segunda-feira, 31 de julho de 2023
Mesmo na Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica, o sócio não gestor, em regra, não será responsabilizado pessoalmente, salvo se ficar demonstrado que ele contribuiu, ao menos culposamente, para a prática de atos de administração
NOÇÕES GERAIS
SOBRE A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Princípio
da autonomia patrimonial
As pessoas jurídicas são sujeitos de
direitos. Isso significa que possuem personalidade jurídica distinta de seus
instituidores. Assim, por exemplo, não é porque o sócio morreu que,
obrigatoriamente, a pessoa jurídica será extinta.
De igual modo, o patrimônio da pessoa
jurídica é diferente do patrimônio de seus sócios.
Ex.1: se uma sociedade empresária
possui um veículo, esse automóvel não pertence aos sócios, mas sim à própria
pessoa jurídica.
Ex.2: se uma sociedade empresária
possui uma dívida, este débito deverá ser pago com os bens da própria
sociedade, não podendo para isso, em regra, ser utilizado o patrimônio pessoal
dos sócios.
Vigora, portanto, o princípio da
autonomia patrimonial entre os bens do sócio e da pessoa jurídica.
Desconsideração
da personalidade jurídica
O ordenamento jurídico prevê algumas
situações em que essa autonomia patrimonial pode ser afastada.
Tais hipóteses são chamadas de
“desconsideração da personalidade jurídica” (disregard of legal entity ou teoria do superamento da personalidade
jurídica).
Quando se aplica a desconsideração da
personalidade jurídica, os bens particulares dos administradores ou sócios são
utilizados para pagar dívidas da pessoa jurídica.
Por
que foi idealizada essa teoria da desconsideração da personalidade jurídica?
A autonomia patrimonial das pessoas
jurídicas sempre foi um instrumento muito importante para o desenvolvimento da
economia e da atividade empresarial. Isso porque serviu para estimular os
indivíduos a praticarem atividades econômicas, uma vez que, constituindo
pessoas jurídicas, as pessoas físicas sabiam que apenas o patrimônio da
sociedade empresária responderia pelas dívidas em caso de insucesso. Com isso,
as pessoas físicas ficavam mais seguras, já que, mesmo que o empreendimento não
prosperasse, elas não perderiam também o seu patrimônio pessoal não investido
na sociedade.
Ocorre que alguns indivíduos começaram
a abusar da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, utilizando-a como um meio
de praticar fraudes. A pessoa jurídica, após adquirir diversas dívidas,
transferia todo lucro e patrimônio para o nome dos sócios e, com isso, não
tinha como pagar os compromissos assumidos, não sobrando bens da sociedade que
pudessem ser executados pelos credores.
Percebendo esse abuso, a jurisprudência
passou a permitir a desconsideração da personalidade jurídica nessas hipóteses.
Posteriormente, foram editadas leis prevendo expressamente a possibilidade da
desconsideração.
Histórico
da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil
• CC-1916: não previa a possibilidade
de desconsideração da personalidade jurídica.
• Na década de 60, Rubens Requião foi
um dos primeiros doutrinadores brasileiros a defender a aplicação da teoria no
Brasil, mesmo sem previsão legal.
• Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do
Consumidor): foi a primeira lei a prever a possibilidade de desconsideração da
personalidade jurídica no Brasil (art. 28).
• Lei nº 8.884/94 (antiga Lei
Antitruste): também previu a desconsideração.
• Lei nº 9.605/98 (Lei de Crimes
Ambientais): também disciplinou a desconsideração.
• Código Civil de 2002: trouxe previsão
expressa no art. 50.
• Lei nº 12.529/2011: desconsideração
em caso de infrações da ordem econômica (art. 34).
• Lei nº 13.105/2015 (“novo” CPC):
previu um procedimento para a desconsideração da personalidade jurídica.
• Lei nº 13.874/2019 (Lei da Liberdade
Econômica), fruto da conversão da MP 881/2019: produziu profundas mudanças no
regime da desconsideração da personalidade jurídica previsto no Código Civil.
TEORIAS MAIOR
E MENOR
A
desconsideração da personalidade jurídica, no âmbito das relações civis gerais,
está disciplinada no art. 50 do CC.
Podemos dizer que
esse art. 50 traz a regra geral sobre a desconsideração jurídica no ordenamento
jurídico brasileiro, havendo algumas previsões específicas em diplomas próprios
(como é o caso do CDC).
Art.
50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de
finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte,
ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo,
desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de
obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de
sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. (redação dada pela
Lei nº 13.874/2019)
Espécies
de abuso da personalidade jurídica
Somente
poderá ocorrer a desconsideração da personalidade jurídica nas relações
jurídicas regidas pelo Código Civil se ficar caracterizado que houve abuso da
personalidade jurídica.
O abuso
da personalidade jurídica pode ocorrer em duas situações:
1) Desvio
de finalidade;
2)
Confusão patrimonial.
Além
disso, para que se atinja o patrimônio do administrador ou do sócio deve ser
provado que essa pessoa foi beneficiada com o abuso da personalidade jurídica.
Teorias
maior e menor da desconsideração
Como vimos acima, a desconsideração da personalidade
jurídica não é prevista apenas no Código Civil. Existem outros importantes
diplomas que tratam sobre o tema, como é o caso do CDC e da Lei Ambiental.
Ocorre que nem todas as leis trazem os mesmos requisitos para a
desconsideração. A partir daí surgiram dois grupos de legislações separadas a
partir dos requisitos impostos para a desconsideração. Confira:
Teoria MAIOR |
Teoria MENOR |
O
Direito Civil brasileiro adotou, como regra geral, a chamada teoria maior da
desconsideração. Isso porque o art. 50 exige que se prove o desvio de
finalidade (teoria maior subjetiva) ou a confusão patrimonial (teoria maior
objetiva). |
No
Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, adotou-se a teoria menor da
desconsideração. Isso porque, para que haja a desconsideração da
personalidade jurídica nas relações jurídicas envolvendo consumo ou
responsabilidade civil ambiental não se exige desvio de finalidade nem
confusão patrimonial. |
Deve-se
provar: 1) Abuso
da personalidade (desvio de finalidade ou confusão patrimonial); 2) Que
os administradores ou sócios da pessoa jurídica foram beneficiados direta ou
indiretamente pelo abuso (novo requisito trazido pela Lei nº 13.874/2019). |
De
acordo com a Teoria Menor, a incidência da desconsideração se justifica: a) pela
comprovação da insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas
obrigações, somada à má administração da empresa (art. 28, caput, do CDC); ou
b) pelo
mero fato de a personalidade jurídica representar um obstáculo ao
ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores, nos termos do § 5º do
art. 28 do CDC. STJ. 3ª
Turma. REsp 1735004/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 26/06/2018. |
Prevê a
possibilidade de se estender as obrigações da empresa a sócios e
administradores (mesmo que não sejam sócios). |
Somente
prevê a possibilidade de se estender obrigações da empresa a sócios (não fala
em “administradores”). |
Adotada
pelo art. 50 do CC. |
Prevista
no art. 4º da Lei nº 9.605/98 (Lei Ambiental) e no art. 28, § 5º do CDC. |
Dica para
você não confundir: teoria maior porque exige um maior número de requisitos.
Veja como o tema já
foi cobrado em prova:
(Juiz TJ/AP FGV 2022)
A consumidora Samantha propôs incidente de desconsideração de personalidade
jurídica em face de determinada loja de bijuterias construída na forma de
sociedade limitada. Narra a autora que, na fase de cumprimento de sentença que
condenou a empresa a pagar indenização à consumidora, não logrou êxito em
localizar bens para satisfazer a execução, embora diversas tenham sido as
tentativas para tanto. Samantha alega ainda que, na fase cognitiva, a
fornecedora foi declarada revel e sequer compareceu às audiências designadas
pelo Juízo.
A respeito disso, é
correto afirmar que o pedido deve ser julgado:
(A) improcedente,
pois a revelia e a ausência de participação no processo judicial não sugerem
abuso da personalidade jurídica, requisito para o deferimento do requerido;
(B) improcedente,
pois, para a desconsideração requerida, deverá restar efetivada falência,
estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica
provocados por má administração;
(C) procedente, ainda
que o Código de Defesa do Consumidor não preveja a desconsideração da personalidade
jurídica, quando caracterizado abuso da personalidade jurídica evidenciado no
caso pleiteado por Samantha;
(D) procedente, à luz
da aplicação da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica,
prevista no Código de Defesa do Consumidor;
(E) improcedente,
pois, ainda que prevista no Código de Defesa do Consumidor, a desconsideração
requerida não pode ser aplicada de forma a implicar a perda da finalidade de
responsabilidade limitada das sociedades, exceto no uso fraudulento da
personalidade jurídica.
Gabarito: Letra D
AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE PESSOAL DO SÓCIO
NÃO GESTOR E NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO CULPOSA
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João, consumidor, ingressou com
execução contra a empresa Alfa Empreendimentos Imobiliários.
A empresa executada era composta
por três sócios: Pedro, Tiago e Francisco.
Vale ressaltar que Francisco
possuía uma única quota social, de 1% do capital social. O restante pertencia
aos outros dois sócios. Importante também registrar que Francisco não exercia
poderes de gerência.
Durante a execução, não se
conseguiu localizar bens penhoráveis em nome da empresa.
Em razão disso, o juiz autorizou
a desconsideração da personalidade jurídica para buscar bens dos sócios.
O valor foi penhorado nas contas
de Francisco que recorreu contra a decisão alegando que nunca foi gestor da
empresa e que, portanto, não deveria ser pessoalmente responsabilizado.
O Tribunal de Justiça negou
provimento ao agravo sob o argumento de que a teoria menor da desconsideração
da personalidade jurídica (art. 28, § 5º, do CDC) permitiria a
responsabilização pessoal de Francisco, mesmo ele não sendo administrador da
empresa.
Inconformado, Francisco interpôs
recurso especial insistindo que não poderia ser pessoalmente responsável.
O STJ deu provimento ao
recurso de Francisco?
SIM.
Para fins de aplicação da
denominada Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica, não se
exige prova da fraude ou do abuso de direito, tampouco é necessária a prova de
confusão patrimonial, bastando que o consumidor demonstre o estado de
insolvência do fornecedor ou o fato de a personalidade jurídica representar um
obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados.
Considerando que o § 5º do art.
28 do CDC admite, a princípio, a responsabilização pessoal do sócio pelo mero
inadimplemento e ausência de bens suficientes à quitação do débito, é
indispensável que se analise a atuação do sócio na condução dos negócios da
empresa.
Se formos levar em consideração
as origens históricas da disregard doctrine, rigorosamente, não se
poderia afirmar que a hipótese contemplada no § 5º do art. 28 do CDC seria, de
fato, desconsideração da personalidade jurídica. Isso porque esse instituto está
necessariamente associado à fraude e ao abuso de direito, com desvirtuamento da
função social da pessoa jurídica, criada com personalidade distinta da de seus
sócios. O que se observa no § 5º do art. 28 do CDC é que houve, por mera opção
legislativa, a atribuição da responsabilidade aos sócios pelas dívidas da
sociedade.
O § 5º do art. 28 do CDC
representa uma hipótese autônoma e independente de desconsideração, que não
precisa cumprir os requisitos do caput do mesmo art. 28. Trata-se assim de uma
hipótese que tem o objetivo de garantir uma ampla proteção aos consumidores já
que basta que a personalidade jurídica esteja servindo como um “obstáculo ao
ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”
A despeito disso, mesmo em tal
hipótese, a desconsideração somente pode atingir pessoas incumbidas da gestão
da empresa.
Assim, a despeito de não se
exigir prova de abuso ou fraude para fins de aplicação da Teoria Menor,
tampouco de confusão patrimonial, o § 5º do art. 28 do CDC não dá margem para
admitir a responsabilização pessoal de quem jamais atuou como gestor da
empresa.
Vale lembrar que a
desconsideração, mesmo sob a vertente da denominada Teoria Menor, é uma exceção
à regra da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, “instrumento lícito de
alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de
estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e
inovação em benefício de todos” (art. 49-A do Código Civil, incluído pela Lei
nº 13.874/2019), a justificar, por isso, a interpretação mais restritiva do art.
28, § 5º, do CDC.
Em suma:
A despeito de não se exigir prova de abuso ou fraude
para aplicação da Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica,
não é possível a responsabilização pessoal de sócio que não desempenhe atos de
gestão, ressalvada a prova de que contribuiu, ao menos culposamente, para a
prática de atos de administração.
STJ. 3ª
Turma. REsp 1.900.843-DF, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. para
acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 23/5/2023 (Info 777).