Dizer o Direito

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Mesmo se for decretada a extinção da punibilidade do autor, a vítima de violência doméstica deve ser ouvida antes que sejam cessadas as medidas protetivas de urgência anteriormente decretadas

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Após uma discussão, João ameaçou a sua companheira Regina, dizendo que iria matá-la.

No mesmo instante, Regina decidiu que não queria mais viver com ele e, com medo da ameaça, pediu medidas protetivas de urgência.

O juiz deferiu as medidas protetivas de urgência determinando que João mantivesse distância mínima de 500 metros de Regina e de seus familiares e não tentasse nenhum contato com ela por qualquer meio de comunicação (art. 22, III, “a” e “b”, da Lei nº 11.340/2006).

Vale ressaltar, contudo, que a vítima não ofereceu representação contra o ofensor no prazo legal.

 

Era necessária representação?

SIM. Isso porque, em tese, João praticou o crime de ameaça, previsto no art. 147 do Código Penal:

Art. 147. Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.

 

O delito de ameaça é crime de ação penal pública condicionada. Assim, a denúncia somente pode ser oferecida se houver representação da vítima (art. 147, parágrafo único, do CP).

 

Voltando ao caso concreto:

A autoridade policial informou ao juiz que não foi instaurado inquérito policial para apurar os fatos porque não houve representação criminal por parte da vítima no prazo legal.

Diante dessa informação, o magistrado revogou as medidas protetivas de urgência que havia anteriormente deferido.

O juiz argumentou que houve decadência, nos termos do art. 103 do CP, o que acarreta a extinção da punibilidade (art. 107, IV):

Art. 103. Salvo disposição expressa em contrário, o ofendido decai do direito de queixa ou de representação se não o exerce dentro do prazo de 6 (seis) meses, contado do dia em que veio a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do § 3º do art. 100 deste Código, do dia em que se esgota o prazo para oferecimento da denúncia.

 

Art. 107. Extingue-se a punibilidade:

(...)

IV - pela prescrição, decadência ou perempção;

 

Para o magistrado, tendo havido a extinção da punibilidade do agressor, as medidas protetivas deferidas em razão da ocorrência do referido fato criminoso perdem a vigência.

 

Recurso da vítima

Regina, assistida pela Defensoria Pública, recorreu alegando que a extinção de punibilidade não impede a manutenção da concessão de medidas protetivas.

Defendeu que as medidas protetivas requeridas ostentam natureza jurídica de tutela inibitória, que busca resguardar o direito material da mulher em ter sua vida, integridade física e psicológica não violadas.

 

O que decidiu o STJ?

Em regra, se for extinta a punibilidade do autor do fato, não subsistem mais os fatores para a manutenção/concessão de medidas protetivas, sob pena de eternização da restrição de direitos individuais.

Embora a lei penal/processual não preveja um prazo de duração da medida protetiva, não é possível a eternização da restrição a direitos individuais, devendo a questão ser examinada à luz dos princípios da proporcionalidade e da adequação.

Se não há prazo legal para a propositura de ação (normalmente criminal, pela competência ordinária para o processo da violência doméstica), tampouco se pode admitir eterna restrição de direitos por medida temporária e de urgência.

Vale ressaltar, contudo, que o STJ afirmou que deveriam ser levados em consideração os argumentos expostos no Parecer Jurídico emanado pelo Consórcio Lei Maria da Penha*:

“A revogação de medidas protetivas de urgência exige a prévia oitiva da vítima para avaliação da cessação efetiva da situação de risco à sua integridade física, moral, psicológica, sexual e patrimonial. [...], enquanto existir risco ao direito da mulher de viver sem violência, as restrições à liberdade de locomoção do apontado agente são justificadas e legítimas. O direito de alguém de não sofrer violência não é menos valioso do que o direito de alguém de ter liberdade de contato ou aproximação. Na ponderação dos valores não pode ser aniquilado o direito à segurança e à proteção da vítima”.

 

Diante disso, o STJ concluiu que, antes do encerramento da cautelar protetiva, a defesa deve ser ouvida, notadamente para que a situação fática seja devidamente apresentada ao Juízo competente, que, diante da relevância da palavra da vítima, verifique a necessidade de prorrogação/concessão das medidas, independentemente da extinção de punibilidade do autor.

 

Em suma:

 

* O que é o Consórcio Lei Maria da Penha?

O Consórcio Lei Maria da Penha é um coletivo de organizações feministas, pesquisadoras do direito e advogadas que se formou em 2003, com o objetivo de elaborar um projeto de lei para prevenir, punir e erradicar a violência doméstica contra a mulheres no Brasil. O Consórcio apresentou o projeto à Bancada Feminista e à Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres.

Em 25 de novembro, Dia Internacional pelo Fim da Violência contra as Mulheres, a Presidência da República encaminhou o PL nº 4.559/2004 ao Congresso Nacional.

Após a devida tramitação legislativa, o projeto foi aprovado e se converteu na Lei nº 11.340/2006, Lei de Violência Doméstica. Mesmo depois da aprovação, o Consórcio Lei Maria da Penha pelo Enfrentamento a Todas as Formas de Violência de Gênero contra as Mulheres (Consórcio Lei Maria da Penha) continuou (e continua) atuando sistematicamente para garantir que seus dispositivos sejam implementados na sua integralidade.

https://www.consorcioleimariadapenha.org.br/

https://pp.nexojornal.com.br/linha-do-tempo/2021/Lei-Maria-da-Penha

 

NOVIDADE LEGISLATIVA

Depois do julgado acima comentado, foi publicada a Lei 14.550/2023, que acrescentou o § 6º no art. 19 da Lei 11.340/2006 (Lei de Violência Doméstica) reforçando que as medidas provisórias deverão perdurar enquanto houver risco. Veja o dispositivo inserido:

Art. 19 (...)

§ 6º As medidas protetivas de urgência vigorarão enquanto persistir risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes.



 


 

 


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