Imagine a seguinte situação adaptada:
Ricardo instalou uma câmera e
gravou a prática de ato sexual entre ele e sua namorada Letícia, sem o
consentimento dela.
Letícia tomou conhecimento dessa
gravação em 20/10/2019, porém registrou boletim de ocorrência 10 meses depois
da descoberta, em 21/08/2020.
O Ministério Público ofereceu denúncia em face de Ricardo
pela prática do crime tipificado pelo art. 216-B, do Código Penal:
CAPÍTULO I-A
DA EXPOSIÇÃO DA INTIMIDADE SEXUAL
(Incluído pela Lei nº 13.772, de
2018)
Registro não autorizado da
intimidade sexual
Art. 216-B. Produzir, fotografar, filmar ou registrar,
por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de
caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes:
Pena - detenção, de 6 (seis)
meses a 1 (um) ano, e multa.
Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem realiza montagem
em fotografia, vídeo, áudio ou qualquer outro registro com o fim de incluir
pessoa em cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo.
Ricardo alegou que que o delito do art. 216-B do CP é crime
de ação pública condicionada, tendo em vista que a previsão contida no art. 225
do CP (ação penal pública incondicionada) abrange exclusivamente os crimes
definidos nos Capítulos I e II, do Título VI, não fazendo referência ao
Capítulo I-A, no qual se situa o crime do art. 216-B:
Art. 225. Nos crimes definidos
nos Capítulos I e II
deste Título, procede-se mediante ação penal pública incondicionada.
O réu sustentou que há uma lacuna
legal e que, diante do princípio do favor rei, deve ser suprida de modo
a concluir que o crime do art. 216-B se processa mediante ação pública
condicionada.
Logo, como a representação foi oferecida após o prazo de
seis meses, concluiu que teria ocorrido a decadência, na forma do art. 38 do
CPP:
Art. 38. Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou
seu representante legal, decairá no direito de queixa ou de representação, se
não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que vier a saber
quem é o autor do crime, ou, no caso do art. 29, do dia em que se esgotar o
prazo para o oferecimento da denúncia.
Parágrafo único. Verificar-se-á a decadência do direito de
queixa ou representação, dentro do mesmo prazo, nos casos dos arts. 24,
parágrafo único, e 31.
O STJ concordou com os
argumentos da defesa?
NÃO.
A Lei nº 13.718/2018 converteu a
ação penal de todos os crimes contra a dignidade sexual em delitos de ação
pública incondicionada (art. 225 do Código Penal).
Posteriormente, a Lei nº
13.772/2018 criou um novo capítulo no Código Penal, o Capítulo I-A, e dentro
dele o delito do art. 216-B (Registro não autorizado da intimidade sexual). Ao
criar esse novo capítulo, no entanto, deixou-se de acrescentar sua menção no
art. 225 do Código Penal, o qual se referia aos capítulos existentes à época da
sua redação (Capítulos I e II).
Para o STJ, contudo, mesmo com essa omissão legislativa,
conclui-se que o crime de registro não autorizado da intimidade sexual se trata
de ação penal pública incondicionada. Isso porque, inexistindo menção expressa
(seja no capítulo I-A, seja no art. 216-B) de que se trata de ação privada ou
pública condicionada, aplica-se a regra geral do Código Penal: no silêncio da
lei, deve-se considerar a ação penal como pública incondicionada. Isso está no art.
100 do CP:
Art. 100. A ação penal é pública,
salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido.
Assim, não se pode perder de
vista que a regra geral da legislação criminal é a ação penal pública ser
incondicionada, sendo pública condicionada, ou privada, apenas se houver
previsão expressa nesse sentido pelo legislador.
Dessa forma, ao considerar o
delito de registro não autorizado da intimidade sexual como delito de ação
penal pública incondicionada, inexiste a alegada decadência do direito de
representação.
Em suma:
STJ. 6ª Turma. RHC 175.947/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior,
julgado em 25/4/2023 (Info 772).