A situação concreta foi a seguinte:
O Código de
Processo Penal prevê, em seu art. 295, que determinadas pessoas teriam direito
à prisão especial:
Art. 295. Serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição
da autoridade competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação
definitiva:
I - os ministros de Estado;
II - os governadores ou interventores de Estados ou Territórios, o
prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários, os prefeitos
municipais, os vereadores e os chefes de Polícia;
III - os membros do Parlamento Nacional, do Conselho de Economia
Nacional e das Assembléias Legislativas dos Estados;
IV - os cidadãos inscritos no "Livro de Mérito";
V os oficiais das Forças Armadas e os militares dos Estados, do Distrito
Federal e dos Territórios;
VI - os magistrados;
VII - os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República;
VIII - os ministros de confissão religiosa;
IX - os ministros do Tribunal de Contas;
X - os cidadãos que já tiverem exercido efetivamente a função de jurado,
salvo quando excluídos da lista por motivo de incapacidade para o exercício
daquela função;
XI - os delegados de polícia e os guardas-civis dos Estados e
Territórios, ativos e inativos.
Prisão especial
O instituto da prisão especial, tal como previsto no art.
295 do CPP, consiste na prerrogativa conferida a determinadas pessoas de,
quando submetidas à prisão processual, serem recolhidas em recintos diferentes
daqueles destinados aos presos em geral.
Não se trata de uma nova modalidade de prisão cautelar,
mas apenas uma forma diferenciada de recolhimento da pessoa presa
provisoriamente, em quartéis ou estabelecimentos prisionais destacados, até a
superveniência do trânsito em julgado da condenação penal.
Quais as regras que o CPP preveem para a prisão especial
A prisão especial consiste no recolhimento do preso em
local distinto da prisão comum (art. 295, § 1º).
Não havendo estabelecimento específico para o preso
especial, este será recolhido em cela distinta do mesmo estabelecimento (art.
295, § 2º).
A cela especial poderá consistir em alojamento coletivo,
atendidos os requisitos de salubridade do ambiente, pela concorrência dos
fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequados à existência
humana (art. 295, § 3º).
O preso especial não será transportado juntamente com o
preso comum (art. 295, § 4º).
Os demais direitos e deveres do preso especial serão os
mesmos do preso (art. 295, § 5º).
ADPF
O
Procurador-Geral da República ingressou com ADPF contra o inciso VII do art.
295 do CPP:
Art. 295. Serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição
da autoridade competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação
definitiva:
(...)
VII - os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República;
Muita atenção com isso. Vou repetir. O art. 295 possui
diversas hipóteses de prisão especial. O PGR questionou unicamente a previsão
do inciso VII (prisão especial dos portadores de diploma de nível superior).
Para o PGR essa hipótese não teria sido recepcionada pela
Constituição Federal de 1988 porque violaria o princípio republicano, o
princípio da isonomia e a dignidade da pessoa humana.
O autor defendeu que não seria possível conceder prisão
especial com base unicamente no grau de instrução acadêmica do preso.
Assiste razão ao PGR? O pedido formulado na ADPF foi
julgado procedente?
SIM.
É
incompatível com a Constituição Federal — por ofensa ao princípio da isonomia
(arts. 3º, IV; e 5º, caput, CF/88) — a previsão contida no inciso VII do art.
295 do CPP que concede o direito a prisão especial, até decisão penal
definitiva, a pessoas com diploma de ensino superior.
STF. Plenário.
ADPF 334/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 03/04/2023 (Info 1089).
Princípio da igualdade não impede o tratamento desigual
dos casos desiguais
Como se sabe, a Constituição Federal adotou o princípio
da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de
possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito de tratamento
idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento
jurídico.
Diante disso, o princípio da igualdade se volta contra as
diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, mas não impede o tratamento
desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, como exigência
própria do conceito de Justiça.
Somente se tem por lesado o princípio constitucional
quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida
pelo direito, pois a atuação do Poder Público tem por objetivo a igualdade de
condições sociais, meta a ser alcançada não só por meio de leis, mas também
pela aplicação de políticas ou programas de ação estatal.
Constituição Federal legitima um tratamento diferenciado
para determinados presos que podem estar expostos a um perigo maior no cárcere
Em relação ao recolhimento de pessoas na prisão, seja de
natureza cautelar ou definitiva, não se desconhece que o Estado é responsável
por garantir a dignidade, tutela e bem-estar físico e psíquico de todos os
presos, indistintamente.
Também não se admite que o Estado proteja determinadas
pessoas ao mesmo tempo em que se omite em relação ao grande contingente de
custodiados pelo sistema carcerário, devendo garantir condições adequadas e
dignas de encarceramento como um dever estatal em relação a todos, e não a uma
categoria específica de pessoas.
Ocorre, no
entanto, que a própria Constituição Federal legitima um tratamento
diferenciado, por parte do Poder Público, na forma de recolhimento de
determinados presos, tendo em consideração circunstâncias específicas que
justificam essa consideração excepcional (de acordo com a natureza do delito, a
idade e o sexo do apenado):
Art. 5º. (...)
XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo
com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado;
Além disso, o
art. 300 do CPP e o art. 84 da LEP, estipulam que presos provisórios devem ser
segregados dos presos definitivos e encarcerados de acordo com a natureza da
infração penal imputada:
CPP
Art. 300. As pessoas presas provisoriamente ficarão separadas das que já
estiverem definitivamente condenadas, nos termos da lei de execução penal.
(Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
LEP
Art. 84. O preso provisório ficará separado do condenado por sentença
transitada em julgado.
A segregação do ambiente carcerário comum, nesses casos,
visa a atender a determinadas circunstâncias pessoais que colocam
seus beneficiários em situação de maior e mais gravosa exposição ao convívio geral
no cárcere, evitando, por exemplo, qualquer violência decorrente da convivência
de homens e mulheres na mesma prisão; a influência deletéria de presos
definitivos contra pessoas que, pela presunção de inocência, não se confirmaram
criminosas; de autores de crimes mais graves sobre os demais presos; ou, ainda,
daqueles em relação a crianças e adolescentes que cometeram atos infracionais.
Em todas essas hipóteses, busca-se conferir maior
proteção à integridade física e moral de presos que, por suas características
excepcionais, se encontram em situação mais vulnerável, ou seja,
substancialmente desigual, e que, por isso mesmo, merecem um tratamento também
desigual por parte do Poder Público.
Existem hipóteses de prisão especial também no Direito
Internacional
Observa-se, aliás, que a previsão de um modelo de prisão
especial – que destina estabelecimentos diversos a determinados presos – também
encontra pleno respaldo no Direito Internacional.
Nesse sentido, as Regras Mínimas das Nações Unidas para o
Tratamento de Presos, também conhecidas como Regras de Mandela (Resolução
70/175 em 2015), em que a Assembleia Geral da ONU promulga condições essenciais
a serem cumpridas pelos Estados no tratamento de pessoas encarceradas, entre
elas a imparcialidade, não devendo proceder com “nenhuma discriminação em razão
da raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra, origem
nacional ou social, patrimônio, nascimento ou outra condição” (Regra 2).
Atendendo,
contudo, a um critério de justiça e igualdade material, as Regras de Mandela
explicitam alguns critérios válidos e plenamente legítimos de tratamento
diferenciado entre detentos em condições desiguais, in verbis:
Regra 11
As diferentes categorias de reclusos devem ser mantidas em estabelecimentos
prisionais separados ou em diferentes zonas de um mesmo estabelecimento
prisional, tendo em consideração o respetivo sexo e idade, antecedentes
criminais, razões da detenção e medidas necessárias a aplicar. Assim:
(a) Homens e mulheres devem ficar detidos em estabelecimentos separados;
nos estabelecimentos que recebam homens e mulheres, todos os locais destinados
às mulheres devem ser completamente separados;
(b) Presos preventivos devem ser mantidos separados dos condenados;
(c) Pessoas detidas por dívidas ou outros reclusos do foro civil devem
ser mantidos separados dos reclusos do foro criminal;
(d) Os jovens reclusos devem ser mantidos separados dos adultos.
Regra 93
1. As finalidades da classificação devem ser:
(a) De separar os reclusos que, pelo seu passado criminal ou pela sua
personalidade, possam vir a exercer uma influência negativa sobre os outros
reclusos;
(b) De repartir os reclusos por grupos tendo em vista facilitar o seu
tratamento para a sua reinserção social.
2. Há que dispor, na medida do possível, de estabelecimentos separados
ou de secções distintas dentro de um estabelecimento para o tratamento das
diferentes categorias de reclusos.
Regra 111
1. Os detidos ou presos em virtude de lhes ser imputada a prática de uma
infração penal, quer estejam detidos sob custódia da polícia, quer num
estabelecimento prisional, mas que ainda não foram julgados e condenados, são
doravante designados nestas Regras por “detidos preventivamente”.
2. As pessoas detidas preventivamente presumem-se inocentes e como tal
devem ser tratadas.
3. Estes detidos devem beneficiar de um regime especial cujos elementos
essenciais se discriminam nestas Regras, sem prejuízo das disposições legais
sobre a proteção da liberdade individual ou que estabelecem os trâmites a ser
observados em relação a pessoas detidas preventivamente.
Regra 112
1. As pessoas detidas preventivamente devem ser mantidas separadas dos
reclusos condenados.
2. Os jovens detidos preventivamente devem ser mantidos separados dos
adultos e ser, em princípio, detidos em estabelecimentos prisionais separados.
Também o
Pacto Internacional de Direito Humanos, em seu art. 10, ressalta expressamente
a necessidade de se separarem presos provisórios de condenados definitivamente
e os jovens dos adultos:
ARTIGO 10
1. Toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com
humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana.
2. a) As pessoas processadas deverão ser separadas, salvo em
circunstâncias excepcionais, das pessoas condenadas e receber tratamento
distinto, condizente com sua condição de pessoa não-condenada.
b) As pessoas processadas, jovens, deverão ser separadas das adultas e
julgadas o mais rápido possível.
3. O regime penitenciário consistirá num tratamento cujo objetivo
principal seja a reforma e a reabilitação moral dos prisioneiros. Os
delinqüentes juvenis deverão ser separados dos adultos e receber tratamento
condizente com sua idade e condição jurídica.
No âmbito da União Europeia, o tema é regido pelas Regras
Penitenciárias Europeias de 1987, posteriormente regulamentadas pela
Recomendação Rec (2006) do Comitê de Ministros, que dispõem, entre outros
temas, acerca dos “ reclusos preventivos”.
A legislação europeia se aproxima da diretriz adotada
pela ONU, prevendo normas que versam sobre a separação entre presos cautelares
e condenados.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
igualmente, enfatiza o necessário tratamento distinto entre pessoas presas
provisoriamente, fazendo menção a esse respeito nas “Medidas para reduzir a
prisão preventiva”, quando indica a necessidade de um tratamento diferenciado
também para detentas mulheres e aqueles que se encontrem em situação de risco
(item n. 17).
Vimos acima que, em tese, é possível prisão especial;
vale ressaltar, contudo, que ter um diploma de ensino superior não é, por si
só, motivo justificável para se ter direito à prisão especial
No Brasil, a previsão do direito à prisão especial a
diplomados em ensino superior não guarda relação com qualquer objetivo
constitucional, com a satisfação de interesses públicos ou com a proteção de
seu beneficiário frente a algum risco maior a que possa ser submetido em
virtude especificamente do seu grau de escolaridade.
Assim, a referida norma não protege categoria de pessoas
fragilizadas e merecedoras de tutela. Ao contrário, configura medida estatal
discriminatória, que promove a categorização de presos e fortalece as
desigualdades, pois beneficia, com base em qualificação de ordem estritamente
pessoal (grau de instrução acadêmica), aqueles que já são favorecidos por sua
posição socioeconômica, visto que obtiveram a regalia de acesso a uma
universidade.
Trata-se, na realidade, de uma medida estatal
discriminatória, que promove a categorização de presos e que, com isso, ainda
fortalece desigualdades, especialmente em uma nação tão socialmente desigual
como a nossa, em que apenas 11,30% da população geral possui ensino superior
completo.
Ao permitir-se um tratamento especial por parte do Estado
dispensado aos bacharéis presos cautelarmente, a legislação beneficia
justamente aqueles que já são mais favorecidos socialmente, os quais já
obtiveram um privilégio inequívoco de acesso a uma Universidade.
A separação de presos provisórios por nível de instrução
contribui para a perpetuação de uma inaceitável seletividade socioeconômica do
sistema de justiça criminal e do Direito Penal, tratando-se de regra incompatível
com o princípio da igualdade e com o próprio Estado democrático de Direito.
Nesse contexto, a extensão da prisão especial a essas
pessoas caracteriza verdadeiro privilégio que, em última análise, materializa a
desigualdade social e o viés seletivo do direito penal, em afronta ao preceito
fundamental da Constituição que assegura a igualdade entre todos na lei e
perante a lei.
Com base nesse entendimento, o Plenário, por unanimidade,
julgou procedente a ADPF para declarar a não recepção do art. 295, VII, do CPP,
pela Constituição Federal.
DOD Plus –
informações complementares
Pode-se dizer que a prisão especial acabou no Brasil?
NÃO. Nem perto disso. O STF decidiu unicamente que o
inciso VII do art. 295 do CPP é incompatível com a Constituição Federal.
Assim, podemos dizer que não é válida a previsão legal de
prisão especial pelo simples fato de o indivúdo ser portador de um diploma de ensino
superior.
Contudo, continuam válidas as demais hipóteses de prisão
especial, sejam aquelas elencadas nos demais incisos do art. 295 do CPP, sejam
as previstas em leis esparsas.
Existem outras leis que preveem hipóteses de prisão
especial?
SIM. Além do art. 295 do CPP, a prisão especial é
prevista também em outras normas. Assim, possuem direito à prisão especial:
• os dirigentes de entidades sindicais e o empregado
eleito para a função de representação profissional ou para cargo de
administração sindical (Lei nº 2.860/1956);
• os pilotos de aeronaves mercantes nacionais (Lei nº
3.988/61);
• os servidores do Departamento Federal de Segurança
Pública, que exerçam atividade estritamente policial (Lei nº 3.313/57);
• os funcionários da Polícia Civil da União, dos Estados,
Distrito Federal e Territórios Federais (Lei nº 5.350/67);
• os Magistrados (Lei Complementar nº 35/1979);
• os membros do Ministério Público (Lei nº 8.625/1993 e
Lei Complementar nº 75/93);
• os Defensores Públicos (Lei Complementar nº 80/94); e
• os Advogados (Lei nº 8.906/94).