Impenhorabilidade dos vencimentos
(verbas salariais) do devedor
O art. 833 do CPC/2015 estabelece um rol de bens que não
podem ser objeto de penhora. Dentre eles, veja o que diz o inciso IV:
Art. 833. São impenhoráveis:
(...)
IV - os vencimentos, os
subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de
aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas
por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua
família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional
liberal, ressalvado o § 2º;
Duas
exceções expressa a essa impenhorabilidade: prestação alimentícia e montante
acima de 50 s.m.
O CPC/2015 previu duas exceções
a essa regra de impenhorabilidade e afirmou que é possível a penhora dos
vencimentos (verba salarial) do devedor:
1) para pagamento de
prestação alimentícia (qualquer que seja a sua origem, ou seja, pode ser pensão
alimentícia decorrente de poder familiar, de parentesco ou mesmo derivada de um
ato ilícito).
Ex: Pedro atropelou Júlia e
foi condenado a pagar à vítima prestação alimentícia pelo período em que ela
ficar sem trabalhar. O salário de Pedro poderá ser penhorado para pagar essa
dívida, sem que ele possa invocar a regra da impenhorabilidade.
2) sobre o montante que
exceder 50 salários-mínimos.
Ex: João
tem uma conta bancária onde recebe sua remuneração. Como ele gasta pouco, vai
guardando o que sobra de seu salário nesta conta. Atualmente, lá tem depositada
a quantia equivalente a 70 salários-mínimos. Neste caso, se João sofrer uma
execução, será possível penhorar 20 salários-mínimos de sua conta.
Veja a
redação do art. 833, § 2º do CPC/2015:
Art. 833 (...)
§ 2º O disposto nos incisos IV e X do
caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação
alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias
excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição
observar o disposto no art. 528, § 8º, e no art. 529, § 3º.
É
possível a penhora de salário fora das exceções previstas no § 2º do art. 833
do CPC?
Seria possível admitir outras
exceções à regra da impenhorabilidade além daquelas previstas no § 2º do art. 833
do CPC? Dizendo de outro modo: seria permitida a penhora das verbas salariais
do devedor para outras situações além da prestação alimentícia e do que
ultrapassar o montante de 50 salários-mínimos?
O STJ respondeu que SIM.
O STJ definiu, em embargos de
divergência, que é possível a penhora de salário, ainda que este não exceda 50
salários mínimos, para pagamento de outras dívidas, além da prestação
alimentícia, desde que essa penhora preserve um valor que seja suficiente para
o devedor e sua família continuarem vivendo com dignidade.
As
palavras do Tribunal foram as seguintes:
Na hipótese de execução de dívida de natureza não
alimentar, é possível a penhora de salário, ainda que este não exceda 50
salários mínimos, quando garantido o mínimo necessário para a subsistência
digna do devedor e de sua família.
STJ. Corte Especial. EREsp 1.874.222-DF, Rel. Min. João Otávio de
Noronha, julgado em 19/4/2023 (Info 771).
Exemplo
Flávio recebe salário de R$
30 mil por mês.
Ricardo ajuizou execução
contra Flávio.
O juiz determinou a penhora
de 30% do salário de Flávio, todos os meses, até que a dívida que está sendo
executada seja paga.
O STJ entendeu que essa
penhora é válida e que não viola o art. 833, IV, do CPC/2015.
Assim, podemos dizer o
seguinte:
Regra: os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as
remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios, os
montepios etc. são, como regra geral, impenhoráveis.
Exceções expressas:
1) é possível a penhora das
verbas salariais para pagamento de prestação alimentícia (qualquer que seja a
sua origem, ou seja, pode ser pensão alimentícia decorrente de poder familiar,
de parentesco ou mesmo derivada de um ato ilícito).
2) é possível a penhora sobre
o montante que exceder 50 salários-mínimos.
Exceção implícita: é permitida a penhora para satisfação de dívida de
natureza não alimentar, desde que a quantia bloqueada se revele razoável em
relação à remuneração por recebida pelo executado, não afrontando a dignidade
ou a subsistência do devedor e de sua família.
Credor
também tem direito à tutela jurisdicional efetiva
A interpretação do preceito
legal deve ser feita a partir da Constituição da República, que veda a
supressão injustificada de qualquer direito fundamental.
A impenhorabilidade de
salários, vencimentos, proventos etc. tem por fundamento a proteção à dignidade
do devedor, com a manutenção do mínimo existencial e de um padrão de vida digno
em favor de si e de seus dependentes.
Por outro lado, o credor tem
direito ao recebimento de tutela jurisdicional capaz de dar efetividade, na
medida do possível e do proporcional, a seus direitos materiais.
Esse juízo de ponderação entre os
princípios simultaneamente incidentes na espécie há de ser solucionado à luz da
dignidade da pessoa humana, que resguarda tanto o devedor quanto o credor, e
mediante o emprego dos critérios de razoabilidade e proporcionalidade.
Executado
tem que agir com boa-fé
O processo civil em geral,
nele incluída a execução civil, é orientado pela boa-fé que deve reger o
comportamento dos sujeitos processuais. Embora o executado tenha o direito de
não sofrer atos executivos que importem violação à sua dignidade e à de sua
família, não lhe é permitido abusar dessa diretriz com o fim de impedir
injustificadamente a efetivação do direito material do exequente.
Impenhorabilidade
total e absoluta das verbas salariais é desproporcional
Ao suprimir a palavra “absolutamente”
no caput do art. 833, o CPC/2015 passa a tratar a impenhorabilidade como
relativa, permitindo que seja atenuada à luz de um julgamento principiológico,
em que o julgador, ponderando os princípios da menor onerosidade para o devedor
e da efetividade da execução para o credor, conceda a tutela jurisdicional mais
adequada a cada caso, em contraponto a uma aplicação rígida, linear e
inflexível do conceito de impenhorabilidade.
Só se revela necessária,
adequada, proporcional e justificada a impenhorabilidade daquela parte do
patrimônio do devedor que seja efetivamente necessária à manutenção de sua
dignidade e da de seus dependentes.
Assim, a regra geral da
impenhorabilidade de salários, vencimentos, proventos etc. (art. 833, IV, do
CPC/2015), pode ser excepcionada quando for preservado percentual de tais
verbas, capazes de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família.
Autorização para penhora
apenas do que sobejar 50 salários-mínimos não é um critério razoável
A fixação desse limite de 50
salários mínimos merece críticas, na medida em que se mostra muito destoante da
realidade brasileira, tornando o dispositivo praticamente inócuo, além de não
traduzir o verdadeiro escopo da impenhorabilidade, que é a manutenção de uma
reserva digna para o sustento do devedor e de sua família.
Segundo a doutrina:
“Restringir a
penhorabilidade de toda a ‘verba salarial’, mesmo quando a penhora de uma
parcela desse montante não comprometa a manutenção do executado, é
interpretação inconstitucional da regra, pois prestigia apenas o direito
fundamental do executado, em detrimento do direito fundamental do exequente.
(DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, Vol. 5. Salvador:
Juspodivm, 2017, p. 923)
Portanto, mostra-se possível a
relativização do § 2º do art. 833 do CPC/2015, de modo a se autorizar a penhora
de verba salarial inferior a 50 salários mínimos, em percentual condizente com
a realidade de cada caso concreto, desde que assegurado montante que garanta a
dignidade do devedor e de sua família.
Importante salientar, porém, que
essa relativização reveste-se de caráter excepcional e dela somente se deve
lançar mão quando restarem inviabilizados outros meios executórios que garantam
a efetividade da execução e, repita-se, desde que avaliado concretamente o
impacto da constrição sobre os rendimentos do executado.