Dizer o Direito

sexta-feira, 26 de maio de 2023

Não é possível responsabilizar o fabricante de medicamento por reação adversa descrita na bula, risco inerente ou intrínseco à sua própria utilização

Imagine a seguinte situação adaptada:

Regina tomou dois comprimidos de dipirona e, em razão disso, sofreu graves efeitos colaterais, incluindo a Síndrome de Stevens-Johnson*, que resultou em queimaduras em 90% de sua pele e danos a várias partes do corpo, incluindo os olhos, causando cegueira.

Ela ficou hospitalizada durante vários dias, passou por cirurgia plástica e o marido teve que vender a casa para custear o tratamento.

Apesar de a fabricante ter recolhido comprimidos remanescentes para análise, nenhuma conclusão foi divulgada.

Regina e seu marido ingressaram com ação judicial contra o laboratório fabricante do medicamento buscando indenização por danos materiais e morais, alegando responsabilidade objetiva da empresa.

* Trata-se de uma reação alérgica que se inicia pelo uso de medicamentos e/ou ocorrência de infecções.

 

O juiz julgou os pedidos procedentes, condenando a fabricante do medicamento.

O Tribunal de Justiça manteve a sentença.

A fabricante interpôs recurso especial alegando que a possibilidade de ocorrer essa reação adversa está expressamente descrita na bula do medicamento, sendo um risco inerente à sua própria utilização. Assim, não é possível responsabilizar a empresa porque o consumidor é alertado sobre esse potencial dano.

 

Os argumentos da fabricante do medicamento foram acolhidos pelo STJ? A empresa foi desobrigada a indenizar a vítima?

SIM.

A reação adversa, por si só, não constitui motivo suficiente para configurar a responsabilidade do fabricante do medicamento. Isso porque a teoria do risco da atividade do negócio ou empreendimento adotados no Sistema do Código de Defesa do Consumidor não tem caráter absoluto, integral ou irrestrito, na medida em que admite exceções ou exclusões, dado que o dever de indenizar exige requisitos específicos, entre os quais o defeito do produto, sem o qual não se configura a responsabilidade civil objetiva do fornecedor.

Os medicamentos caracterizam-se como produtos de risco intrínseco, inerente, nos quais os perigos decorrem da sua própria utilização e da finalidade para a qual se destinam, sendo do conhecimento comum que a inoculação de qualquer remédio, seja por via oral ou injetável, tem potencial para ensejar reações adversas, as quais, ainda que sejam suportadas pelo consumidor, não configuram defeito do produto, afastando, em consequência, a obrigação de indenizar, desde que a potencialidade e a frequência desses efeitos nocivos estejam descritas na bula, em cumprimento ao dever de informação do fabricante.

A responsabilidade do fornecedor de medicamentos, segundo o sistema adotado pelo Código de Defesa de Consumidor, restringe-se aos casos em que for constatado defeito no produto, seja de concepção, fabricação ou de informação, e não os riscos normais e esperados, assim considerados os decorrentes da própria nocividade dos efeitos adversos de seus princípios ativos, situação que se verifica na generalidade dos casos de administração de remédios.

 

Mas a dipirona é um medicamento simples, muito utilizado, não havendo sequer necessidade de prescrição médica...

Não importa.

A reação alérgica por conta da ingestão de dipirona é um evento de ocorrência imprevisível e de incidência remotíssima. Diante disso, é um medicamento que apresenta baixo grau de risco em sua ingestão, nocividade reduzida, não tendo também potencial de causar dependência física ou psíquica.

Além disso, é um remédio destinado ao tratamento de enfermidades simples e passageiras.

Mesmo assim, todo medicamento apresenta riscos e a dipirona não é diferente.

Logo, estando esse efeito adverso descrito na bula não há que se falar em responsabilidade do fabricante, sendo um risco inerente ou intrínseco à sua própria utilização.

 

Não há defeito do produto

Sendo incontestável a eficiência da dipirona para os fins a que se destina (analgésico e antitérmico), associada ao fato de que a reação alérgica que acometeu a parte autora da ação, a despeito de gravíssima, está descrita na bula, não decorre propriamente de defeito do fármaco, mas de imprevisível característica do sistema imunológico do paciente, não há que se falar em defeito do produto, pressuposto básico para a obrigação de indenizar do fornecedor.

 

Em suma:

 

DOD Plus – julgado correlato

Para a responsabilização do fornecedor por acidente do produto não basta ficar evidenciado que os danos foram causados pelo medicamento. O defeito do produto deve apresentar-se, concretamente, como sendo o causador do dano experimentado pelo consumidor.

Em se tratando de produto de periculosidade inerente (medicamento com contraindicações), cujos riscos são normais à sua natureza e previsíveis, eventual dano por ele causado ao consumidor não enseja a responsabilização do fornecedor. Isso porque, neste caso, não se pode dizer que o produto é defeituoso.

STJ. 3ª Turma. REsp 1599405-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 4/4/2017 (Info 603).


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