Acordo de não persecução penal
(ANPP)
A Lei nº 13.964/2019 (“Pacote Anticrime”)
inseriu o art. 28-A ao CPP, prevendo o instituto do acordo de não persecução
penal (ANPP), que pode ser assim conceituado:
- é um acordo (negócio jurídico)
- celebrado entre o Ministério Público e o
investigado, mas com a necessidade de homologação judicial
- firmado, em regra, antes do início da ação
penal (em regra, é pré-processual)
- ajuste esse permitido apenas para certos
tipos de crimes
- no ajuste, o investigado se compromete a
cumprir determinadas condições
- e caso cumpra integralmente o acordo, o
juízo competente decretará a extinção de punibilidade.
Os requisitos
para a propositura do ANPP estão previstos no caput e no § 2º do art. 28-A do
CPP e podem ser assim sistematizados:
REQUISITOS PARA
QUE O MP POSSA PROPOR O ANPP |
|
1) não ser o caso de arquivamento |
Se
não houver justa causa ou existir alguma outra razão que impeça a propositura
da ação penal, não é caso de oferecer o acordo, devendo o MP pedir o
arquivamento do inquérito policial ou investigação criminal. |
2) o investigado deve ter confessado a
prática da infração penal |
O
ANPP exige que o investigado tenha confessado formal (em ato solene) e
circunstancialmente (com detalhes) a prática da infração penal. O
art. 18, § 2º, da Res. 181/2017-CNMP exige que a confissão seja registrada em
áudio e vídeo. |
3) infração penal foi cometida sem
violência e sem grave ameaça |
A
infração penal não pode ter sido cometida com violência ou grave ameaça. Prevalece
que é cabível ANPP se a infração foi cometida com violência contra coisa. Assim,
o ANPP somente é proibido se a infração foi praticada com grave ameaça ou
violência contra pessoa. |
4) a pena mínima da infração penal é
menor que 4 anos |
A
infração penal cometida deve ter pena mínima inferior a 4 anos. Se
a pena mínima for igual ou superior a 4 anos, não cabe. Para
aferição da pena mínima, serão consideradas as causas de aumento e diminuição
aplicáveis ao caso concreto. Aplicam-se
ao ANPP, por analogia, as súmulas 243-STJ e 723-STF. |
5) o acordo deve se mostrar necessário
e suficiente para reprovação e prevenção do crime no caso concreto |
Esse
requisito revela que a propositura, ou não, do acordo está atrelada a certo
grau de discricionariedade do membro do MP, que avaliará se essa necessidade
e suficiência estão presentes no caso concreto. |
6) não caber transação penal |
Se
for cabível transação penal (art. 76 da Lei nº 9.099/95), o membro do MP deve
propor a transação (e não o ANPP). Isso porque se trata de benefício mais
vantajoso ao investigado. Por
outro lado, mesmo que seja cabível a suspensão condicional do processo, ainda
assim, o membro do MP pode propor o ANPP. |
7) o investigado deve ser primário |
Se
o investigado for reincidente (genérico ou específico), não cabe ANPP. |
8) não haver elementos probatórios que
indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se
insignificantes as infrações penais pretéritas |
Regra:
se houver elementos probatórios que indiquem que o investigado possui uma
conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, não cabe ANPP. Exceção:
se essas infrações pretéritas que o investigado se envolveu forem
consideradas “insignificantes”, será possível propor ANPP. |
9) o agente não pode ter sido beneficiado
nos 5 anos anteriores ao cometimento da infração com outro ANPP, transação
penal ou suspensão condicional do processo |
No
momento de decidir se vai propor o ANPP, o membro do MP deverá analisar se,
nos últimos 5 anos (contados da infração), aquele investigado já foi
beneficiado: ·
com outro ANPP; ·
com transação penal ou ·
com suspensão condicional do processo. |
10) a infração praticada não pode estar
submetida à Lei Maria da Penha |
Não
cabe ANPP nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar,
ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em
favor do agressor. |
Imagine agora a seguinte situação
hipotética:
Regina era responsável pela
empresa Alfa Serviços de Vistoria Veiculares Ltda, que era credenciada pelo
DENATRAN para confeccionar laudos de vistoria veiculares.
Em 2014, aproveitando-se do
acesso que possuía ao sistema do DENATRAN, ela elaborou sete laudos de vistoria
ideologicamente falsos, “aprovando” indevidamente veículos que estavam na posse
de seu então companheiro João, mas que eram produto de furto.
Em 2019, o Ministério Público ofereceu denúncia contra
Regina imputando-lhe sete crimes de falsidade ideológica em concurso material
(art. 69):
Art. 299. Omitir, em documento público
ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer
inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de
prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato
juridicamente relevante:
Pena - reclusão, de um a cinco
anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa,
de quinhentos mil réis a cinco contos de réis, se o documento é particular.
Parágrafo único. Se o agente é
funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, ou se a
falsificação ou alteração é de assentamento de registro civil, aumenta-se a
pena de sexta parte.
Art. 69. Quando o agente,
mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou
não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja
incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção,
executa-se primeiro aquela.
Ao final da instrução, em
30/03/2020, sobreveio sentença condenatória nos exatos termos da denúncia (sete
crimes de falsidade ideológica em concurso material).
Regina, então, foi condenada na
pena de 09 anos de reclusão.
A condenada interpôs apelação
argumentando que houve crime continuado (e não concurso material).
O TJ deu provimento ao recurso para
reconhecer a continuidade delitiva.
Em razão disso, a pena foi
redimensionada para 1 ano e 9 meses, substituída por prestação de serviços
comunitários e prestação pecuniária de um salário-mínimo.
Regina, então, opôs embargos de
declaração, ao argumento de que, com a modificação da modalidade de concurso, a
pena mínima menor de quatro anos passou a viabilizar a proposta de Acordo de
Não Persecução Penal (ANPP).
Ressaltou que a proposta somente
se tornou viável após o provimento da apelação, motivo pelo qual este seria o
momento oportuno para abordagem da matéria.
Requereu, portanto, que os autos
fossem enviados ao MP para que se manifestasse sobre o oferecimento da proposta
da ANPP.
O TJ rejeitou os embargos de
declaração.
Regina interpôs, então, recurso
especial, insistindo no cabimento do ANPP.
O STJ concordou com os
argumentos da ré?
SIM.
No caso, houve uma relevante
alteração do quadro fático-jurídico, tornando-se potencialmente cabível o
instituto negocial do ANPP.
Afinal, o Tribunal de Justiça, ao
julgar o recurso de apelação interposto pela defesa, deu-lhe provimento, a fim
de reconhecer a continuidade delitiva entre os crimes de falsidade ideológica
(art. 299), tornando, assim, objetivamente viável a realização do referido
acordo, em razão do novo patamar de apenamento - pena mínima cominada inferior
a 4 anos.
Trata-se, mutatis mutandis,
de raciocínio similar àquele constante da Súmula 337 do STJ:
Súmula 337-STJ: É cabível a suspensão condicional do processo na
desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão punitiva.
De fato, ao longo da ação penal
até a prolação da sentença condenatória, o ANPP não era cabível, seja porque a
Lei Nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) entrou em vigor em 23/1/2020, após o
oferecimento da denúncia (26/4/2019), seja porque o crime imputado - falsidade
ideológica, por sete vezes, em concurso material - não tornava viável o
referido acordo, tendo em vista que a pena mínima cominada era superior a 4
anos, em razão do concurso material de crimes.
Ocorre que o Tribunal de Justiça,
já na vigência da Lei nº 13.964/2019, deu parcial provimento ao recurso de
apelação interposto pela defesa para reconhecer a continuidade delitiva entre
os crimes de falsidade ideológica, afastando, assim, o concurso material.
Essa modificação do quadro
fático-jurídico não somente resultou numa considerável redução da pena, mas
também tornou objetivamente cabível a formulação de acordo de não persecução
penal, ao menos sob o aspecto referente ao requisito da pena mínima cominada
ser inferior a 4 anos, conforme previsto no art. 28-A do CPP.
Assim, nos casos em que houver a
modificação do quadro fático-jurídico, como no caso em questão, e ainda em
situações em que houver a desclassificação do delito - seja por emendatio ou
mutatio libelli -, uma vez preenchidos os requisitos legais exigidos para o
ANPP, torna-se cabível o instituto negocial.
Cabe salientar, ainda, que, no
caso, não se faz necessária a discussão acerca da questão da retroatividade do
ANPP, mas, sim, unicamente a circunstância de que a alteração do quadro
fático-jurídico tornou potencialmente cabível o instituto negocial, de maneira
que o entendimento externado na presente decisão não entra em confronto com a
jurisprudência do STJ.
Em suma:
STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 2.016.905-SP, Rel. Min. Messod Azulay Neto, julgado em 7/3/2023 (Info 772).