Dizer o Direito

sábado, 8 de julho de 2023

O depoimento testemunhal indireto não possui a capacidade necessária para sustentar uma acusação e justificar a instauração do processo penal, sendo imprescindível a presença de outros elementos probatórios substanciais

Imagine a seguinte situação adaptada:

Foi encontrado, em um manguezal, o corpo de um adolescente, vítima de homicídio causado por disparos de arma de fogo.

João reconheceu o corpo como sendo de seu filho Tiago, então com 17 anos de idade.

O pai informou aos policiais que lá estavam que Gonzaga, um homem que vive no mesmo bairro, lhe disse que o autor do homicídio foi “Tuiuiú”, traficante do local, e que o motivo seria uma briga por drogas.

No curso do inquérito instaurado, foram produzidos os seguintes elementos informativos (“provas”):

- Tuiuiú era o apelido de Camilo da Silva, que já havia sido indiciado anteriormente em razão de porte ilegal de arma de fogo;

- Em depoimento prestado à autoridade policial, Maria, avó da vítima, disse que, na véspera da data em que o corpo foi encontrado, um homem desconhecido esteve em frente à sua casa e noticiou que Tiago havia sido assassinado por Tuiuiú e que seu corpo havia sido deixado no “chiqueiro”. A avó informou, ainda, que Tiago traficava para Tuiuiú, mas que dois meses antes do homicídio, havia brigado com o seu antigo “chefe”; e

- Disque Denúncia recebeu a informação anônima de que “Tuiuiú” seria o autor do homicídio;

 

Diante dos elementos produzidos, a autoridade policial concluiu o inquérito com o indiciamento de Camilo da Silva (“Tuiuiú”).

O Ministério Público ofereceu denúncia contra Camilo da Silva, imputando-lhe a prática do crime de homicídio qualificado.

O juiz rejeitou a denúncia por ausência de justa causa (art. 395, III, do CPP).

De acordo com a decisão:

- Infere-se que as testemunhas e declarante ouvidas não presenciaram o delito investigado, tampouco afirmaram haverem sido os investigados os autores do crime em tela, tendo apenas se limitado a fazer comentários de que souberam dos fatos por ouvir dizer de terceiros não identificados, não se afigurando, portanto, suficientes tais elementos para o recebimento da denúncia;

- A pessoa citada pelo genitor da vítima (Gonzaga) não fora localizada;

- Diante do exposto, como inexistem em relação a esse crime indícios suficientes de autoria, inviável o recebimento da denúncia, dada a ausência de justa causa.

 

Para o STJ, foi acertada a decisão do magistrado que rejeitou a denúncia?

SIM.

 

Espécies de testemunha

As testemunhas podem ser classificadas de acordo com vários critérios. Um deles é o seguinte:

a) Testemunha DIRETA: é aquela que presenciou os fatos. Também chamada de testemunha visual.

b) Testemunha INDIRETA: é aquela que não presenciou os fatos, mas apenas ouviu falar sobre eles. É também chamada de testemunha auricular ou testemunha de “ouvir dizer” (hearsay rule).

 

Testemunha de ouvir dizer (hearsay rule)

A testemunha de ouvir dizer não deve ter grande força probatória. Conforme explica o Min. Rogério Schietti Cruz:

“A razão do repúdio a esse tipo de testemunho se deve ao fato de que, além de ser um depoimento pouco confiável, visto que os relatos se alteram quando passam de boca a boca, o acusado não tem como refutar, com eficácia, o que o depoente afirma sem indicar a fonte direta da informação trazida a juízo.”

 

A prova testemunhal indireta possui validade e relevância na formação do convencimento judicial, desde que corroborada por outros elementos probatórios

O testemunho indireto é conhecido também como testemunha auricular ou de auditus, e seu depoimento não está excluído do sistema probatório brasileiro, podendo ser valorado a critério do julgador.

No ordenamento jurídico pátrio, não há previsão legal específica para a testemunha “de ouvir dizer”, uma vez que não há distinção entre testemunhas diretas e indiretas. Ao contrário, a legislação penal brasileira determina que o depoimento testemunhal será admitido sempre que for relevante para a decisão. Dessa forma, diferentemente dos sistemas da commow law, as restrições probatórias relacionadas ao ouvir dizer não se aplicam no Brasil, sendo, em regra, admissível como meio probatório.

No julgamento do REsp 1.387.883/MG, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão que afirma a legalidade da prova testemunhal indireta, reconhecendo sua suficiência para embasar uma sentença condenatória, uma vez que tal modalidade de prova é admitida pela legislação em vigor e sua valoração fica a cargo do julgador. O referido julgado tratava de um crime de estupro, no qual a vítima somente confirmou a autoria do fato durante o seu depoimento perante as autoridades policiais. Além disso, havia duas testemunhas que relataram ter ouvido diretamente da própria vítima que ela teria sido vítima de estupro pelo acusado. O acórdão ficou assim ementado:

(...) 1. Estando a condenação amparada em outras provas, além das colhidas na fase inquisitorial, não há falar em violação do artigo 155 do Código de Processo Penal.

2. "A legislação em vigor admite como prova tanto a testemunha que narra o que presenciou, como aquela que ouviu. A valoração a ser dada a essa prova é critério judicial, motivo pelo qual não há qualquer ilegalidade na prova testemunhal indireta."

(HC 265.842/MG, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Rel. p/ Acórdão Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 16/08/2016, DJe 01/09/2016).

3. A prova testemunhal, mesmo que indireta (ouviu da vítima o relato), produzida em juízo, mediante o contraditório e a ampla defesa, que, de maneira coerente e harmônica, ratifica o depoimento da vítima na fase inquisitorial, é suficiente para a condenação.

4. Agravo regimental não provido.

STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1.387.883/MG, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 19/10/2017.

 

Considerando esse contexto fático, juntamente com as demais provas constantes nos autos, como o exame de corpo de delito, a Quinta Turma desta Corte concluiu que a autoria do delito estava demonstrada. A partir dessa decisão, fica evidente que a prova testemunhal indireta possui validade e relevância na formação do convencimento judicial, desde que corroborada por outros elementos probatórios.

 

Não é cabível a pronúncia fundada exclusivamente em testemunhos indiretos de “ouvir dizer”

No âmbito do procedimento do Tribunal do Júri, o Superior Tribunal de Justiça tem firmado entendimento relevante em relação aos testemunhos baseados em “ouvir dizer”. Por exemplo, no julgamento do REsp 1.674.198/MG, de relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz, decidiu-se que a pronúncia baseada unicamente em depoimentos indiretos é inadmissível, dada a precariedade desse tipo de prova.

Em suma, os relatos indiretos e baseados em ouvir dizer não são elementos suficientes para garantir a viabilidade acusatória, sendo necessário que existam outros elementos probatórios robustos para embasar uma acusação consistente. Portanto, na análise, deve-se considerar a fragilidade dos depoimentos baseados em ouvir dizer na formação de um juízo acusatório.

 

Muito embora a análise aprofundada dos elementos probatórios seja feita somente pelo Tribunal do Júri, não se pode admitir, em um Estado Democrático de Direito, a pronúncia baseada, exclusivamente, em testemunho indireto (por ouvir dizer) como prova idônea de per si, para submeter alguém a julgamento pelo Tribunal Popular.

STJ. 5ª Turma. HC 673.138-PE, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 14/09/2021 (Info 709).

STJ. 6ª Turma. REsp 1649663/MG, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 14/09/2021.

 

Veja como o tema já foi cobrado em prova:

ý (Juiz de Direito TJBA/2019 CEBRASPE) Em decorrência do princípio do in dubio pro societate, o testemunho por ouvir dizer produzido na fase inquisitorial é suficiente para a decisão de pronúncia. (errado)

 

Voltando ao caso concreto

No caso concreto, o juiz entendeu que não havia justa causa para o exercício da ação penal porque não existiam elementos probatórios suficientes nos autos que respaldassem a acusação formalizada pelo Ministério Público. Isso porque a acusação era baseada unicamente no testemunho indireto. Em sua essência, trata-se da carência de indícios que apontem a ocorrência de um delito e a participação do acusado na sua prática.

A rejeição da denúncia, nesse caso, mostra-se como uma questão de interesse processual.

Se a persecução penal é destinada ao fracasso desde o início (pois nenhuma das provas apresentadas pela acusação é suficiente para sustentar uma pronúncia ou condenação, e não há indicação de que outras provas serão produzidas durante a instrução), não há razão para iniciar o processo.

Assim, caso a acusação tenha como intenção apenas repetir o testemunho indireto, a ação penal se mostra sem perspectivas de sucesso desde o início. Nesse contexto, prosseguir com o processo torna-se apenas um ato de assédio processual contra o acusado.

 

Em suma:

 

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