Imagine a seguinte situação
hipotética:
João é contrabandista. Ele compra
mercadorias no Paraguai e as revende no Brasil.
Determinado dia, João voltava do
Paraguai com seu carro repleto de cigarros importados sem registro na ANVISA.
Quando já estava no Brasil, ele
avistou uma blitz da Polícia Militar e fugiu.
Um dos policiais determinou que o
agente parasse, mas João não atendeu e atirou contra o PM, que acabou
falecendo.
Quais foram os crimes
cometidos por João?
Contrabando (art. 334-A do CP),
resistência (art. 329) e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, V).
Vamos falar agora sobre a
competência.
O crime de contrabando é de
competência da Justiça Federal. A dúvida é o delito de homicídio.
A Justiça Federal também
julgará o homicídio praticado contra a vida do Policial Militar?
SIM. Isso porque existe uma
conexão instrumental entre o contrabando e o homicídio.
Se o intento da prática do
homicídio era o de impedir o exercício do jus puniendi em relação ao
crime de contrabando, ou seja, visava embaraçar a persecutio in criminis
que seria realizada na Justiça Federal, há o interesse federal na persecução,
também, dos crimes dolosos contra a vida, pois cometidos para obstar ou
dificultar o exercício de atribuições conferidas a órgãos federais.
Além disso, a simples conexão ou
continência com crime federal atrai a competência da Justiça Federal para o
julgamento de todos os delitos, nos termos da Súmula 122/STJ, na qual não faz
nenhuma exceção quando se trata de delito doloso contra a vida:
Súmula 122-STJ: Compete à Justiça Federal o processo e
julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não
se aplicando a regra do art. 78, II, "a", do Código de Processo
Penal.
Antigamente, defendia-se que
deveria haver o desmembramento dos processos e que o homicídio deveria ser
julgado pelo Tribunal do Júri estadual. O argumento era o de que a competência
do Tribunal do Júri possui assento constitucional e, portanto, deveria
prevalecer.
Esse raciocínio, contudo, parte
de uma premissa equivocada, que é a de que a previsão constitucional da
competência do Tribunal do Júri se refere apenas ao Júri estadual e, portanto,
se sobreporia à competência da Justiça Federal.
O art. 5º, inciso XXXVIII, alínea “d”, da Constituição
Federal, assegura a competência do Júri para o julgamento dos crimes dolosos
contra a vida, sem fazer distinção alguma entre o Tribunal do Júri Estadual e o
Tribunal do Júri Federal. Este último é expressamente previsto no art. 4º do
Decreto-Lei nº 253/67, recepcionado pela Constituição Federal:
Art. 4º Nos crimes de competência
da Justiça Federal, que devem ser julgados pelo Tribunal do Júri, observar-se-á
o disposto na legislação processual, cabendo a sua presidência ao juiz a que
competir o processamento da respectiva ação penal.
Em outras palavras, a competência
do Tribunal do Júri tem previsão constitucional. No entanto, não existe apenas
o Tribunal do Júri na Justiça Estadual, havendo também na Justiça Federal.
Logo, nada impede que o crime doloso contra vida seja julgado pela Justiça
Federal, sendo, no caso, de competência do Tribunal do Júri Federal.
Não é possível se determinar o
julgamento do contrabando, crime federal, pelo Tribunal do Júri Estadual. A
competência da Justiça Federal é absoluta e tem previsão constitucional, assim
como a competência do Tribunal do Júri para os crimes dolosos contra a vida.
Em suma:
STJ. 3ª Seção.
CC 194.981-SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 24/5/2023 (Info 778).
Mudança de entendimento
Vale ressaltar que o julgamento
acima representa um overruling, ou seja, a superação da orientação que
prevalecida no STJ. Antes do acórdão acima explicado, prevalecia no STJ o
seguinte:
(...) 1. No caso, não resta configurada a competência do
Tribunal do Júri federal, uma vez que as vítimas da tentativa de homicídio são
policiais militares estaduais no exercício de suas funções, sendo certo,
outrossim, que a motivação do delito (evitar a prisão em flagrante pela prática
de crime da competência federal - contrabando) é irrelevante para a definição
da competência.
2. Os demais delitos (contrabando, de competência da Justiça
Federal, resistência e dano, de competência da Justiça Estadual), ao que se
tem, foram praticados no mesmo contexto fático, quando os denunciados foram
abordados transportando cigarro, resistiram à ordem policial, efetuaram
disparos de arma de fogo contra os policiais estaduais e danificaram as
viaturas. Assim, evidente a conexão nos termos do disposto no art. 78, inciso
I, do Código de Processo Penal. (...)
STJ. 3ª Seção. CC 153.306/RS, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior,
relatora para acórdão Ministra Maria Thereza de Assis Moura, julgado em
22/11/2017.