Imagine a seguinte situação adaptada:
No dia 27 de julho de 2019, Renata,
ao estacionar seu carro, foi abordada por um homem que, empunhando arma de
fogo, anunciou um assalto. O sujeito determinou que a vítima deixasse o
veículo, assumindo o controle do automóvel e fugindo em direção ignorada.
Renata foi imediatamente até uma
Delegacia de Polícia reportar o roubo. Na ocasião, ela descreveu o homem como
“jovem, pardo, com cavanhaque e magro”.
Em 12 de agosto de 2019, cerca de
15 dias após o fato, a vítima foi chamada novamente na Delegacia e, nesta
segunda ocasião, descreveu o autor do roubo como sendo um homem negro. O
escrivão mostrou um álbum fotográfico e a vítima reconheceu João da Silva como sendo
o autor do crime.
João da Silva foi denunciado.
Em Juízo, a vítima foi levada a
sala própria de reconhecimento, na qual havia quatro pessoas, dentre elas João
da Silva.
A vítima apontou João da Silva
como sendo o autor do delito.
O acusado, na ocasião do seu
interrogatório, negou a autoria delitiva.
João da Silva foi condenado pelo
crime de roubo qualificado.
O réu interpôs recurso de
apelação alegando a insuficiência probatória porque a condenação foi baseada apenas
na palavra da vítima.
O TJ/RJ manteve a sentença.
A defesa impetrou habeas corpus
ao STJ alegando, em síntese, que não restou demostrada a autoria delitiva, uma
vez que o reconhecimento fotográfico é considerado de frágil valor probante,
ainda que ratificado em juízo, bem como que o reconhecimento pessoal, embora
tenha o seu valor, não é absoluto para, isoladamente, autorizar uma condenação
criminal, pois a vítima já estaria convencida da identidade de seu suposto
roubador.
Aduziu que o testemunho da
vítima, único fundamento para a condenação do paciente, não foi preciso e
harmonioso para tornar o reconhecimento feito na fase inquisitorial regular e
válido, eis que mudou o teor de sua declaração inicial e cerca de 15 dias
depois apresentou mais características do agente do que havia feito no dia dos
fatos.
O STJ concordou com os
argumentos da defesa? O réu foi absolvido?
SIM.
Desde que respeitadas as
exigências legais, o reconhecimento de pessoas é uma prova válida e pode ser
valorado pelo Julgador para fins de condenação. Isso não significa, contudo, que,
em todo e qualquer caso, a afirmação do ofendido de que identifica determinada
pessoa como o agente do crime seja prova cabal e irrefutável. Do contrário, a
função dos órgãos de Estado encarregados da investigação e da acusação (Polícia
e Ministério Público) seria relegada a segundo plano. O Magistrado, por sua
vez, estaria reduzido à função homologatória da acusação formalizada pelo
ofendido.
Assim, podemos dizer que o
reconhecimento positivo, que respeite as exigências legais “é válido, sem,
todavia, força probante absoluta, de sorte que não pode induzir, por si só, à
certeza da autoria delitiva, em razão de sua fragilidade epistêmica” (HC
712.781/RJ, Rel. Ministro Rogerio Schietti).
Há diferentes graus de
confiabilidade de um reconhecimento. Se decorrido curto lapso temporal entre o
crime e o ato e se a descrição do suspeito é precisa, isenta de contradições e
de alterações com o passar do tempo - o que não ocorre no caso em tela - a
prova, de fato, merece maior prestígio.
No entanto, em algumas hipóteses
o reconhecimento deve ser valorado com maior cautela, como, por exemplo, nos
casos em que já decorrido muito tempo desde a prática do delito, quando há
contradições na descrição declarada pela vítima e até mesmo na situação em que
esse relato porventura não venha a corresponder às reais características
físicas do suspeito apontado.
A confirmação, em juízo, do
reconhecimento fotográfico extrajudicial, por si só, não torna o ato seguro e
isento de erros involuntários, pois “uma vez que a testemunha ou a vítima
reconhece alguém como o autor do delito, há tendência, por um viés de
confirmação, a repetir a mesma resposta em reconhecimentos futuros, pois sua
memória estará mais ativa e predisposta a tanto” (STJ. 6ª Turma. HC 712.781/RJ,
Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 15/3/2022).
No caso concreto, as provas
produzidas nos autos revelam que:
i) a condenação do paciente foi baseada
tão somente no depoimento da vítima e nos reconhecimentos realizados na fase
extrajudicial e em juízo;
ii) não foram ouvidas outras
testemunhas de acusação;
iii) a res furtiva não foi
apreendida em poder do acusado; e
iv) o réu negou a imputação que
lhe foi dirigida.
Diante desse cenário, percebe-se
que as graves incongruências no reconhecimento do paciente não podem ser
sanadas mesmo porque não há outras provas em desfavor do condenado.
Desse modo, considerando que o
decreto condenatório está amparado tão somente nos reconhecimentos formalizados
pela vítima e, ainda, as divergências e inconsistências na referida prova,
aferíveis de plano, conclui-se que há dúvida razoável a respeito da autoria
delitiva, razão pela qual é necessário adotar a regra de julgamento que decorre
da máxima in dubio pro reo, tendo em vista que o ônus de provar a
imputação recai sobre a acusação.
Em suma:
STJ. 3ª
Seção. HC 769.783-RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 10/5/2023 (Info 775).