Imagine a seguinte situação
hipotética:
João praticou roubo contra as
adolescentes Suzana e Kely, de 17 e 15 anos, respectivamente.
O Ministério Público ofereceu
denúncia contra João na 3ª Vara Criminal da Comarca de Salvador/BA.
O juiz condenou o réu.
João interpôs apelação alegando a
nulidade da condenação pela incompetência do juízo. Ele argumentou que as duas
vítimas eram adolescentes, motivo pelo qual o feito deveria ter sido
distribuído para uma das varas especializadas em crimes praticados contra a
criança e adolescente, na forma do art. 85 do Regimento Interno do Tribunal de
Justiça da Bahia.
O Ministério Público argumentou
que não haveria nulidade por incompetência do juízo, tendo em vista que o bem
tutelado pelo art. 157 do CP não é o “menor” (criança ou adolescente), mas sim
o patrimônio. Segundo o Parquet, “o deslocamento da competência criminal para a
justiça especial, além de visar proteger a vítima vulnerável, aplica-se
primordialmente aos delitos de natureza sexual”.
O TJ/BA negou provimento ao
recurso. Segundo o acórdão:
• a incompetência foi suscitada
apenas nas razões recursais, tendo havido preclusão;
• a competência das Varas dos
Feitos Criminais contra Criança e Adolescente não é absoluta, haja vista que o
objetivo da previsão legal é garantir um melhor atendimento e acolhimento para
as vítimas menores, e não beneficiar seus algozes.
Diante disso, a defesa impetrou
habeas corpus dirigido ao STJ insistindo na tese da nulidade da condenação.
O STJ concordou com o
pedido da defesa?
SIM.
Os Tribunais de Justiça
podem dispor sobre a especialização de varas, pois se trata de matéria que se
insere no âmbito da organização Judiciária dos Tribunais
O art. 96, inciso I, “a” e “d”, e inciso II, alínea “d”, da
Constituição Federal, preconizam:
Art. 96. Compete privativamente:
I - aos tribunais:
a) eleger seus órgãos diretivos e
elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das
garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o
funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;
(...)
d) propor a criação de novas
varas judiciárias;
(...)
II - ao Supremo Tribunal Federal,
aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder Legislativo
respectivo, observado o disposto no art. 169:
(...)
d) a alteração da organização e
da divisão judiciárias;
Com base nesses dispositivos, o
STF firmou o entendimento de que o Poder Judiciário pode dispor sobre a
especialização de varas, pois se trata de matéria que se insere no âmbito da
organização Judiciária dos Tribunais.
Lei nº 13.431/2017 afirma
que poderão ser criadas varas para apurar crimes contra a criança e o
adolescente
A Lei federal nº 13.431/2017 estabelece o sistema de
garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de
violência. O art. 23 dessa Lei preceitua que:
Art. 23. Os órgãos responsáveis
pela organização judiciária poderão criar juizados ou varas especializadas em
crimes contra a criança e o adolescente.
Parágrafo único. Até a
implementação do disposto no caput deste artigo, o julgamento e a execução das
causas decorrentes das práticas de violência ficarão, preferencialmente, a
cargo dos juizados ou varas especializadas em violência doméstica e temas
afins.
Essas varas apuram crimes
contra criança e adolescente mesmo que não sejam delitos contra a dignidade
sexual
O caso concreto não envolve
delito contra a dignidade sexual, tendo ocorrido um roubo praticado contra duas
adolescentes.
Nos casos de violência sexual
contra crianças e adolescentes, o STJ já pacificou o entendimento no sentido de
que “somente nas comarcas em que não houver varas especializadas em violência
contra crianças e adolescentes ou juizados/varas de violência doméstica é que
poderá a ação tramitar na vara criminal comum” (EAREsp 2.099.532/RJ, relator
Ministro Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, DJe 30/11/2022). Em outras
palavras: havendo juízo especializado, esse deve prevalecer sobre os demais.
Esse mesmo entendimento deve ser
estendido outros crimes, como na hipótese em análise.
O art. 85 do Regimento Interno do
TJ/BA atribui às Varas dos Feitos Criminais praticados contra Criança e
Adolescente a competência para processar e julgar, indistintamente, “os crimes
e as contravenções penais, cujas vítimas sejam crianças e adolescentes”.
Como há vara criminal
especializada para apurar e julgar crimes praticados contra criança e
adolescente, este é o juízo competente para julgar a ação penal, sendo
irrelevante o delito.
Todos os atos praticados
foram anulados (ex: oitivas das testemunhas, vítimas, interrogatório)?
NÃO. Considerando a finalidade da
norma (Lei nº 13.431/2017), que é garantir os direitos da criança e do
adolescente vítima ou testemunha de violência, o STJ entendeu que era caso de
se aplicar ao caso da teoria do juízo aparente, segundo a qual “o
reconhecimento da incompetência do juízo que era aparentemente competente não
enseja, de imediato, a nulidade dos atos processuais já praticados no processo,
[...], pois tais atos podem ser ratificados ou não pelo Juízo que vier a ser
reconhecido como competente para processar e julgar o feito” (RHC 116.059/PE,
Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe 4/10/2019).
Diante disso, a 5ª Turma do STJ reconheceu
a incompetência do juízo da 3ª Vara Criminal de Salvador/BA e determinou a remessa
dos autos para a vara especializada, que deverá considerar a possibilidade de
aproveitamento dos atos processuais já praticados (inclusive decisórios), caso
sejam ratificados pelo juízo competente.
A jurisprudência do STJ se
posicionou no sentido de que, mesmo para os casos de incompetência absoluta no
processo penal, somente os atos decisórios são anulados, sendo possível, por
conseguinte, a ratificação dos atos não-decisórios. O próprio STF admite a
possibilidade de ratificação pelo juízo competente inclusive dos atos
decisórios.
Em suma:
STJ. 5ª
Turma. HC 807.617-BA, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 11/4/2023 (Info
773).