing. Oxford: Oxford University Press,
2007). Negros em sociedades racistas, mulheres e pessoas LGBTQIA+ em
sociedades machistas, pessoas com deficiência em sociedades capacitistas são
alguns exemplos de vítimas sistemáticas de injustiça epistêmica testemunhal. Indivíduos
provenientes de grupos sociais vulnerabilizados têm de enfrentar o peso dessa
realidade opressora nos mais diversos contextos, inclusive no contexto da
justiça criminal.
2) Injustiça epistêmica
agencial (múltiplas injustiças epistêmicas contra um mesmo sujeito)
Ademais, analisando o fenômeno das falsas confissões, autores como
Jennifer Lackey sinalizam que o sistema de justiça acaba praticando múltiplas injustiças
epistêmicas contra um mesmo sujeito: ao confessar (ainda que sob
tortura, maus tratos, ameaça, pressão psicológica etc.), o investigado/acusado
tem rapidamente reconhecida a sua credibilidade; quando, ao contrário, busca se
retratar, já não é considerado merecedor do mais mínimo grau de credibilidade.
Trata-se de um paradoxo: acreditam que o relato do sujeito corresponde a uma
correta reconstrução dos fatos precisamente quando ele tem menos preservada a
sua autonomia cognitiva; de outro lado, quando mais pode trazer declarações
confiáveis, porquanto emitidas sem injustas pressões externas, aí é que não se
observa mínima disposição para acreditar em suas palavras. Essa falaciosa
economia de credibilidades que o sistema de justiça oferece a um único e mesmo
sujeito em distintos momentos constitui claro exemplo do que Lackey nomeou de injustiça epistêmica
agencial (LACKEY, Jennifer. False confessions and testimonial injustice. In Journal of Criminal Law
& Criminology, v. 110, p. 43-68, p. 60, 2020).
Veja o que a doutrina fala sobre (palavras-chave:
injustiça epistêmica agencial, confissão, valoração da prova):
“Expandindo os trabalhos originais de
Fricker, Jennifer Lackey propôs recentemente a ideia de injustiça epistêmica agencial (agential epistemic injustice) –
ou injustiça testemunhal agencial – para se
referir à categoria de injustos caracterizados pelo excesso de credibilidade
atribuído à fala de um sujeito nas situações em que sua capacidade de
autodeterminação (agência) é diminuída ou suprimida, aliado ao déficit de
credibilidade que o mesmo sujeito recebe quando, em um cenário de maior
agência, retrata-se da narrativa primeva. O principal fenômeno processual penal
que interessa à injustiça epistêmica agencial é a confissão extrajudicial e sua
retratação em juízo – especificamente na maior confiabilidade atribuída por
Tribunais, promotores e policiais à primeira confissão prestada pelo
investigado, ainda no inquérito, quando confrontada com a retratação judicial.
Constatou Lackey que, não raro, o único momento em que o réu recebe alguma
credibilidade no processo penal é quando confirma o teor da acusação, independentemente
do grau de voluntariedade de suas palavras (isto é, do seu nível de agência
epistêmica quando da extração da confissão). Se, posteriormente, retrata-se da
confissão e passa a afirmar sua inocência, é improvável que essa nova postura
encontre a mesma receptividade entre os agentes encarregados da persecução
penal.” (DANTAS, Marcelo; MOTTA, Thiago. Injustiça epistêmica agencial no
processo penal e o problema das confissões extrajudiciais retratadas. DOI: https://doi.org/10.22197/rbdpp.v9i1.791).
3) Racismo estrutural
Nessa perspectiva, e ante a circunstância de que o
recorrente é pardo, cabe a lembrança do pensamento de Sueli Carneiro, acerca do
racismo estrutural que permeia a sociedade brasileira: "No caso do negro,
a cor opera como metáfora de um crime de origem da qual a cor é uma espécie de
prova, marca ou sinal que justifica a presunção de culpa. Para Foucault,
'ninguém é suspeito impunemente', ou seja, a culpa presumida pelo a priori
cromático desdobra-se em punição a priori, preventiva e educativa. A suspeição
transforma a cena social para os negros em uma espécie de panóptico virtual, 'a
vigilância sobre os indivíduos se exerce ao nível não do que se faz, mas do que
se é, não do que se faz, mas do que se pode fazer'. Assim, a própria cena
social é onde se realiza a vigilância e a punição como tecnologias de controle
social". (CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do
outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023, p. 125)