domingo, 25 de junho de 2023
O simples fato de o cão farejador ter sinalizado que haveria drogas na residência não é suficiente para se autorizar o ingresso na casa do suspeito
Inviolabilidade de domicílio
A CF/88
prevê, em seu art. 5º, a seguinte garantia:
XI - a casa é asilo inviolável do
indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em
caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o
dia, por determinação judicial;
A inviolabilidade do domicílio é uma
das expressões do direito à intimidade do indivíduo.
Entendendo o inciso XI:
Só se pode
entrar na casa de alguém sem o consentimento do morador nas seguintes
hipóteses:
Durante o DIA |
Durante a NOITE |
• Em caso de flagrante delito; • Em caso de desastre; • Para prestar socorro; • Para cumprir determinação judicial (ex: busca e
apreensão; cumprimento de prisão preventiva). |
• Em caso de flagrante delito; • Em caso de desastre; • Para prestar socorro. |
Assim, guarde isso: não se pode
invadir a casa de alguém durante a noite para cumprir ordem judicial.
Flagrante delito
Vimos acima que, havendo flagrante
delito, é possível ingressar na casa mesmo sem consentimento do morador, seja
de dia ou de noite.
Um
exemplo comum no cotidiano é o caso do tráfico de drogas. Diversos verbos do
art. 33 da Lei nº 11.343/2006 fazem com que este delito seja permanente:
Art. 33. Importar, exportar, remeter,
preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito,
transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo
ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo
com determinação legal ou regulamentar:
Assim, se a casa do traficante funciona
como boca-de-fumo, onde ele armazena e vende drogas, a todo momento estará
ocorrendo o crime, considerando que ele está praticando os verbos “ter em
depósito” e “guardar”.
Diante disso, havendo suspeitas de que
existe droga em determinada casa, será possível que os policiais invadam a
residência mesmo sem ordem judicial e ainda que contra o consentimento do
morador?
SIM. No entanto, no caso concreto,
devem existir fundadas razões que indiquem que ali está sendo cometido um crime
(flagrante delito). Essas razões que motivaram a invasão forçada deverão ser
posteriormente expostas pela autoridade, sob pena de ela responder nos âmbitos
disciplinar, civil e penal. Além disso, os atos praticados poderão ser
anulados.
O STF possui uma tese fixada sobre o tema:
A entrada forçada em domicílio sem
mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em
fundadas razões, devidamente justificadas “a posteriori”, que indiquem que
dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade
disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos
praticados.
STF. Plenário. RE 603616/RO, Rel. Min.
Gilmar Mendes, julgado em 4 e 5/11/2015 (repercussão geral – Tema 280) (Info
806).
O STJ também possui alguns julgados a
respeito do assunto:
O ingresso regular da polícia no domicílio, sem autorização
judicial, em caso de flagrante delito, para que seja válido, necessita que haja
fundadas razões (justa causa) que sinalizem a ocorrência de crime no interior
da residência.
A mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo
agente, embora pudesse autorizar abordagem policial em via pública para
averiguação, não configura, por si só, justa causa a autorizar o ingresso em
seu domicílio, sem o seu consentimento e sem determinação judicial.
STJ. 6ª Turma. REsp 1574681-RS, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz,
julgado em 20/4/2017 (Info 606).
Assim, para legitimar-se o
ingresso em domicílio alheio, é necessário tenha a autoridade policial fundadas
razões para acreditar, com lastro em circunstâncias objetivas, no atual ou
iminente cometimento de crime no local onde a diligência vai ser cumprida.
Feita
essa revisão, imagine a seguinte situação hipotética:
Os
policiais estavam fazendo uma ronda de rotina no bairro.
O cão farejador
que acompanhava os policiais sinalizou que havia droga na entrada de uma das
casas.
Além
disso, neste mesmo instante, conforme narraram os policiais, um indivíduo saiu da
casa e, ao ser indagado pela polícia, teria confessado que comprou e consumiu
drogas no local.
Os
policiais tocaram a campainha e foram atendidos por Pedro, morador da
residência.
Segundo o
depoimento policial, Pedro permitiu voluntariamente que os agentes entrassem na
casa, com o cão farejador, a fim de procurar drogas.
Dentro da residência,
a polícia encontrou maconha e cocaína, além de uma balança de precisão.
Pedro foi denunciado
por tráfico de drogas.
Não houve
comprovação documental de que ocorreu autorização voluntária para o ingresso no
domicílio.
O réu foi
condenado.
A defesa
impetrou habeas corpus alegando que todas as provas obtidas foram
ilegais porque obtidas mediante ofensa à garantia constitucional de
inviolabilidade de domicílio.
O STJ concordou com o pedido da
defesa?
SIM.
Em uma caso semelhante a esse, a 6ª
Turma do STJ anulou as provas obtidas mediante busca e apreensão domiciliar,
bem como as provas delas decorrentes, e, em consequência, absolveu o réu.
Prova do consentimento
O STJ tem decidido que:
Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige-se, em
termos de standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem
mandado judicial, a existência de fundadas razões (justa causa), aferidas de
modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da
casa ocorre situação de flagrante delito.
O tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser
classificado como crime de natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada
sem mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga. Apenas será
permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir que do atraso
decorrente da obtenção de mandado judicial se possa objetiva e concretamente
inferir que a prova do crime (ou a própria droga) será destruída ou ocultada.
O consentimento do morador, para validar o ingresso de
agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao
crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou
coação.
A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento
para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao
Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o
ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em
todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada tal prova
enquanto durar o processo.
A violação a essas regras e condições legais e
constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das
provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela
decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual
responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a
diligência.
STJ. 5ª
Turma. HC 616584/RS, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 30/03/2021.
STJ. 6ª
Turma. HC 598051/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em
02/03/2021 (Info 687).
Nesse mesmo sentido:
Para que os policiais façam o ingresso forçado em domicílio,
resultando na apreensão de material apto a configurar o crime de tráfico de
drogas, isso deve estar justificado com base em elementos prévios que indiquem
que havia um estado de flagrância ocorrendo no local.
No caso em tela, a violação de domicílio teve como
justificativa o comportamento suspeito do acusado – que empreendeu fuga ao ver
a viatura policial –, circunstância fática que não autoriza a dispensa de
investigações prévias ou do mandado judicial para a entrada dos agentes
públicos na residência, acarretando a nulidade da diligência policial.
Além disso, a alegação de que a entrada dos policiais teria
sido autorizada pelo agente não merece acolhimento. Isso, porque não há outro
elemento probatório no mesmo sentido, salvo o depoimento dos policiais que
realizaram o flagrante, tendo tal autorização sido negada em juízo pelo réu.
Segundo entende o STJ, é do estado acusador o ônus de
comprovar que houve consentimento válido do morador para que os policiais
entrem na casa. Assim, o estado acusador é quem deve provar que o morador
autorizou a entrada, não sendo suficiente a mera palavra dos policiais.
STJ. 6ª
Turma. HC 695980-GO, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em
22/03/2022 (Info 730).
No caso, não houve comprovação
documental de que ocorreu a autorização voluntária e livre de coação para o
ingresso no domicílio. Além disso, a palavra dos agentes policiais acerca da
suposta autorização não encontrou respaldo em nenhum outro elemento probatório,
sendo certo que no depoimento extrajudicial do acusado não houve registro sobre
o seu consentimento.
Mera sinalização do cão farejador não
é suficiente para confirmar que havia flagrante delito
A mera sinalização do cão de faro,
seguida da abordagem de um suposto usuário – que não foi ouvido em juízo –
saindo do local, desacompanhada de qualquer outra diligência investigativa ou
outro elemento concreto indicando a necessidade de imediata ação policial
naquele momento, não justifica, por si só, a dispensa do mandado judicial para
o ingresso em domicílio.
Em suma:
A mera sinalização do cão de faro, seguida de
abordagem a suposto usuário saindo do local, desacompanhada de qualquer outra
diligência investigativa ou outro elemento concreto indicando a necessidade de
imediata ação policial, não justifica a dispensa do mandado judicial para o ingresso
em domicílio.
STJ. 6ª
Turma. AgRg no HC 729.836-MS, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 27/4/2023 (Info
774).