A situação concreta foi a seguinte:
No Estado do Rio de Janeiro, foi editada a Lei estadual nº 3.990/2002,
que impôs medidas com o objetivo de evitar a troca de recém-nascidos nas
dependências dos hospitais e maternidades. Confira o que estabeleceu a Lei, em
especial a parte final do art. 1º e o art. 2º, III:
Art. 1º Ficam os hospitais, casas de
saúde e maternidades, públicos ou privados, no âmbito do Estado do Rio de
Janeiro, obrigados a adotarem medidas de segurança que evitem, impeçam ou
dificultem a troca de , recém-nascidos em suas dependências, bem como permitam a identificação posterior, através de exame de DNA
comparativo em casos de dúvida.
Art. 2º Para consecução dos objetivos
do artigo anterior definem-se como medidas de segurança:
(...)
III - Utilização de
kit de coleta de material genético de todas as mães e filhos ali internados,
coletados na sala de parto para arquivamento na unidade de saúde a disposição
da Justiça.
Art. 3º O descumprimento do disposto na
presente Lei implicará nas seguintes sanções, independentes das medidas
judiciais cíveis e criminais cabíveis:
I - multa de 5.000 UFIR`s pela não
adoção das medidas em primeira autuação;
II - multa de 10.000 UFIR`s pela não
adoção das medidas em segunda autuação;
III - interdição da maternidade.
Em outras palavras, a parte final
do art. 1º e o inciso III do art. 2º da Lei nº 3.990/2002 determinaram que os hospitais,
casas de saúde e maternidades localizados no Estado do Rio de Janeiro fizessem a
coleta compulsória de material genético de mães e bebês na sala de parto e o
subsequente armazenamento à disposição da Justiça para o fim de evitar a troca
de recém-nascidos nas unidades de saúde.
O Procurador-Geral da República
ajuizou ADI contra essa previsão.
Para o autor da ação, a norma
viola os direitos fundamentais à proteção da privacidade e da intimidade e ao
devido processo legal (art. 5º, X e LIV, da Constituição Federal).
O STF concordou com o pedido
formulado na ADI? Os dispositivo impugnados são inconstitucionais?
SIM.
É
inconstitucional norma estadual que determina a hospitais, casas de saúde e
maternidades a coleta compulsória de material genético de mães e bebês na sala
de parto e o subsequente armazenamento à disposição da Justiça para o fim de evitar
a troca de recém-nascidos nas unidades de saúde.
Essa
previsão viola os direitos à intimidade e à privacidade (art. 5º, X, CF/88),
bem como os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, na dimensão da
proibição do excesso.
STF.
Plenário. ADI 5545/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 13/4/2023 (Info 1090).
A lei estadual impugnada, a
pretexto de proteger o direito à filiação biológica, viola o direito à
privacidade de pessoas em estado de extrema vulnerabilidade, uma vez que há
coleta e armazenamento de material genético sem prévio consentimento.
Desse modo, a lei infringe a
autonomia da vontade da parturiente ao se valer de instrumento coercitivo
desproporcional para a tutela de interesse eminentemente privado do
destinatário da norma, além de comprometer a autodeterminação informativa dos
titulares desses dados, pois os impede de decidir sobre sua divulgação e
utilização.
Os dados genéticos são
classificados como sensíveis, de modo que, mesmo que houvesse consentimento da
parturiente, o direito à privacidade ainda estaria violado, visto que o texto
da lei impugnada é vago em relação ao tratamento dos dados genéticos
armazenados, o que constitui severo risco à integridade digital dos indivíduos.
A ausência de previsão quanto à
destinação dos dados, bem como aos mecanismos para sistematizar a coleta, a
guarda eficaz e a sua posterior exclusão, permite a utilização do material
coletado para quaisquer interesses, como a mercantilização e o perfilamento dos
dados, o que pode ocasionar uma série de violações a direitos fundamentais,
como, por exemplo, a discriminação genética de pessoas com doenças congênitas.
Além disso, há medidas mais
efetivas e menos custosas e interventivas na esfera privada dos indivíduos para
se evitar a troca de bebês nas unidades de saúde. Exemplos disso são o uso de
pulseiras numeradas na mãe e no filho, o uso de grampo umbilical, a
identificação da gestante no momento da admissão, em conjunto com a posterior
identificação do recém-nascido no momento do nascimento, e a possibilidade da
permanência do pai no momento do nascimento do filho.
Deve-se registrar, por fim, que
eventual coleta de material genético se mostra mais eficaz e menos lesivo se
for feito única e exclusivamente a partir do instante em que ocorrer a dúvida
sobre possível troca. Neste momento, será possível fazer um exame de DNA para
comprovar a filiação biológica.
Tese fixada pelo STF:
É
inconstitucional a lei estadual que preveja o arquivamento de materiais
genéticos de nascituros e parturientes, em unidades de saúde, com o fim de
realizar exames de DNA comparativo em caso de dúvida.
STF.
Plenário. ADI 5545/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 13/4/2023 (Info 1090).
Com base nesses entendimentos, o
Plenário do STF julgou procedente o pedido para declarar a inconstitucionalidade
da parte final do art. 1º e do inciso III do 2º, ambos da Lei nº 3.990/2002, do
Estado do Rio de Janeiro.