O caso concreto, com adaptações,
foi o seguinte:
A Usina Hidrelétrica de Pedra do
Cavalo é localizada na Bahia e operada pelo Grupo Votorantim, que venceu a concessão
pública para explorar o serviço.
Ocorre que suas operações
resultaram em impactos ambientais significativos, como a redução da pesca e do
volume das espécies naturais, provocando danos econômicos e de saúde para os
pescadores locais.
Os pescadores que trabalhavam na
região e que foram prejudicados por esses danos ambientais, ingressaram com ação
de indenização por danos morais e materiais contra Votorantim Energia Ltda.,
Votorantim Cimentos S.A. e Votorantim Cimentos N/NE S/A.
Os autores argumentaram que as
rés são fornecedoras de serviço público e que eles devem ser considerados
consumidores por equiparação.
Diante disso, a ação foi
inicialmente distribuída para a 20ª Vara de Relações de Consumo da Comarca de
Salvador (BA). O juízo, contudo, declinou da competência por entender que não
havia relação consumerista entre as partes (pescadores e empresas do Grupo).
O magistrado argumentou que os
pescadores não se enquadravam como consumidores e as empresas não eram
produtoras ou prestadoras de serviços para consumidores finais, mas operavam em
atividade-meio, fornecendo energia para o Sistema Interligado Nacional (SIN).
A ação foi então redistribuída
para uma das Varas Cíveis comuns da comarca.
Esse entendimento foi mantido
pelo TJ/BA.
Os autores interpuseram recurso
especial insistindo na tese de que são consumidores por equiparação e,
portanto, a ação deveria tramitar na vara especializada em relações de consumo.
O STJ deu provimento ao
recurso? Os pescadores, vítimas de supostos danos decorrentes do exercício de
atividade de exploração de complexo hidroelétrico, podem ser consideradas
consumidores por equiparação (bystander)?
SIM.
A controvérsia consiste em
definir o juízo competente para processar e julgar ação de indenização por
danos materiais e morais em virtude da ocorrência de supostos danos decorrentes
de atividade de exploração de complexo hidroelétrico, o que demanda que se
verifique se as vítimas de supostos danos podem ser consideradas consumidores
por equiparação (bystander).
No recurso, os pescadores
sustentaram que a atividade desenvolvida pelas sociedades empresárias de
produção de energia elétrica, apresenta defeito que ultrapassa os limites do
ato de exploração de potencial hidroelétrico a ponto de causar danos materiais
e morais em razão do impacto causado no desenvolvimento da atividade pesqueira
e de mariscagem.
Conceito de consumidor
O conceito de consumidor está previsto no art. 2º do Código
de Defesa do Consumidor (CDC):
Art. 2º Consumidor é toda pessoa
física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário
final.
Parágrafo único. Equipara-se a
consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja
intervindo nas relações de consumo.
Figura do
consumidor por equiparação (bystander)
A legislação consumerista, ao tratar da responsabilidade
pelo fato do produto e do serviço, ampliou o conceito para abranger todas as
vítimas do evento danoso. Trata-se da figura do consumidor por equiparação
(bystander), prevista no art. 17 do CDC:
Art. 17. Para os efeitos desta
Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento.
O conceito de consumidor por
equiparação previsto no referido dispositivo legal constitui, segundo Bruno
Miragem, “extensão para o terceiro (bystander) que tenha sido vítima de um dano
no mercado de consumo, e cuja causa se atribua ao fornecedor, da qualidade de
consumidor, da proteção indicada pelo regime da responsabilidade civil
extracontratual do CDC” (MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 6. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 160-161).
Segundo a jurisprudência do STJ,
“equipara-se à qualidade de consumidor para os efeitos legais, àquele que,
embora não tenha participado diretamente da relação de consumo, sofre as
consequências do evento danoso decorrente do defeito exterior que ultrapassa o
objeto e provoca lesões, gerando risco à sua segurança física e psíquica” (STJ.
4ª Turma. AgRg no REsp 1.000.329/SC, julgado em 10/8/2010).
Só se fala na figura do consumidor
por equiparação (bystander) em caso de acidente de consumo
Vale ressaltar que a equiparação aplica-se
apenas nas hipóteses de fato do produto ou serviço, ou seja, nas situações em que “a
utilização do produto ou serviço é capaz de gerar riscos à segurança do consumidor ou de
terceiros, podendo ocasionar um evento danoso, denominado de ‘acidente de
consumo’” (GARCIA, Leonardo de Medeiros, Código de Defesa do Consumidor
comentado. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 153). Isso significa que não se pode
falar na figura do bystander em casos de responsabilidade pelo vício do produto ou serviço.
Na hipótese de responsabilidade pelo vício do produto ou
serviço não cabe a aplicação do art. 17, do CDC, pois a Lei somente equiparou
as vítimas do evento ao consumidor nas hipóteses dos arts. 12 a 16 do CDC STJ.
4ª Turma. REsp 753.512/RJ, julgado em 16/3/2010.
Defeito x vício
A responsabilidade pelo fato do
produto e do serviço está regulada nos arts. 12 a 17 do CDC, que não se
confunde com a responsabilidade por vício do produto e do serviço, tratada nos
arts. 18 a 25.
O defeito (arts. 12 a 17 do CDC)
está vinculado a um acidente de consumo, um defeito exterior que ultrapassa o
objeto e provoca lesões, gerando risco à segurança física e psíquica do
consumidor.
O vício (arts. 18 a 25 do CDC),
por sua vez, causa prejuízo exclusivamente patrimonial e é intrínseco ao
produto ou serviço, tornando-o impróprio para o fim que se destina ou
diminuindo-lhe as funções, mas sem colocar em risco a saúde ou segurança do
consumidor (STJ. 4ª Turma. AgRg no REsp 1.000.329/SC, julgado em 10/8/2010).
Acidente de consumo (fato
do produto ou serviço)?
Para a caracterização de um
acidente de consumo, é necessária a ocorrência de um defeito exterior que
provoque danos, gerando risco à segurança física ou psíquica do consumidor,
ainda que por equiparação.
Ademais, no que diz respeito ao
fato do produto, constata-se que o acidente de consumo, de acordo com expressa
disposição legal (arts. 12, do CDC), não decorre somente do dano causado pelo
produto em si, podendo advir, outrossim, de lesão proveniente do próprio
processo produtivo, isto é, do projeto, da fabricação, da construção, da
montagem, das fórmulas, da manipulação etc.
De igual forma, no que tange ao
fato do serviço, impõe-se a conclusão de que o acidente de consumo, de acordo
com o art. 14 do CDC, advém do dano causado pela própria prestação do serviço.
Deve-se ressaltar, nesse
contexto, que o CDC adotou a teoria do isco do empreendimento, segundo a qual
“todo aquele que se disponha a exercer alguma atividade no mercado de consumo
tem o dever de responder pelos eventuais vícios ou defeitos dos bens e serviços
fornecidos, independentemente de culpa” (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de
responsabilidade civil. 13. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2019, p. 603).
É possível falar em
acidente de consumo e em consumidor por equiparação nos casos de danos
ambientais?
SIM.
O STJ admite, nos termos do art.
17 do CDC, a existência da figura do consumidor por equiparação nas hipóteses
de danos ambientais.
Merece destaque, nesse contexto,
o julgamento do CC 143.204/RJ, no qual a Segunda Seção, em hipótese envolvendo
derramamento de óleo, considerou que os pescadores artesanais prejudicados
seriam vítimas do acidente do consumo, motivo pelo qual estaria caracterizada a
figura do consumidor por equiparação apta a atrair a incidência do CDC:
CONFLITO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS.
DERRAMAMENTO DE ÓLEO. PESCADORES ARTESANAIS PREJUDICADOS. ACIDENTE DE CONSUMO.
CONSUMIDOR POR EQUIPARAÇÃO. FORO. DOMICÍLIO DOS AUTORES.
1. Trata-se de ação ordinária ajuizada por pescadores
artesanais visando a reparação de danos materiais e morais decorrentes de dano
ambiental.
2. Os autores foram vítimas de acidente de consumo, visto
que suas atividades pesqueiras foram supostamente prejudicadas pelo
derramamento de óleo ocorrido no Estado do Rio de Janeiro. Aplica-se à espécie
o disposto no art. 17 do Código de Defesa do Consumidor. (...)
STJ. 2ª Seção. CC n. 143.204/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas
Bôas Cueva, julgado em 13/4/2016.
No mesmo sentido:
A jurisprudência do STJ firmou o entendimento de que, nas
ações ajuizadas por pescadores artesanais visando à reparação de danos
materiais e morais decorrentes de dano ambiental, aplica-se o disposto no art.
17 do Código de Defesa do Consumidor, sendo facultado ao consumidor o
ajuizamento da ação no foro do seu domicílio.
STJ. 4ª Turma. AgInt no AREsp 1.724.320/RJ, Rel. Min. Maria
Isabel Gallotti, julgado em 6/3/2023.
Desse modo, na hipótese de danos
individuais decorrentes do exercício de atividade empresarial destinada à
fabricação de produtos ou prestação de serviços, é possível, em virtude da
caracterização do acidente de consumo, o reconhecimento da figura do consumidor
por equiparação, o que atrai a incidência das disposições do Código de Defesa
do Consumidor.
Voltando ao caso concreto:
Os autores sustentam que a
atividade desenvolvida pelas sociedades empresárias rés de produção de energia
elétrica no complexo hidroelétrico de Pedra do Cavalo, localizado no Estado da
Bahia, apresenta defeito que ultrapassa os limites do ato de exploração de
potencial hidroelétrico a ponto de causar-lhes danos materiais e morais em
razão do impacto causado no desenvolvimento da atividade pesqueira e de
mariscagem.
Alegaram que a mencionada
atividade de exploração do potencial hidroenergético – desenvolvida em local de
extrema sensibilidade do ponto de vista socioambiental – tem provocado grave
impacto ao meio ambiente com a modificação da vazão e do fluxo das águas,
alterações hidrodinâmicas e de salinidade.
Nesse contexto, aduzem que as
mencionadas alterações ambientais promoveram sensível redução das áreas de
pesca e mariscagem, com morte em massa de peixes e moluscos, ocasionando graves
prejuízos, não só de ordem econômica, social e de subsistência, mas também à
própria saúde da população ribeirinha, que depende da integridade daquele
ecossistema para sobreviver.
Observa-se que os danos alegados decorreram
do processo de produção de energia elétrica como um todo, isto é, da própria
atividade desenvolvida pelas empresas, o que, a teor dos arts. 12 e 14 do CDC,
é suficiente para atrair a disciplina normativa da responsabilidade por fato do
produto ou do serviço e a caracterização da figura do consumidor por
equiparação.
A atividade empresarial
desenvolvida pelas rés é a produção de energia, que é considerada como um produto,
pois, nos termos do inciso I do art. 83 do CC/2002, as energias que tenham
valor econômico possuem natureza jurídica de bem móvel.
Não importa discutir aqui se a
energia produzida é utilizada pelas próprias rés, se é distribuída ao cidadão
como usuário final ou se é entregue a alguma entidade da Administração Pública
para posterior distribuição. Isso porque, em qualquer das hipóteses, observa-se
que as recorridas exploram o complexo hidroelétrico em prol da atividade
empresarial por elas desenvolvida.
Desse modo, na hipótese de danos
individuais decorrentes do exercício de atividade de exploração de potencial
hidroenergético causadora de impacto ambiental, é possível, em virtude da
caracterização do acidente de consumo, o reconhecimento da figura do consumidor
por equiparação, o que atrai a incidência das disposições do Código de Defesa
do Consumidor.
Em suma:
É possível o reconhecimento da figura do consumidor
por equiparação na hipótese de danos individuais decorrentes do exercício de
atividade de exploração de potencial hidroenergético causadora de impacto
ambiental, em virtude da caracterização do acidente de consumo.
STJ. 2ª Seção.
REsp 2.018.386-BA, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 10/5/2023 (Info 774).