Como funciona a apelação
contra a decisão do Tribunal do Júri?
O Júri é uma instituição voltada
a assegurar a participação cidadã na Justiça Criminal. Como forma de valorizar
essa participação, a Constituição consagrou o princípio da soberania dos
veredictos (art. 5º, XXXVIII, “c”, CF/88).
Em decorrência desse princípio, o
recurso contra a decisão de mérito dos jurados é a apelação prevista no art.
593, III, “d”, do CPP (decisão manifestamente contrária à prova dos autos).
Se essa apelação for provida pelo
TJ (ou TRF), o réu será submetido – uma única vez – a novo julgamento pelos jurados.
Assim, o Tribunal de 2ª instância
(togado) só poderá dar provimento à apelação com base neste fundamento uma
única vez.
Explicando melhor: imagine que o
réu foi condenado pelo júri. A defesa interpôs apelação. O TJ determinou que
seja feito um novo júri. Se os jurados (que serão outros sorteados) decidirem
novamente que o réu deverá ser condenado, ainda que a defesa recorra, o
Tribunal não mais poderá dar provimento à apelação sob o fundamento de que a
decisão do júri foi manifestamente contrária à prova dos autos.
Dito de outro modo, o argumento
do Tribunal de que a decisão dos jurados foi manifestamente contrária à prova
dos autos só pode ser utilizado uma única vez.
Nesse sentido, veja o que diz o § 3º do art. 593:
Art. 593. Caberá apelação no prazo
de 5 (cinco) dias:
(...)
III - das decisões do Tribunal do
Júri, quando:
(...)
d) for a decisão dos jurados
manifestamente contrária à prova dos autos.
(...)
§ 3º Se a apelação se fundar no
nº III, d, deste artigo, e o tribunal ad quem se convencer de que a decisão dos
jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para
sujeitar o réu a novo julgamento; não se admite, porém, pelo mesmo motivo,
segunda apelação.
Imagine agora a seguinte situação
adaptada:
João e Antônio tiveram um
desentendimento dentro de uma casa noturna.
João já saía do estabelecimento
quando foi chamado por Antônio para uma briga, em via pública.
João retornou e efetuou um
disparo de arma de fogo para o alto, no intuito de intimidar Antônio, que ia em
sua direção.
Antônio, contudo, prosseguiu em
direção ao seu rival.
João disparou duas vezes contra Antônio,
atingindo-lhe a perna e o abdômen, o que o fez cair no chão, ainda com vida.
Ato contínuo, mesmo depois de Antônio
estar caído no chão, João efetuou outros dois disparos, os quais atingiram o
crânio da vítima, causando-lhe a morte.
Após a regular instrução do
feito, o réu foi pronunciado para ser julgado pelo Tribunal do Júri, como
incurso nas sanções do art. 121, §2º, incisos II, III e IV, do Código Penal (homicídio
qualificado).
O advogado suscitou em plenário
as teses da legítima defesa e do eventual excesso culposo.
Após os debates, foram formulados
os seguintes quesitos aos jurados:
Quesito: no dia xxx, às yyy, a
vítima Antônio foi atingida com disparos de arma de fogo, sofrendo as lesões
descritas no auto de necropsia, que causaram sua morte? O júri respondeu SIM
com mais de três votos.
Quesito: o réu João efetuou os
disparos de arma de fogo que atingiram a vítima? O júri respondeu SIM com mais
de três votos.
Quesito: o réu João, ao assim
agir, quis matar a vítima? O júri respondeu SIM com mais de três votos.
Quesito: o jurado absolve o réu
João? O júri respondeu NÃO com mais de três votos.
Quesito: o réu João, ao repelir
injusta agressão, usou moderadamente dos meios necessários para tanto? O júri
respondeu SIM com mais de três votos. (obs: isso significa que os jurados
reconheceram a legítima defesa)
Quesito: o réu João, ao se
exceder, agiu dolosamente? O júri respondeu NÃO com mais de três votos.
Ao fim do julgamento pelo Tribunal do Júri, os jurados responderam
que o réu agiu em legítima defesa, mas reconheceram que houve excesso (art. 23,
parágrafo único, do CP):
Art. 23. Não há crime quando o
agente pratica o fato:
I - em estado de necessidade;
II - em legítima defesa;
III - em estrito cumprimento de
dever legal ou no exercício regular de direito.
Excesso punível
Parágrafo único. O agente, em
qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.
Conforme se vê pela redação do
parágrafo único, o excesso pode ser doloso ou culposo.
No caso concreto, os jurados
responderam que o excesso foi culposo.
Apelação
O Ministério Público não
concordou com o resultado e interpôs apelação, alegando que os jurados
reconheceram o excesso culposo em legítima defesa sem qualquer respaldo nos
autos, eis que o primeiro disparo contra a vítima já teria sido suficiente para
deixá-la estirada ao solo, cessando a agressão. Logo, para o Parquet, os demais
disparos foram proferidos com intenção de matar, tendo havido, portanto, excesso
doloso.
O Tribunal de Justiça negou
provimento ao apelo, argumentando que os “jurados julgam por íntima convicção,
sem a necessidade de fundamentar suas decisões. Deste modo, podem utilizar,
para seus convencimentos, quaisquer provas contidas nos autos, ainda que não
sejam as mais verossímeis”.
Recurso especial
O Ministério Público interpôs recurso
especial alegando que o Tribunal de Justiça não apontou qualquer prova
produzida nos autos que eventualmente amparasse o que foi decidido pelo
Conselho de Sentença.
A fundamentação utilizada
pelo Tribunal de Justiça foi adequada e suficiente para negar provimento ao
recurso do Ministério Público?
NÃO.
Não há dúvida de que os jurados
atuantes no Tribunal do júri julgam por íntima convicção, pois não precisam
justificar as razões pelas quais responderam de um modo ou de outro os quesitos
formulados.
Todavia, essa premissa não impede
que o Tribunal de Justiça exerça controle sobre a decisão dos jurados, sob pena
de tornar letra morta o contido no art. 593, III, “d”, do CPP, que
expressamente estipula cabimento de apelação contra decisão de jurados
manifestamente contrária à prova dos autos.
Nesse sentido, é indispensável
que o Tribunal de Justiça, ao julgar a apelação interposta, avalie a prova dos
autos, com fim de perquirir se há algum elemento que ampare o decidido pelos
jurados.
Trata-se de providência objetiva
de cotejo do veredicto com a prova dos autos, sendo prescindível qualquer
ingresso na mente dos jurados.
Vale ressaltar que, havendo duas
versões jurídicas sobre os fatos, ambas amparadas no acervo probatório, deve
ser preservada a decisão dos jurados, em atenção à soberania dos veredictos. No
entanto, se não houver nenhuma prova que ampare a decisão dos jurados, o júri
deve ser anulado.
No
caso concreto, o apelo da acusação fez referência expressa a elementos do
acervo probatório dos autos para concluir que houve excesso doloso, razão pela
qual a decisão dos jurados seria manifestamente contrária à prova dos autos.
Não é o caso de absolvição por clemência. Os jurados não absolveram o
interessado, pois responderam negativamente ao quesito genérico. Houve, sim,
reconhecimento de legítima defesa e o reconhecimento de seu excesso. O que se
discute é se esse excesso foi culposo ou doloso.
Segundo o MP, os jurados
reconheceram o excesso culposo em legítima defesa sem nenhum respaldo nos
autos. Considerou-se que o primeiro disparo contra a vítima já teria sido
suficiente para deixá-la estirada ao solo na posição decúbito ventral, cessando
a agressão. Quanto aos demais disparos, foram justificados pelo animus necandi.
Os depoimentos de testemunhas presenciais, bem como fotografias e laudo
pericial afastaram cabalmente a tese do réu apresentada aos jurados, segundo a
qual apenas efetuou outros disparos porque a vítima caiu segurando suas pernas.
Apesar disso, o Tribunal de Justiça,
ao julgar a apelação, não citou nenhuma prova para afastar a alegação do MP de
que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos. Em
outras palavras, o TJ precisava ter demonstrado que o veredicto dos jurados
possui algum mínimo embasamento na prova dos autos. Não é suficiente que o TJ
diga que os jurados julgam por íntima convicção já que a absolvição não foi por
clemência.
Por
essa razão, o STJ determinou que o TJ julgue novamente o recurso e, com amparo nas
provas produzida nos autos, diga se o a decisão dos jurados é, ou não, manifestamente
contrária à prova dos autos.
Em suma:
STJ. 3ª Seção.
Rcl 42.274-RS, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 24/5/2023 (Info 780).