O julgado a seguir comentado
envolve o crime do art. 19 da Lei nº 7.492/86.
Antes de explicar o que foi
decidido, será feita uma breve revisão a respeito desse tipo penal.
Caso esteja sem tempo, pode ir
diretamente para a explicação do julgado.
CRIME DO ART. 19 DA LEI 7.492/86
Comentários ao julgado feitos em
coautoria com Luís Felipe Pimentel da Costa (Juiz Federal TRF1).
Fraude na obtenção de financiamento
Art. 19. Obter,
mediante fraude, financiamento em instituição financeira:
Pena - Reclusão, de 2
(dois) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo único. A pena
é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é cometido em detrimento de
instituição financeira oficial ou por ela credenciada para o repasse de
financiamento.
O legislador incriminou a conduta do agente que obtém
um financiamento em instituição financeira mediante o utilização de fraude. A
doutrina diz que o crime é uma modalidade especial de estelionato.
Tipo objetivo
Obter significa conseguir, alcançar.
O tipo exige a fraude como meio para ter acesso ao
financiamento. Não há a exigência de um meio específico, podendo a fraude se
dar sob qualquer forma. É possível, portanto, a utilização de documentação
material ou ideologicamente falsa.
Em se tratando de documentação falsa, deve ser
aplicado o princípio da consunção, ficando absorvido o crime de uso de
documento falso:
Súmula 17-STJ: Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais
potencialidade lesiva, é por este absorvido.
Objeto material
É o financiamento, assim considerando como o
empréstimo com destinação específica/vinculada. Exemplo: financiamento para a
compra de um veículo ou uma casa.
Tratando-se de fraude para obtenção de financiamento
bancário visando a compra de veículo automotor - operação financeira
caracterizada pela destinação vinculada da verba emprestada -, fica tipificado
o crime contra o sistema financeiro nacional previsto no art. 19 da Lei nº 7.492/86,
o que atrai a competência da Justiça Federal.
STJ. 6ª
Turma. AgRg no REsp 1806106/SP, Rel. Min. Antônio Saldanha Palheiro, julgado em
27/08/2019.
Tratando-se de financiamento - operação financeira
caracterizada pela destinação vinculada da verba emprestada -, e não de simples
mútuo, transação em que não há destinação específica do montante emprestado,
fica caracterizado o crime contra o sistema financeiro nacional previsto no
art. 19 da Lei nº 7.492/86, o que atrai a competência da Justiça Federal.
STJ. 3ª
Seção. AgRg no CC 159.142/DF, Rel. Min. Antônio Saldanha Palheiro, julgado em
26/09/2018.
O STJ entende que o contrato de leasing é
considerado financiamento para fins penais:
O contrato de leasing - também denominado arrendamento
mercantil – embora possua particularidades próprias, revela, na prática,
verdadeiro tipo de financiamento bancário, para aquisição de bem específico, em
instituição financeira.
Dessa forma, tem-se que os fatos narrados se subsumem, ao
menos em tese, ao tipo penal do art. 19 da Lei nº 7.492/86, o que determina a
competência da Justiça Federal, nos termos do art. 26 da referida lei.
STJ. 3ª
Seção. CC 114.030/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 26/03/2014.
Caso o empréstimo não tenha finalidade específica,
não será considerado um financiamento. Assim, se o agente, mediante fraude,
consegue um empréstimo que não tinha finalidade específica, não haverá o delito
do art. 19 da Lei nº 7.492/86, e sim o crime de estelionato. Confira-se:
No caso em exame, trata-se “de representação criminal
aforada pelo Banco do Brasil S/A, por meio da qual comunica a suposta prática
dos crimes previstos nos artigos 171, caput, 298 e 299, todos do Código
Penal. Segundo consta, a representada Josy Aparecida Prado, usando documentos
de clientes do Banco do Brasil, forjou contratos para obtenção de recursos do
PRONAF - Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar”.
Há muito firmou-se jurisprudência nesta Corte Superior
acerca do tema, consolidando o entendimento de que “Para configurar o crime
contra o Sistema Financeiro Nacional, previsto no art. 19 da Lei nº 7.492/1986,
é preciso que o agente obtenha, mediante fraude, financiamento em instituição
financeira, contrato que tem como característica o fato de possuir destinação
específica, vinculado à comprovação da aplicação dos recursos, diferente do que
ocorre com o empréstimo pessoal. Precedentes." (CC 119.304/SE, Rel.
Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 04/12/2012).
Em outras palavras, se a fraude é praticada para a obtenção
de qualquer tipo de empréstimo, a conduta caracteriza o delito de estelionato;
todavia, se a fraude é destinada ao específico objetivo de obtenção de
financiamento se está diante do crime contra o sistema financeiro nacional.
No caso em exame, a conduta ora investigada, neste momento
processual, não se amolda inequivocamente a crime contra o Sistema Financeiro
Nacional.
STJ. 3ª
Seção. AgRg no CC 151.973/MG, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 08/08/2018.
Assim, não são consideradas operações de
financiamento:
• empréstimos para capital de giro;
• empréstimos pessoais;
• adiantamento a depositantes.
Conforme já explicado, havendo fraude para a
obtenção de um desses empréstimos “comuns”, restará configurado o delito de
estelionato:
Tendo em vista que o empréstimo fraudulento para capital de
giro, empréstimos pessoais e adiantamento a depositantes não caracterizam
financiamento com destinação específica (Circular n° 1.273/87 do Banco Central,
item 1.6.1), mas sim operações de crédito sem destinação específica ou vínculo
à comprovação da aplicação dos recursos, o caso em análise trata, em tese, de
crime de estelionato, tipificado no art. 171 do Código Penal - CP.
STJ. 3ª
Seção. CC 165.727/SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 23/10/2019.
A perícia não é imprescindível, devendo ser
analisada a sua necessidade no caso concreto
Não se exige a realização de perícia para
comprovação da fraude, caso ela possa ser verificada por outros meios.
No crime de obtenção de financiamento em instituição
financeira mediante fraude, disposto no art. 19 da Lei 7.492/86, é prescindível
a realização de perícia grafotécnica quando outros meios de prova se mostrem
aptos a comprovar a materialidade delitiva.
STJ. 6ª
Turma. REsp 1773226/SC, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 14/05/2019.
Bem jurídico
O bem jurídico tutela é o patrimônio da instituição
financeira, a confiança dos investidores e a credibilidade do sistema
financeiro.
Cuida-se, por outro lado, de delito formal, que tem como
como sujeito passivo principal o Estado e não a instituição financeira
eventualmente lesada, até porque a norma penal objetiva assegurar, em última
análise, a própria credibilidade do mercado financeiro e a proteção do
investidor, o que não se cumpriria a contento, acaso o seu âmbito de incidência
não abarcasse todas as instituições financeiras, quer se utilizem, ou não, de
recursos advindos ou administrados pelo Estado.
STJ. 6ª
Turma. REsp 706.871/RS, Rel. Ministro CELSO LIMONGI (Desembargador Convocado do
TJ/SP), julgado em 22/06/2010.
Não aplicação do princípio da insignificância
Ainda que os valores envolvidos no financiamento
sejam de pequena monta, não se admite o reconhecimento do princípio da insignificância.
Isso porque se busca preservar a confiança no sistema financeiro. Nesse
sentido:
Firmou-se a jurisprudência desta Corte no sentido de que
inaplicável o princípio da insignificância aos crimes contra o sistema
financeiro, tendo em vista a necessidade de maior proteção à sua estabilidade e
higidez.
STJ. 6ª
Turma. REsp 1580638/RS, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 22/8/2017.
Sujeito ativo
Qualquer pessoa pode praticar o delito (crime
comum).
Sujeito passivo
É a instituição financeira, os investidores e o
Estado. Não há a necessidade de que a instituição financeira seja oficial para
caracterização do crime. Ou seja, um financiamento obtido fraudulentamente em
prejuízo de uma instituição financeira privada, como Bradesco, Itaú, Santander
etc., caracteriza o crime em comento.
Se o delito for praticado em detrimento de uma
instituição financeira oficial (CEF, Banco do Brasil, BNDES etc.) ou por ela
credenciada para o repasse de financiamento, aplica-se a causa de aumento prevista
no parágrafo único do art. 19: “A pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime
é cometido em detrimento de instituição financeira oficial ou por ela
credenciada para o repasse de financiamento.”
Vale ressaltar, ainda, que, para a incidência da
majorante, a verba não precisa ser oriunda de programa governamental:
Para a incidência da causa de aumento do art. 19, parágrafo
único, da Lei nº 7.492/86 é suficiente que o crime tenha sido cometido em
detrimento de instituição financeira oficial ou por ela credenciada para o
repasse de financiamento. Não é necessário que o valor financiado por meio de
fraude advenha de verba oriunda de programa governamental, pois na elementar da
majorante não há essa exigência específica.
Praticado o delito em desfavor da Caixa Econômica Federal,
empresa pública federal e, portanto, instituição financeira oficial, é devida a
aplicação da majorante.
STJ. 6ª
Turma. REsp 1840408/RS, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 13/10/2020.
Elemento subjetivo
É o dolo de obter financiamento mediante fraude,
ainda que se tenha a intenção de quitar as parcelas em dia. Esse ponto é muito
relevante e já foi objeto de julgado do STJ:
Para a configuração do delito descrito no art. 19 da Lei nº 7.492/86,
segundo a pacífica orientação desta Corte, basta a obtenção, mediante fraude,
de financiamento em instituição financeira. Logo, o dolo do agente, que
caracteriza o referido crime, não é aferido devido ao pagamento ou não de
parcelas referentes ao financiamento, mas em momento anterior, isto é, por
ocasião da celebração do financiamento, que pressupõe a utilização de fraude.
STJ, 6ª
Turma. AgRg no REsp 1761580/PE, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em
28/04/2020.
Consumação
Segundo o STJ, o crime se consuma com a celebração
do contrato de financiamento e não há a necessidade de prejuízo. Considera-se,
assim, crime formal. Em outras palavras, ainda que o agente pague as prestações
do financiamento em dia, o crime restará configurado caso o acesso ao recurso
tenha se dado mediante fraude. Confira-se:
Cuida-se de delito formal, que tem como como sujeito passivo
principal o Estado e não a instituição financeira eventualmente lesada, até
porque a norma penal objetiva assegurar, em última análise, a própria
credibilidade do mercado financeiro e a proteção do investidor, o que não se
cumpriria a contento, acaso o seu âmbito de incidência não abarcasse todas as
instituições financeiras, quer se utilizem, ou não, de recursos advindos ou
administrados pelo Estado.
STJ. 6ª
Turma. REsp 706.871/RS, Rel. Min. Celso Limongi (Desembargador Convocado do
TJ/SP), julgado em 22/06/2010.
O tema foi amplamente debatido em precedente no qual esta Corte
Superior manteve sua jurisprudência no sentido de que o crime tipificado no
art. 19 da Lei n. 7.492/86 não exige, para a sua configuração, efetivo ou
potencial abalo ao Sistema Financeiro.
STJ. 3ª Seção. EDcl no AgRg no CC 156.185/MG, Rel. Min. Reynaldo
Soares Da Fonseca, DJe 7/5/2018.
EXPLICAÇÃO DO JULGADO
João pretendia adquirir uma casa
que pertencia a Pedro.
O pagamento seria feito mediante
financiamento junto à Caixa Econômica Federal.
Em outras palavras, João não
tinha o dinheiro suficiente para comprar a casa e, portanto, pretendia obter um
financiamento (“empréstimo”) com a CEF.
Essa compra e venda foi
intermediada por Geraldo, corretor de imóveis.
Geraldo reuniu toda a documentação
das partes e a encaminhou para a Caixa Econômica Federal para que fosse
analisada a possibilidade de João obter o financiamento.
A funcionária da CEF, em uma análise
preliminar, afirmou que os documentos apresentados não seriam suficientes para
comprovar a renda declarada de João, o que inviabilizaria a liberação do
crédito.
Geraldo, para contornar o
problema, apresentou documentos falsos à CEF: (1) extratos bancários de uma
conta inexistente supostamente em nome de João; e (2) cópia falsa de uma suposta
declaração de imposto de renda de João.
Sem saber da falsidade da
documentação, a CEF autorizou a liberação do crédito.
As partes foram convocadas até
uma agência da CEF e assinaram o contrato de financiamento.
Dias depois da assinatura do
contrato de financiamento, a gerente da CEF, analisando novamente a papelada, desconfiou
da veracidade dos documentos apresentados, cancelou a liberação dos valores e
acionou a Polícia Federal.
O Ministério Público Federal denunciou
Geraldo pela prática do delito tipificado pelo art. 19, parágrafo único, da Lei
nº 7.492/86, na forma consumada.
A defesa de Geraldo alegou,
dentre outros argumentos, que houve mera tentativa “tendo em vista que o corretor
permaneceu apenas no campo executório, com a apresentação dos documentos
inidôneos, que foram percebidos pela gerente do banco, que cancelou a liberação
do valor, impossibilitando, assim, a concretização do financiamento”.
Os argumentos da defesa foram
acolhidos pelo STJ? Houve mera tentativa?
NÃO. No caso concreto, o crime se
consumou.
O crime do art. 19 da Lei nº
7.492/86 se consuma no momento em que assinado o contrato de obtenção de
financiamento mediante fraude.
Confira outro julgado do STJ no mesmo
sentido:
A consumação do crime do art. 19 da Lei nº 7.492/86 se dá no
momento em que o financiamento é obtido através de fraude, dispensando-se a
efetiva existência de prejuízo econômico.
STJ. 5ª Turma. EDcl no AgRg no REsp 1.570.225/RS, Rel. Min. Jorge
Mussi, DJe 25/10/2019.
Em suma:
STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 2.002.450-SE, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 17/4/2023 (Info 771).