Dizer o Direito

sábado, 1 de julho de 2023

Supostos crimes funcionais foram praticados durante o exercício da função Vice-Governador, tendo o investigado, posteriormente, assumido o cargo de Governador: competência do STJ

DECISÃO DO STF RESTRINGINDO O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO

Em maio de 2018, o STF decidiu restringir o foro por prerrogativa de função dos Deputados Federais e Senadores.

O art. 53, § 1º e o art. 102, I, “b”, da CF/88 preveem que, em caso de crimes comuns, os Deputados Federais e os Senadores serão julgados pelo STF.

Ocorre que o Supremo conferiu uma interpretação restritiva a esses dispositivos e afirmou o seguinte:

O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.

STF. Plenário. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 03/05/2018 (Info 900).

 

Em outras palavras, os Deputados Federais e Senadores somente serão julgados pelo STF se:

· o crime tiver sido praticado durante o exercício do mandato de parlamentar federal; e

· se estiver relacionado com essa função.

 

O entendimento que restringe o foro por prerrogativa de função vale para outras hipóteses de foro privilegiado ou apenas para os Deputados Federais e Senadores?

Vale para outros casos de foro por prerrogativa de função. Foi o que decidiu o próprio STF no julgamento do Inq 4703 QO/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 12/06/2018, no qual afirmou que o entendimento vale também para Ministros de Estado.

O STJ também decidiu que a restrição do foro deve alcançar Governadores e Conselheiros dos Tribunais de Contas estaduais. Explico.

O art. 105, I, “a”, da CF/88 prevê que compete ao STJ julgar os crimes praticados por Governadores de Estado e por Conselheiros dos Tribunais de Contas dos Estados:

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

I - processar e julgar, originariamente:

a) nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais;

 

A Corte Especial do STJ, seguindo o mesmo raciocínio do STF, limitou a amplitude do art. 105, I, “a”, da CF/88 e decidiu que:

O foro por prerrogativa de função no caso de Governadores e Conselheiros de Tribunais de Contas dos Estados deve ficar restrito aos fatos ocorridos durante o exercício do cargo e em razão deste.

Assim, o STJ é competente para julgar os crimes praticados pelos Governadores e pelos Conselheiros de Tribunais de Contas somente se estes delitos tiverem sido praticados durante o exercício do cargo e em razão deste.

STJ. Corte Especial. APn 857/DF, Rel. para acórdão Min. João Otávio de Noronha, julgado em 20/06/2018.

STJ. Corte Especial. APn 866/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 20/06/2018.

 

O STJ disse o seguinte:

• O STF, ao analisar o art. 102, I, da CF/88 decidiu restringir o foro por prerrogativa de função para Deputados Federais e Senadores. Em seguida, restringiu também para Ministros de Estado. A partir dessa restrição, tais autoridades somente poderão ter foro no STF em caso de crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.

• Diante dessa decisão do STF, eu (STJ) também irei restringir o foro por prerrogativa de função para as autoridades que estão listadas no art. 105, I, “a”, da CF/88, aplicando o mesmo raciocínio.

• O fato de a regra de competência estar prevista no texto constitucional (art. 105 da CF/88) não pode representar óbice à análise, por este STJ, de sua própria competência, sob pena de se inviabilizar, nos casos como o dos autos, o exercício deste poder-dever básico de todo órgão julgador, impedindo o imprescindível exame deste importante pressuposto de admissibilidade do provimento jurisdicional. Em palavras mais simples, a restrição da competência do art. 105 da CF/88 passa por uma nova intepretação do texto constitucional. A função precípua de interpretação à Constituição Federal é do STF. No entanto, eu (STJ), assim como todo e qualquer magistrado, também tenho a prerrogativa de interpretar as normas jurídicas, inclusive a Constituição da República.

• Além disso, todo juiz é competente para analisar a sua própria competência (“kompetenz-kompetenz”), de forma que eu (STJ) posso interpretar o art. 105 da CF/88 para dizer se sou ou não competente para julgar determinada autoridade, podendo, assim, adotar a mesma restrição construída pelo STF.

• O foro especial no âmbito penal é prerrogativa destinada a assegurar a independência e o livre exercício de determinados cargos e funções de especial importância, isto é, não se trata de privilégio pessoal. O princípio republicano é condição essencial de existência do Estado de Direito e impõe a supressão dos privilégios, devendo ser afastados da interpretação constitucional os princípios e regras contrários à igualdade.

• O art. 105, I, “a”, da CF/88 consubstancia exceção à regra geral de competência, de modo que, partindo-se do pressuposto de que a Constituição é una, sem regras contraditórias, deve ser realizada a interpretação restritiva das exceções, com base na análise sistemática e teleológica da norma.

• As mesmas razões fundamentais (a mesma ratio decidendi) que levaram o STF, ao interpretar o art. 102, I, “b” e “c”, da CF/88, a restringir as hipóteses de foro por prerrogativa de função devem ser também aplicadas ao art. 105, I, “a”.

• Assim, é de se conferir ao art. 105, I, “a”, da CF/88, o mesmo sentido e alcance atribuído pelo STF ao art. 102, I, “b” e “c”, restringindo-se, desse modo, as hipóteses de foro por prerrogativa de função perante o STJ àquelas em que o crime for praticado em razão e durante o exercício do cargo ou função.

 

As hipóteses de foro por prerrogativa de função perante o STJ restringem-se àquelas em que o crime for praticado em razão e durante o exercício do cargo ou função.

STJ. Corte Especial. AgRg na APn 866-DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 20/06/2018 (Info 630).

 

Isso que foi explicado acima é a regra geral. Vejamos agora uma situação peculiar enfrentada pelo STJ.

 

HIPÓTESE NA QUAL OS FATOS FORAM PRATICADOS DURANTE O EXERCÍCIO DO CARGO DE VICE-GOVERNADOR, TENDO ELE, POSTERIORMENTE, ASSUMIDO O CARGO DE GOVERNADOR: COMPETÊNCIA DO STJ

A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:

Nas eleições de 2018, Wilson Witzel foi eleito Governador do Estado do Rio de Janeiro. Cláudio Castro estava na chapa eleita como Vice-Governador.

No exercício da função de Vice-Governador, Cláudio Castro teria, em tese, praticado crimes contra a Administração Pública.

Foi instaurado inquérito para apurar esses supostos crimes.

 

Esse inquérito foi instaurado sob a supervisão do STJ?

NÃO. Isso porque compete ao STJ julgar apenas os Governadores do Estado (art. 105, I, “a”, da CF/88). Não há previsão para que o STJ julgue os Vice-Governadores.

Então, no caso concreto, o inquérito em desfavor de Cláudio Castro foi instaurado sob a supervisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro considerando que a Constituição Estadual fluminense prevê que compete ao TJ julgar os crimes cometidos pelo Vice-Governador. Confira:

Art. 161. Compete ao Tribunal de Justiça:

(...)

IV - processar e julgar originariamente:

(...)

c) nos crimes comuns, o Vice-Governador e os Deputados;

 

Cláudio Castro sucedeu Wilson Witzel

Em 30/04/2021, Wilson Witzel foi condenado por crime de responsabilidade, recebendo como sanções a perda do cargo de Governador e a suspensão dos seus direitos políticos.

Em consequência disso, em 01/05/2021, Cláudio Castro tomou posse como Governador do Estado, sucedendo o antigo titular.

Vale ressaltar que, nesta data, a investigação promovida em desfavor de Cláudio Castro ainda não havia sido concluída, não tendo sido oferecida denúncia contra ele.

A partir desse fato, instalou-se uma dúvida sobre a competência para processar a investigação em curso contra Cláudio Castro:

• enquanto vice-governador, Cláudio Castro tinha foro por prerrogativa de função do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro;

• ao suceder Wilson Witzel, o foro competente para julgar Cláudio Castro passou a ser o STJ.

 

Vale ressaltar, contudo, que os fatos investigados teriam sido praticados anteriormente, enquanto Cláudio Castro ainda ocupava o cargo de vice-governador.

 

Enfim, de quem é a competência: juízo de 1ª instância, TJ/RJ ou STJ?

Do STJ.

O julgamento da AP 937 QO no STF tratou exclusivamente de parlamentares federais e em situação específica.

O caso concreto aqui analisado, ou seja, fatos criminosos supostamente praticados por vice-governador à época, atualmente Governador do Estado, não foi solucionada pelo apontado paradigma.

Logo, não se pode dizer que a decisão do STF na AP 937 QO sirva como padrão decisório para a presente situação.

Os fatos pelos quais Cláudio Castro está sendo investigado estão intrinsecamente relacionados ao exercício das funções, não necessariamente de Vice-Governador, mas sim de integrante da cúpula do Poder Público estadual.

O Vice-Governador, supostamente, teria praticado atos no exercício de suas funções, com inobservância dos deveres funcionais, em troca de supostas vantagens indevidas, caracterizada a relação de causalidade entre o crime imputado e o exercício do cargo.

Nesse contexto, o fato de ter assumido a condição de Governador, no mesmo mandato, revela identidade de investidura funcional para os escopos preconizados pela regra do foro por prerrogativa de função, outorgada ratione muneris, não sendo configurada espécie alguma de privilégio em favor do cidadão, mas obséquio às funções exercidas.

Dessa forma, cabe ao STJ a análise do bem jurídico tutelado e a definição da competência na hipótese, sob pena de ofensa à estrutura hierarquizada da Jurisdição e à própria racionalidade do Sistema de Justiça.

 

Em suma:

Compete ao Superior Tribunal de Justiça, para os fins preconizados pela regra do foro por prerrogativa de função, processar e julgar governador em exercício que deixou o cargo de vice-governador durante o mesmo mandato, quando os fatos imputados digam respeito ao exercício das funções no âmbito do Poder Executivo estadual.

STJ. Corte Especial. QO no AgRg na APn 973-RJ, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Rel. para acórdão Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 3/5/2023 (Info 775).

 

DOD Plus – não confundir com esse outro entendimento

STJ não é competente para julgar crime praticado por Governador no exercício do mandato se o agente deixou o cargo e atualmente voltou a ser Governador por força de uma nova eleição

O STJ é incompetente para julgar crime praticado durante mandato anterior de Governador, ainda que atualmente ocupe referido cargo por força de nova eleição.

Ex: João praticou o crime em 2010, quando era Governador; em 2011 foi eleito Senador; em 2019 assumiu novamente como Governador; esse crime praticado em 2010 será julgado em 1ª instância (e não pelo STJ).

Como o foro por prerrogativa de função exige contemporaneidade e pertinência temática entre os fatos em apuração e o exercício da função pública, o término de um determinado mandato acarreta, por si só, a cessação do foro por prerrogativa de função em relação ao ato praticado nesse intervalo.

STJ. Corte Especial QO na APn 874-DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15/05/2019 (Info 649).

 

Print Friendly and PDF