Dizer o Direito

quarta-feira, 21 de junho de 2023

É possível o reconhecimento da figura do consumidor por equiparação na hipótese de danos individuais decorrentes do exercício de atividade de exploração de potencial hidroenergético causadora de impacto ambiental, em virtude da caracterização do acidente de consumo

O caso concreto, com adaptações, foi o seguinte:

A Usina Hidrelétrica de Pedra do Cavalo é localizada na Bahia e operada pelo Grupo Votorantim, que venceu a concessão pública para explorar o serviço.

Ocorre que suas operações resultaram em impactos ambientais significativos, como a redução da pesca e do volume das espécies naturais, provocando danos econômicos e de saúde para os pescadores locais.

Os pescadores que trabalhavam na região e que foram prejudicados por esses danos ambientais, ingressaram com ação de indenização por danos morais e materiais contra Votorantim Energia Ltda., Votorantim Cimentos S.A. e Votorantim Cimentos N/NE S/A.

Os autores argumentaram que as rés são fornecedoras de serviço público e que eles devem ser considerados consumidores por equiparação.

Diante disso, a ação foi inicialmente distribuída para a 20ª Vara de Relações de Consumo da Comarca de Salvador (BA). O juízo, contudo, declinou da competência por entender que não havia relação consumerista entre as partes (pescadores e empresas do Grupo).

O magistrado argumentou que os pescadores não se enquadravam como consumidores e as empresas não eram produtoras ou prestadoras de serviços para consumidores finais, mas operavam em atividade-meio, fornecendo energia para o Sistema Interligado Nacional (SIN).

A ação foi então redistribuída para uma das Varas Cíveis comuns da comarca.

Esse entendimento foi mantido pelo TJ/BA.

Os autores interpuseram recurso especial insistindo na tese de que são consumidores por equiparação e, portanto, a ação deveria tramitar na vara especializada em relações de consumo.

 

O STJ deu provimento ao recurso? Os pescadores, vítimas de supostos danos decorrentes do exercício de atividade de exploração de complexo hidroelétrico, podem ser consideradas consumidores por equiparação (bystander)?

SIM.

A controvérsia consiste em definir o juízo competente para processar e julgar ação de indenização por danos materiais e morais em virtude da ocorrência de supostos danos decorrentes de atividade de exploração de complexo hidroelétrico, o que demanda que se verifique se as vítimas de supostos danos podem ser consideradas consumidores por equiparação (bystander).

No recurso, os pescadores sustentaram que a atividade desenvolvida pelas sociedades empresárias de produção de energia elétrica, apresenta defeito que ultrapassa os limites do ato de exploração de potencial hidroelétrico a ponto de causar danos materiais e morais em razão do impacto causado no desenvolvimento da atividade pesqueira e de mariscagem.

 

Conceito de consumidor

O conceito de consumidor está previsto no art. 2º do Código de Defesa do Consumidor (CDC):

Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

 

Figura do consumidor por equiparação (bystander)

A legislação consumerista, ao tratar da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço, ampliou o conceito para abranger todas as vítimas do evento danoso. Trata-se da figura do consumidor por equiparação (bystander), prevista no art. 17 do CDC:

Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento.

 

O conceito de consumidor por equiparação previsto no referido dispositivo legal constitui, segundo Bruno Miragem, “extensão para o terceiro (bystander) que tenha sido vítima de um dano no mercado de consumo, e cuja causa se atribua ao fornecedor, da qualidade de consumidor, da proteção indicada pelo regime da responsabilidade civil extracontratual do CDC” (MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 160-161).

Segundo a jurisprudência do STJ, “equipara-se à qualidade de consumidor para os efeitos legais, àquele que, embora não tenha participado diretamente da relação de consumo, sofre as consequências do evento danoso decorrente do defeito exterior que ultrapassa o objeto e provoca lesões, gerando risco à sua segurança física e psíquica” (STJ. 4ª Turma. AgRg no REsp 1.000.329/SC, julgado em 10/8/2010).

 

Só se fala na figura do consumidor por equiparação (bystander) em caso de acidente de consumo

Vale ressaltar que a equiparação aplica-se apenas nas hipóteses de fato do produto ou serviço, ou seja, nas situações em que “a utilização do produto ou serviço é capaz de gerar riscos à segurança do consumidor ou de terceiros, podendo ocasionar um evento danoso, denominado de ‘acidente de consumo’” (GARCIA, Leonardo de Medeiros, Código de Defesa do Consumidor comentado. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 153). Isso significa que não se pode falar na figura do bystander em casos de responsabilidade pelo vício do produto ou serviço.

Na hipótese de responsabilidade pelo vício do produto ou serviço não cabe a aplicação do art. 17, do CDC, pois a Lei somente equiparou as vítimas do evento ao consumidor nas hipóteses dos arts. 12 a 16 do CDC STJ. 4ª Turma. REsp 753.512/RJ, julgado em 16/3/2010.

 

Defeito x vício

A responsabilidade pelo fato do produto e do serviço está regulada nos arts. 12 a 17 do CDC, que não se confunde com a responsabilidade por vício do produto e do serviço, tratada nos arts. 18 a 25.

O defeito (arts. 12 a 17 do CDC) está vinculado a um acidente de consumo, um defeito exterior que ultrapassa o objeto e provoca lesões, gerando risco à segurança física e psíquica do consumidor.

O vício (arts. 18 a 25 do CDC), por sua vez, causa prejuízo exclusivamente patrimonial e é intrínseco ao produto ou serviço, tornando-o impróprio para o fim que se destina ou diminuindo-lhe as funções, mas sem colocar em risco a saúde ou segurança do consumidor (STJ. 4ª Turma. AgRg no REsp 1.000.329/SC, julgado em 10/8/2010).

 

Acidente de consumo (fato do produto ou serviço)?

Para a caracterização de um acidente de consumo, é necessária a ocorrência de um defeito exterior que provoque danos, gerando risco à segurança física ou psíquica do consumidor, ainda que por equiparação.

Ademais, no que diz respeito ao fato do produto, constata-se que o acidente de consumo, de acordo com expressa disposição legal (arts. 12, do CDC), não decorre somente do dano causado pelo produto em si, podendo advir, outrossim, de lesão proveniente do próprio processo produtivo, isto é, do projeto, da fabricação, da construção, da montagem, das fórmulas, da manipulação etc.

De igual forma, no que tange ao fato do serviço, impõe-se a conclusão de que o acidente de consumo, de acordo com o art. 14 do CDC, advém do dano causado pela própria prestação do serviço.

Deve-se ressaltar, nesse contexto, que o CDC adotou a teoria do isco do empreendimento, segundo a qual “todo aquele que se disponha a exercer alguma atividade no mercado de consumo tem o dever de responder pelos eventuais vícios ou defeitos dos bens e serviços fornecidos, independentemente de culpa” (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 13. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2019, p. 603).

 

É possível falar em acidente de consumo e em consumidor por equiparação nos casos de danos ambientais?

SIM.

O STJ admite, nos termos do art. 17 do CDC, a existência da figura do consumidor por equiparação nas hipóteses de danos ambientais.

Merece destaque, nesse contexto, o julgamento do CC 143.204/RJ, no qual a Segunda Seção, em hipótese envolvendo derramamento de óleo, considerou que os pescadores artesanais prejudicados seriam vítimas do acidente do consumo, motivo pelo qual estaria caracterizada a figura do consumidor por equiparação apta a atrair a incidência do CDC:

CONFLITO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS. DERRAMAMENTO DE ÓLEO. PESCADORES ARTESANAIS PREJUDICADOS. ACIDENTE DE CONSUMO. CONSUMIDOR POR EQUIPARAÇÃO. FORO. DOMICÍLIO DOS AUTORES.

1. Trata-se de ação ordinária ajuizada por pescadores artesanais visando a reparação de danos materiais e morais decorrentes de dano ambiental.

2. Os autores foram vítimas de acidente de consumo, visto que suas atividades pesqueiras foram supostamente prejudicadas pelo derramamento de óleo ocorrido no Estado do Rio de Janeiro. Aplica-se à espécie o disposto no art. 17 do Código de Defesa do Consumidor. (...)

STJ. 2ª Seção. CC n. 143.204/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 13/4/2016.

 

No mesmo sentido:

A jurisprudência do STJ firmou o entendimento de que, nas ações ajuizadas por pescadores artesanais visando à reparação de danos materiais e morais decorrentes de dano ambiental, aplica-se o disposto no art. 17 do Código de Defesa do Consumidor, sendo facultado ao consumidor o ajuizamento da ação no foro do seu domicílio.

STJ. 4ª Turma. AgInt no AREsp 1.724.320/RJ, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 6/3/2023.

 

Desse modo, na hipótese de danos individuais decorrentes do exercício de atividade empresarial destinada à fabricação de produtos ou prestação de serviços, é possível, em virtude da caracterização do acidente de consumo, o reconhecimento da figura do consumidor por equiparação, o que atrai a incidência das disposições do Código de Defesa do Consumidor.

 

Voltando ao caso concreto:

Os autores sustentam que a atividade desenvolvida pelas sociedades empresárias rés de produção de energia elétrica no complexo hidroelétrico de Pedra do Cavalo, localizado no Estado da Bahia, apresenta defeito que ultrapassa os limites do ato de exploração de potencial hidroelétrico a ponto de causar-lhes danos materiais e morais em razão do impacto causado no desenvolvimento da atividade pesqueira e de mariscagem.

Alegaram que a mencionada atividade de exploração do potencial hidroenergético – desenvolvida em local de extrema sensibilidade do ponto de vista socioambiental – tem provocado grave impacto ao meio ambiente com a modificação da vazão e do fluxo das águas, alterações hidrodinâmicas e de salinidade.

Nesse contexto, aduzem que as mencionadas alterações ambientais promoveram sensível redução das áreas de pesca e mariscagem, com morte em massa de peixes e moluscos, ocasionando graves prejuízos, não só de ordem econômica, social e de subsistência, mas também à própria saúde da população ribeirinha, que depende da integridade daquele ecossistema para sobreviver.

Observa-se que os danos alegados decorreram do processo de produção de energia elétrica como um todo, isto é, da própria atividade desenvolvida pelas empresas, o que, a teor dos arts. 12 e 14 do CDC, é suficiente para atrair a disciplina normativa da responsabilidade por fato do produto ou do serviço e a caracterização da figura do consumidor por equiparação.

A atividade empresarial desenvolvida pelas rés é a produção de energia, que é considerada como um produto, pois, nos termos do inciso I do art. 83 do CC/2002, as energias que tenham valor econômico possuem natureza jurídica de bem móvel.

Não importa discutir aqui se a energia produzida é utilizada pelas próprias rés, se é distribuída ao cidadão como usuário final ou se é entregue a alguma entidade da Administração Pública para posterior distribuição. Isso porque, em qualquer das hipóteses, observa-se que as recorridas exploram o complexo hidroelétrico em prol da atividade empresarial por elas desenvolvida.

Desse modo, na hipótese de danos individuais decorrentes do exercício de atividade de exploração de potencial hidroenergético causadora de impacto ambiental, é possível, em virtude da caracterização do acidente de consumo, o reconhecimento da figura do consumidor por equiparação, o que atrai a incidência das disposições do Código de Defesa do Consumidor.

 

Em suma:

É possível o reconhecimento da figura do consumidor por equiparação na hipótese de danos individuais decorrentes do exercício de atividade de exploração de potencial hidroenergético causadora de impacto ambiental, em virtude da caracterização do acidente de consumo.

STJ. 2ª Seção. REsp 2.018.386-BA, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 10/5/2023 (Info 774).


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