domingo, 20 de agosto de 2023
É possível a penhora de valores que estão na conta corrente da esposa do devedor mesmo que ela não tenha sido parte na fase de conhecimento? O regime de bens interfere nessa análise?
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João ajuizou ação de cobrança
contra Pedro.
A sentença foi julgada condenando
Pedro a pagar R$ 100 mil.
Houve trânsito em julgado.
João iniciou o cumprimento de
sentença.
Não foram localizados bens
penhoráveis em nome de Pedro.
João sabia que Regina, esposa de Pedro,
apresentava alto padrão de vida.
Diante disso, o credor pediu ao
juiz que determinasse a penhora on-line de 50% dos valores depositados nas
contas bancárias de Regina. João argumentou e comprovou que Pedro e Regina são
casados sob o regime da comunhão universal de bens. Logo, essa penhora seria
possível, resguardando-se 50% dos valores, que seriam a meação de Regina.
O juiz deferiu o pedido. Foram
encontrados R$ 80 mil na conta corrente de Regina. O magistrado fez a penhora
de R$ 40 mil para que eles fossem utilizados para o pagamento da dívida.
Regina recorreu alegando que ela
não foi parte no processo, razão pela qual não poderia ter seus bens atingidos
pela penhora.
A discussão chegou até o
STJ. O que o Tribunal decidiu? Foi correta a decisão do magistrado?
SIM.
É possível a penhora de valores
em conta corrente da esposa do devedor, se eles forem casados sob o regime da
comunhão universal de bens. Vale ressaltar, contudo, que se deve resguardar a
meação da esposa porque esse valor é apenas dela.
Vamos entender melhor.
Regime da comunhão
universal
O art. 1.667 do Código Civil, ao tratar sobre o regime da comunhão
universal de bens, prevê:
Art. 1.667. O regime de comunhão
universal importa a comunicação de todos os bens presentes e futuros dos
cônjuges e suas dívidas passivas, com as exceções do artigo seguinte.
Assim, no regime da comunhão universal, todos os bens que os
cônjuges adquirirem antes e durante o matrimônio, bem como as respectivas
dívidas, pertencerão a ambos, com exceção do disposto nos incisos I a V do art.
1.668 do Código Civil:
Art. 1.668. São excluídos da
comunhão:
I - os bens doados ou herdados
com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar;
II - os bens gravados de
fideicomisso e o direito do herdeiro fideicomissário, antes de realizada a
condição suspensiva;
III - as dívidas anteriores ao
casamento, salvo se provierem de despesas com seus aprestos, ou reverterem em
proveito comum;
IV - as doações antenupciais
feitas por um dos cônjuges ao outro com a cláusula de incomunicabilidade;
V - Os bens referidos nos incisos
V a VII do art. 1.659.
Art. 1.659. Excluem-se da comunhão:
(...)
V - os bens de uso pessoal, os
livros e instrumentos de profissão;
VI - os proventos do trabalho
pessoal de cada cônjuge;
VII - as pensões, meios-soldos,
montepios e outras rendas semelhantes.
Segundo a lição de Cristiano
Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Neto, “através da comunhão
universal forma-se uma massa patrimonial única para o casal, estabelecendo uma
unicidade de bens, atingindo créditos e débitos e comunicando os bens pretéritos
e futuros. Cessa a individualidade do patrimônio de cada um, formando-se uma
universalidade patrimonial entre os consortes, agregando todos os bens, os
créditos e as dívidas de cada um. É uma verdadeira fusão de acervos
patrimoniais, constituindo um condomínio. Cada participante terá direito à
meação sobre todos os bens componentes dessa universalidade formada,
independentemente de terem sido adquiridos antes ou depois das núpcias, a
título oneroso ou gratuito” (Manual de Direito Civil – Volume único. 5ª ed -
Salvador: Juspodivm, 2020, p. 1236-1237).
Dessa maneira, formando-se um
único patrimônio entre os consortes, que engloba todos os créditos e débitos de
cada um individualmente, com exceção das hipóteses do art. 1.668 do CC,
revela-se perfeitamente possível a constrição judicial de bens do cônjuge do
devedor, casados sob o regime da comunhão universal de bens, ainda que não
tenha sido parte no processo, resguardada, obviamente, a sua meação.
Nesse caso, não estaria
havendo a responsabilização de um terceiro (Regina) por uma dívida do executado
(Pedro)?
NÃO. Não há que se falar em
responsabilização de terceiro (cônjuge) pela dívida do executado, pois a
penhora recairá sobre bens de propriedade do próprio devedor, decorrentes de
sua meação que lhe cabe nos bens em nome de sua esposa, em virtude do regime
adotado.
Vamos imaginar que os R$ 40
mil penhorados da conta de Regina fossem fruto de seu salário. Neste caso,
seria um valor exclusivo dela e que não se comunicaria com Pedro. Regina
poderia demonstrar isso e afastar a penhora?
SIM. Caso a medida constritiva recaia sobre bem de
propriedade exclusiva do cônjuge do devedor, será possível impugnar essa
constrição, a fim de se afastar a presunção de comunicabilidade. Neste caso, o
instrumento processual adequado será pela via dos embargos de terceiro, a teor
do que dispõe o art. 674, § 2º, I, do Código de Processo Civil, cabendo à
esposa o ônus de comprovar isso:
Art. 674 Quem, não sendo parte no
processo, sofrer constrição ou ameaça de constrição sobre bens que possua ou
sobre os quais tenha direito incompatível com o ato constritivo, poderá
requerer seu desfazimento ou sua inibição por meio de embargos de terceiro.
(...)
§ 2º Considera-se terceiro, para
ajuizamento dos embargos:
I - o cônjuge ou companheiro,
quando defende a posse de bens próprios ou de sua meação, ressalvado o disposto
no art. 843;
(...)
Nesse mesmo sentido:
(...) 2. A medida constritiva do patrimônio pode recair sobre os
bens comuns do casal, no regime de comunhão universal de bens, respeitando-se a
meação da cônjuge do devedor, pois, neste regime, a regra é a comunicabilidade
de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas, nos
termos termos do artigo 1.667 do Código Civil, com as exceções expressas no artigos
1.668.
3. Caso a medida constritiva recaia sobre bem de propriedade
exclusiva do cônjuge do devedor, existe meio processual adequado para que seja
provada a exclusividade da propriedade, qual seja, os embargos de terceiro
(artigo 674, §2, I, do CPC), no qual a presunção de comunicabilidade poderá ser
afastada pela cônjuge do devedor com a prova de que os bens bloqueados são de
sua propriedade exclusiva.
4. Na hipótese de a constrição recair sobre bem comum do casal,
é imprescíndivel que seja respeitada a meação do cônjuge do devedor, inclusive
na alienação de coisa indivisível, nos termos do artigo 843 do CPC. (...)
5. Em outras palavras, o que se cuida na hipótese é da
possibilidade de penhora de bens de propriedade do executado, como resultado da
meação a que possui direito pelo regime da comunhão universal de bens, mas que
estão em nome de sua esposa. Assim, não há falar em responsabilização de
patrimônio de terceiro pela dívida do executado, uma vez que deverá ser
obrigatoriamente respeitada a meação pertencente à cônjuge do devedor,
inclusive na alienação de coisa indivisível.
6. Deste modo, restringindo-se a pesquisa de bens, e a
consequente indisponibilidade e penhora em caso positivo, a bens de propriedade
do devedor - sua meação que lhe cabe nos bens em nome de sua cônjuge -, não é
necessário perquirir se a dívida foi contraída ou trouxe proveito à família.
(...)
STJ. 2ª Turma. AgInt no AREsp 1.945.541/PR, Rel. Min. Mauro
Campbell Marques, julgado em 28/3/2022.
Por essas razões, no caso concreto,
era permitida a penhora de bens da esposa do executado, em razão da
comunicabilidade de todos os bens presentes e futuros do casal, decorrente do
regime da comunhão universal, sendo ônus da mulher comprovar, na via dos
embargos de terceiro, a incomunicabilidade de determinado bem e/ou defender a
sua respectiva meação.
Em suma:
STJ. 3ª
Turma. REsp 1.830.735-RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em
20/6/2023 (Info 780).