Dizer o Direito

sexta-feira, 2 de junho de 2023

O crime do art. 19 da Lei 7.492/86 se consuma no momento em que assinado o contrato de obtenção de financiamento mediante fraude, ainda que o dinheiro não seja liberado

O julgado a seguir comentado envolve o crime do art. 19 da Lei nº 7.492/86.

Antes de explicar o que foi decidido, será feita uma breve revisão a respeito desse tipo penal.

Caso esteja sem tempo, pode ir diretamente para a explicação do julgado.

 

CRIME DO ART. 19 DA LEI 7.492/86

Comentários ao julgado feitos em coautoria com Luís Felipe Pimentel da Costa (Juiz Federal TRF1).

 

Fraude na obtenção de financiamento

Art. 19. Obter, mediante fraude, financiamento em instituição financeira:

Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é cometido em detrimento de instituição financeira oficial ou por ela credenciada para o repasse de financiamento.

 

O legislador incriminou a conduta do agente que obtém um financiamento em instituição financeira mediante o utilização de fraude. A doutrina diz que o crime é uma modalidade especial de estelionato.

 

Tipo objetivo

Obter significa conseguir, alcançar.

O tipo exige a fraude como meio para ter acesso ao financiamento. Não há a exigência de um meio específico, podendo a fraude se dar sob qualquer forma. É possível, portanto, a utilização de documentação material ou ideologicamente falsa.

Em se tratando de documentação falsa, deve ser aplicado o princípio da consunção, ficando absorvido o crime de uso de documento falso:

Súmula 17-STJ: Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido.

 

Objeto material

É o financiamento, assim considerando como o empréstimo com destinação específica/vinculada. Exemplo: financiamento para a compra de um veículo ou uma casa.

Tratando-se de fraude para obtenção de financiamento bancário visando a compra de veículo automotor - operação financeira caracterizada pela destinação vinculada da verba emprestada -, fica tipificado o crime contra o sistema financeiro nacional previsto no art. 19 da Lei nº 7.492/86, o que atrai a competência da Justiça Federal.

STJ. 6ª Turma. AgRg no REsp 1806106/SP, Rel. Min. Antônio Saldanha Palheiro, julgado em 27/08/2019.

 

Tratando-se de financiamento - operação financeira caracterizada pela destinação vinculada da verba emprestada -, e não de simples mútuo, transação em que não há destinação específica do montante emprestado, fica caracterizado o crime contra o sistema financeiro nacional previsto no art. 19 da Lei nº 7.492/86, o que atrai a competência da Justiça Federal.

STJ. 3ª Seção. AgRg no CC 159.142/DF, Rel. Min. Antônio Saldanha Palheiro, julgado em 26/09/2018.

 

O STJ entende que o contrato de leasing é considerado financiamento para fins penais:

O contrato de leasing - também denominado arrendamento mercantil – embora possua particularidades próprias, revela, na prática, verdadeiro tipo de financiamento bancário, para aquisição de bem específico, em instituição financeira.

Dessa forma, tem-se que os fatos narrados se subsumem, ao menos em tese, ao tipo penal do art. 19 da Lei nº 7.492/86, o que determina a competência da Justiça Federal, nos termos do art. 26 da referida lei.

STJ. 3ª Seção. CC 114.030/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 26/03/2014.

 

Caso o empréstimo não tenha finalidade específica, não será considerado um financiamento. Assim, se o agente, mediante fraude, consegue um empréstimo que não tinha finalidade específica, não haverá o delito do art. 19 da Lei nº 7.492/86, e sim o crime de estelionato. Confira-se:

No caso em exame, trata-se “de representação criminal aforada pelo Banco do Brasil S/A, por meio da qual comunica a suposta prática dos crimes previstos nos artigos 171, caput, 298 e 299, todos do Código Penal. Segundo consta, a representada Josy Aparecida Prado, usando documentos de clientes do Banco do Brasil, forjou contratos para obtenção de recursos do PRONAF - Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar”.

Há muito firmou-se jurisprudência nesta Corte Superior acerca do tema, consolidando o entendimento de que “Para configurar o crime contra o Sistema Financeiro Nacional, previsto no art. 19 da Lei nº 7.492/1986, é preciso que o agente obtenha, mediante fraude, financiamento em instituição financeira, contrato que tem como característica o fato de possuir destinação específica, vinculado à comprovação da aplicação dos recursos, diferente do que ocorre com o empréstimo pessoal. Precedentes." (CC 119.304/SE, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 04/12/2012).

Em outras palavras, se a fraude é praticada para a obtenção de qualquer tipo de empréstimo, a conduta caracteriza o delito de estelionato; todavia, se a fraude é destinada ao específico objetivo de obtenção de financiamento se está diante do crime contra o sistema financeiro nacional.

No caso em exame, a conduta ora investigada, neste momento processual, não se amolda inequivocamente a crime contra o Sistema Financeiro Nacional.

STJ. 3ª Seção. AgRg no CC 151.973/MG, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 08/08/2018.

 

Assim, não são consideradas operações de financiamento:

• empréstimos para capital de giro;

• empréstimos pessoais;

• adiantamento a depositantes.

 

Conforme já explicado, havendo fraude para a obtenção de um desses empréstimos “comuns”, restará configurado o delito de estelionato:

Tendo em vista que o empréstimo fraudulento para capital de giro, empréstimos pessoais e adiantamento a depositantes não caracterizam financiamento com destinação específica (Circular n° 1.273/87 do Banco Central, item 1.6.1), mas sim operações de crédito sem destinação específica ou vínculo à comprovação da aplicação dos recursos, o caso em análise trata, em tese, de crime de estelionato, tipificado no art. 171 do Código Penal - CP.

STJ. 3ª Seção. CC 165.727/SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 23/10/2019.

 

A perícia não é imprescindível, devendo ser analisada a sua necessidade no caso concreto

Não se exige a realização de perícia para comprovação da fraude, caso ela possa ser verificada por outros meios.

No crime de obtenção de financiamento em instituição financeira mediante fraude, disposto no art. 19 da Lei 7.492/86, é prescindível a realização de perícia grafotécnica quando outros meios de prova se mostrem aptos a comprovar a materialidade delitiva.

STJ. 6ª Turma. REsp 1773226/SC, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 14/05/2019.

 

Bem jurídico

O bem jurídico tutela é o patrimônio da instituição financeira, a confiança dos investidores e a credibilidade do sistema financeiro.

Cuida-se, por outro lado, de delito formal, que tem como como sujeito passivo principal o Estado e não a instituição financeira eventualmente lesada, até porque a norma penal objetiva assegurar, em última análise, a própria credibilidade do mercado financeiro e a proteção do investidor, o que não se cumpriria a contento, acaso o seu âmbito de incidência não abarcasse todas as instituições financeiras, quer se utilizem, ou não, de recursos advindos ou administrados pelo Estado.

STJ. 6ª Turma. REsp 706.871/RS, Rel. Ministro CELSO LIMONGI (Desembargador Convocado do TJ/SP), julgado em 22/06/2010.

 

 

 

Não aplicação do princípio da insignificância

Ainda que os valores envolvidos no financiamento sejam de pequena monta, não se admite o reconhecimento do princípio da insignificância. Isso porque se busca preservar a confiança no sistema financeiro. Nesse sentido:

Firmou-se a jurisprudência desta Corte no sentido de que inaplicável o princípio da insignificância aos crimes contra o sistema financeiro, tendo em vista a necessidade de maior proteção à sua estabilidade e higidez.

STJ. 6ª Turma. REsp 1580638/RS, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 22/8/2017.

 

Sujeito ativo

Qualquer pessoa pode praticar o delito (crime comum).

 

Sujeito passivo

É a instituição financeira, os investidores e o Estado. Não há a necessidade de que a instituição financeira seja oficial para caracterização do crime. Ou seja, um financiamento obtido fraudulentamente em prejuízo de uma instituição financeira privada, como Bradesco, Itaú, Santander etc., caracteriza o crime em comento.

Se o delito for praticado em detrimento de uma instituição financeira oficial (CEF, Banco do Brasil, BNDES etc.) ou por ela credenciada para o repasse de financiamento, aplica-se a causa de aumento prevista no parágrafo único do art. 19: “A pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é cometido em detrimento de instituição financeira oficial ou por ela credenciada para o repasse de financiamento.”

Vale ressaltar, ainda, que, para a incidência da majorante, a verba não precisa ser oriunda de programa governamental:

Para a incidência da causa de aumento do art. 19, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86 é suficiente que o crime tenha sido cometido em detrimento de instituição financeira oficial ou por ela credenciada para o repasse de financiamento. Não é necessário que o valor financiado por meio de fraude advenha de verba oriunda de programa governamental, pois na elementar da majorante não há essa exigência específica.

Praticado o delito em desfavor da Caixa Econômica Federal, empresa pública federal e, portanto, instituição financeira oficial, é devida a aplicação da majorante.

STJ. 6ª Turma. REsp 1840408/RS, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 13/10/2020.

 

Elemento subjetivo

É o dolo de obter financiamento mediante fraude, ainda que se tenha a intenção de quitar as parcelas em dia. Esse ponto é muito relevante e já foi objeto de julgado do STJ:

Para a configuração do delito descrito no art. 19 da Lei nº 7.492/86, segundo a pacífica orientação desta Corte, basta a obtenção, mediante fraude, de financiamento em instituição financeira. Logo, o dolo do agente, que caracteriza o referido crime, não é aferido devido ao pagamento ou não de parcelas referentes ao financiamento, mas em momento anterior, isto é, por ocasião da celebração do financiamento, que pressupõe a utilização de fraude.

STJ, 6ª Turma. AgRg no REsp 1761580/PE, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 28/04/2020.

 

Consumação

Segundo o STJ, o crime se consuma com a celebração do contrato de financiamento e não há a necessidade de prejuízo. Considera-se, assim, crime formal. Em outras palavras, ainda que o agente pague as prestações do financiamento em dia, o crime restará configurado caso o acesso ao recurso tenha se dado mediante fraude. Confira-se:

Cuida-se de delito formal, que tem como como sujeito passivo principal o Estado e não a instituição financeira eventualmente lesada, até porque a norma penal objetiva assegurar, em última análise, a própria credibilidade do mercado financeiro e a proteção do investidor, o que não se cumpriria a contento, acaso o seu âmbito de incidência não abarcasse todas as instituições financeiras, quer se utilizem, ou não, de recursos advindos ou administrados pelo Estado.

STJ. 6ª Turma. REsp 706.871/RS, Rel. Min. Celso Limongi (Desembargador Convocado do TJ/SP), julgado em 22/06/2010.

 

O tema foi amplamente debatido em precedente no qual esta Corte Superior manteve sua jurisprudência no sentido de que o crime tipificado no art. 19 da Lei n. 7.492/86 não exige, para a sua configuração, efetivo ou potencial abalo ao Sistema Financeiro.

STJ. 3ª Seção. EDcl no AgRg no CC 156.185/MG, Rel. Min. Reynaldo Soares Da Fonseca, DJe 7/5/2018.

 

EXPLICAÇÃO DO JULGADO

João pretendia adquirir uma casa que pertencia a Pedro.

O pagamento seria feito mediante financiamento junto à Caixa Econômica Federal.

Em outras palavras, João não tinha o dinheiro suficiente para comprar a casa e, portanto, pretendia obter um financiamento (“empréstimo”) com a CEF.

Essa compra e venda foi intermediada por Geraldo, corretor de imóveis.

Geraldo reuniu toda a documentação das partes e a encaminhou para a Caixa Econômica Federal para que fosse analisada a possibilidade de João obter o financiamento.

A funcionária da CEF, em uma análise preliminar, afirmou que os documentos apresentados não seriam suficientes para comprovar a renda declarada de João, o que inviabilizaria a liberação do crédito.

Geraldo, para contornar o problema, apresentou documentos falsos à CEF: (1) extratos bancários de uma conta inexistente supostamente em nome de João; e (2) cópia falsa de uma suposta declaração de imposto de renda de João.

Sem saber da falsidade da documentação, a CEF autorizou a liberação do crédito.

As partes foram convocadas até uma agência da CEF e assinaram o contrato de financiamento.

Dias depois da assinatura do contrato de financiamento, a gerente da CEF, analisando novamente a papelada, desconfiou da veracidade dos documentos apresentados, cancelou a liberação dos valores e acionou a Polícia Federal.

O Ministério Público Federal denunciou Geraldo pela prática do delito tipificado pelo art. 19, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86, na forma consumada.

A defesa de Geraldo alegou, dentre outros argumentos, que houve mera tentativa “tendo em vista que o corretor permaneceu apenas no campo executório, com a apresentação dos documentos inidôneos, que foram percebidos pela gerente do banco, que cancelou a liberação do valor, impossibilitando, assim, a concretização do financiamento”.

 

Os argumentos da defesa foram acolhidos pelo STJ? Houve mera tentativa?

NÃO. No caso concreto, o crime se consumou.

O crime do art. 19 da Lei nº 7.492/86 se consuma no momento em que assinado o contrato de obtenção de financiamento mediante fraude.

Confira outro julgado do STJ no mesmo sentido:

A consumação do crime do art. 19 da Lei nº 7.492/86 se dá no momento em que o financiamento é obtido através de fraude, dispensando-se a efetiva existência de prejuízo econômico.

STJ. 5ª Turma. EDcl no AgRg no REsp 1.570.225/RS, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 25/10/2019.

 

Em suma:

Dizer o Direito!