Imagine a seguinte situação adaptada:
Regina tomou dois comprimidos de
dipirona e, em razão disso, sofreu graves efeitos colaterais, incluindo a
Síndrome de Stevens-Johnson*, que resultou em queimaduras em 90% de sua pele e
danos a várias partes do corpo, incluindo os olhos, causando cegueira.
Ela ficou hospitalizada durante
vários dias, passou por cirurgia plástica e o marido teve que vender a casa
para custear o tratamento.
Apesar de a fabricante ter
recolhido comprimidos remanescentes para análise, nenhuma conclusão foi
divulgada.
Regina e seu marido ingressaram com
ação judicial contra o laboratório fabricante do medicamento buscando
indenização por danos materiais e morais, alegando responsabilidade objetiva da
empresa.
* Trata-se de uma reação alérgica
que se inicia pelo uso de medicamentos e/ou ocorrência de infecções.
O juiz julgou os pedidos
procedentes, condenando a fabricante do medicamento.
O Tribunal de Justiça manteve a
sentença.
A fabricante interpôs recurso
especial alegando que a possibilidade de ocorrer essa reação adversa está
expressamente descrita na bula do medicamento, sendo um risco inerente à sua própria
utilização. Assim, não é possível responsabilizar a empresa porque o consumidor
é alertado sobre esse potencial dano.
Os argumentos da fabricante
do medicamento foram acolhidos pelo STJ? A empresa foi desobrigada a indenizar
a vítima?
SIM.
A reação adversa, por si só, não
constitui motivo suficiente para configurar a responsabilidade do fabricante do
medicamento. Isso porque a teoria do risco da atividade do negócio ou
empreendimento adotados no Sistema do Código de Defesa do Consumidor não tem
caráter absoluto, integral ou irrestrito, na medida em que admite exceções ou
exclusões, dado que o dever de indenizar exige requisitos específicos, entre os
quais o defeito do produto, sem o qual não se configura a responsabilidade
civil objetiva do fornecedor.
Os medicamentos caracterizam-se
como produtos de
risco intrínseco, inerente, nos quais os perigos decorrem da sua própria utilização
e da finalidade para a qual se destinam, sendo do conhecimento comum que a
inoculação de qualquer remédio, seja por via oral ou injetável, tem potencial
para ensejar reações adversas, as quais, ainda que sejam suportadas pelo
consumidor, não configuram defeito do produto, afastando, em consequência, a
obrigação de indenizar, desde que a potencialidade e a frequência desses
efeitos nocivos estejam descritas na bula, em cumprimento ao dever de
informação do fabricante.
A responsabilidade do fornecedor
de medicamentos, segundo o sistema adotado pelo Código de Defesa de Consumidor,
restringe-se aos casos em que for constatado defeito no produto, seja de
concepção, fabricação ou de informação, e não os riscos normais e esperados,
assim considerados os decorrentes da própria nocividade dos efeitos adversos de
seus princípios ativos, situação que se verifica na generalidade dos casos de
administração de remédios.
Mas a dipirona é um
medicamento simples, muito utilizado, não havendo sequer necessidade de
prescrição médica...
Não importa.
A reação alérgica por conta da ingestão
de dipirona é um evento de ocorrência imprevisível e de incidência remotíssima.
Diante disso, é um medicamento que apresenta baixo grau de risco em sua
ingestão, nocividade reduzida, não tendo também potencial de causar dependência
física ou psíquica.
Além disso, é um remédio
destinado ao tratamento de enfermidades simples e passageiras.
Mesmo assim, todo medicamento
apresenta riscos e a dipirona não é diferente.
Logo, estando esse efeito adverso
descrito na bula não há que se falar em responsabilidade do fabricante, sendo
um risco inerente ou intrínseco à sua própria utilização.
Não há defeito do produto
Sendo incontestável a eficiência
da dipirona para os fins a que se destina (analgésico e antitérmico), associada
ao fato de que a reação alérgica que acometeu a parte autora da ação, a
despeito de gravíssima, está descrita na bula, não decorre propriamente de
defeito do fármaco, mas de imprevisível característica do sistema imunológico do
paciente, não há que se falar em defeito do produto, pressuposto básico para a
obrigação de indenizar do fornecedor.
Em suma:
STJ. 4ª
Turma. REsp 1.402.929-DF, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 11/4/2023
(Info 771).
DOD Plus –
julgado correlato
Para a responsabilização do fornecedor por acidente do produto
não basta ficar evidenciado que os danos foram causados pelo medicamento. O
defeito do produto deve apresentar-se, concretamente, como sendo o causador do
dano experimentado pelo consumidor.
Em se tratando de produto de periculosidade inerente
(medicamento com contraindicações), cujos riscos são normais à sua natureza e
previsíveis, eventual dano por ele causado ao consumidor não enseja a
responsabilização do fornecedor. Isso porque, neste caso, não se pode dizer que
o produto é defeituoso.
STJ. 3ª Turma. REsp 1599405-SP, Rel. Min. Marco Aurélio
Bellizze, julgado em 4/4/2017 (Info 603).