Dizer o Direito

domingo, 13 de agosto de 2023

Compete à Justiça Federal julgar os crimes de produção de medicamentos sem registro na ANVISA

A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:

A Polícia Civil do Estado de Goiás instaurou inquérito para apurar a produção e comercialização ilegal de “medicamentos” para emagrecimento, sem registro na ANVISA.

No curso da investigação, o Juízo da Comarca de Goiânia (GO) autorizou interceptações telefônicas, busca e apreensão, quebra de sigilo bancário e bloqueio de bens dos investigados.

Após diversas diligências, o Ministério Público ofereceu denúncia contra diversas pessoas pela prática, dentre outros, dos delitos de:

• falsificação, adulteração e venda de medicamentos destinados a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, § 1º, e § 1º-B, I, III e V, do Código Penal);

• organização criminosa;

• lavagem de dinheiro.

 

Apesar de a denúncia afirmar ser desconhecida a origem das matérias-primas utilizadas pela organização criminosa, apurou-se, em diligências investigatórias, que um dos princípios ativos utilizados na fabricação de medicamento ilegal, tratava-se de sibutramina trazida do Paraguai por integrantes da organização criminosa, sendo transportada por “batedores” diretamente para o laboratório clandestino.

A defesa de um dos denunciados impetrou habeas corpus perante o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás defendendo a incompetência da Justiça Estadual e pugnando pela remessa à Justiça Federal, alegando justamente “a origem internacional da suposta atividade criminosa”.

Pleiteou o reconhecimento da ilicitude e a anulação dos atos decisórios proferidos pelo juízo estadual.

O Tribunal de Justiça de Goiás concordou com os argumentos e declinou da competência para a Justiça Federal de 1ª instância.

O Juiz Federal, por seu turno, discordou e afirmou que a competência seria da Justiça Estadual. O magistrado afirmou que:

“Muito embora a Autoridade Policial tenha feito referência à aquisição de insumos no Paraguai, circunstância que foi repetida em decisões da fase investigativa, da análise das provas juntadas aos diversos cadernos investigativos, não foi possível identificar um único elemento informativo que corrobore essa informação (...). Observa-se que, à mingua de elementos que servissem de lastro à formação da convicção do representante do Ministério Público (opinio delicti), a denúncia não imputou a qualquer dos acusados a conduta consistente em 'importar' produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais sem registro no órgão de vigilância sanitária”

(...)

“A mera probabilidade da origem estrangeira dos insumos utilizados para a fabricação dos medicamentos irregulares não o caracteriza como transnacional, sendo necessária prova contundente da internacionalidade da conduta de modo a atrair a competência da Justiça Federal”.

 

Que julga o conflito de competência entre o Tribunal de Justiça e um Juiz Federal de 1ª instância?

O STJ, nos termos do art. 105, I, “d”, da CF/88:

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

I - processar e julgar, originariamente:

(...)

d) os conflitos de competência entre quaisquer tribunais, ressalvado o disposto no art. 102, I, “o”, bem como entre tribunal e juízes a ele não vinculados e entre juízes vinculados a tribunais diversos;

 

O que decidiu o STJ? De quem é a competência para processar e julgar os delitos imputados na denúncia?

Justiça Federal.

O STJ entendeu que, embora a denúncia afirme ser desconhecida a origem das matérias-primas utilizadas pela organização criminosa para a produção de medicamentos, não há como negar a existência de indícios de que essas matérias-primas tenham origem de algum lugar situado no Paraguai, até mesmo pela narrativa de que seriam utilizados “batedores” para assegurar o êxito do transporte.

Para efeitos de imputação penal, o local exato em que eram adquiridas as matérias-primas não teria relevância se consideradas as elementares indicadas (falsificar, corromper, adulterar, ter em depósito e comercializar produtos destinados a fins terapêuticos ou medicinais, desprovidos do registro devido no órgão de vigilância sanitária competente), motivo pelo qual a denúncia não se esmerou em apontar essa localidade. Evidentemente que essa circunstância implica consequências no âmbito da fixação da competência, motivo pelo qual deve ser avaliada a partir das investigações.

Segundo a orientação consolidada do STJ, não se exige prova inconteste acerca da transnacionalidade das condutas para a fixação da competência federal, mas tão somente a existência de indícios concretos de que isso haja ocorrido. Tais indícios até podem ser insuficientes para lastrear a denúncia na modalidade de importação, mas podem ser suficientes para a fixação da competência.

A existência desses indícios pode ser também reforçada pelo fato de que a própria representação formulada pelo Ministério Público, durante as investigações, para a quebra do sigilo bancário e de bloqueio de bens dos acusados, lastreou-se na possível prática de contrabando de anfetaminas inibidoras de apetite oriundas do Paraguai. Ou seja, todos os indícios indicavam que esses produtos viriam do Paraguai.

Portanto, ainda que a denúncia não indique a origem das matérias-primas utilizadas pela organização criminosa para a produção de medicamentos clandestinos, isso não impossibilita - diante dos indícios concretos de que elas tenham sido adquiridas no exterior - que seja reconhecida a competência federal para o processo e julgamento do feito.

Nesse mesmo sentido:

De ordinário, o crime do art. 273 do Código Penal não é cometido ‘em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas’. Assim, salvo se houver provas ou fortes indícios da transnacionalidade da conduta delitiva ou de conexão instrumental ou probatória com crime da competência da Justiça Federal, a competência para processar e julgar a ação penal a ele correspondente é da Justiça estadual.

STJ. 3ª Seção. CC 128668/SP, Rel. Min. Newton Trisotto - Desembargador convocado do TJ/SC, DJe 1º/9/2015.

 

Em suma:

Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes de produção de medicamentos sem registro no órgão competente, mesmo na ausência de prova incontestável sobre a transnacionalidade das condutas, contanto que haja indícios concretos de que as matérias-primas foram adquiridas do exterior.

STJ. 3ª Seção. CC 188.135-GO, Rel. Min. Laurita Vaz, Rel. para acórdão Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 8/2/2023 (Info 779).

 

O STJ determinou a anulação dos atos praticados pelo Juízo estadual?

NÃO. Isso com base na teoria do juízo aparente e pelo fato de o juízo federal que receber os autos poder ratificar os atos decisórios:

(...) 1. Na espécie, os Agravantes foram denunciados pelo suposto envolvimento em organização criminosa especializada na fabricação e comercialização de medicamentos sem a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, especialmente emagrecedores.

2. Sob a alegação de ilicitude das provas produzidas na fase investigativa, bem como da incompetência do Juízo estadual, a Defesa impetrou habeas corpus perante o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. A ordem foi conhecida em parte e, nessa extensão, concedida para determinar a remessa dos autos à Justiça Federal, uma vez que "a execução do delito teve início em outro País (Paraguai) e terminou no Brasil" (fl. 2488).

3. O Tribunal estadual deixou assentado que a internacionalidade/transnacionalidade dos fatos - circunstância que altera a competência para o julgamento do feito da Justiça Estadual para a Justiça Federal - foi evidenciada com o desenvolvimento das investigações, de modo que o Juízo Estadual, em um exame preliminar, era o competente para tal decisão. Outrossim, efetuada a remessa dos autos ao Juízo Federal, todos os atos decisórios serão por ele apreciados, e ratificados ou não.

4. Considerada essa conjuntura, não há como reconhecer a ilegalidade apontada pelos Agravantes. Isso tanto em razão da teoria do juízo aparente, consagrada na jurisprudência, quanto pela possibilidade de posterior ratificação do ato na eventual hipótese de reconhecimento da incompetência do Juízo.

5. Agravo regimental desprovido.

(AgRg no RHC n. 139.901/GO, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 8/3/2022, DJe de 31/3/2022.)


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