O caso concreto foi o seguinte:
Nos Estados do Mato Grosso e de Tocantins foram editadas
leis criando Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO) no
âmbito do Ministério Público.
Veja alguns
trechos da Lei Complementar estadual 119/2002, do Mato Grosso:
Art. 1º Fica criado, no âmbito do Poder Executivo e do Ministério Público
do Estado de Mato Grosso, o GAECO – Grupo de Atuação Especial contra o crime
organizado, com sede na capital e atribuições em todo o território do Estado de
Mato Grosso.
Art. 2º (...)
§ 4º Em caso de necessidade, o Coordenador do GAECO poderá, nos termos
do art. 23, VIII, da Lei Complementar 27, de 19 de novembro de 1993, requisitar
serviços temporários de servidores civis
ou policiais civis ou militares para a realização das atividades de combate
às organizações criminosas.
Art. 3º O Coordenador do GAECO será um representante do Ministério
Público, nomeado pelo Procurador-Geral de Justiça.
Art. 4º São atribuições do GAECO:
(...)
III – instaurar procedimentos administrativos de investigação;
(...)
VII – oferecer denúncia, acompanhando-a até seu recebimento, requerer o
arquivamento do inquérito policial ou procedimento administrativo;
§ 2º Durante a tramitação do procedimento administrativo e do inquérito
policial, o GAECO poderá atuar em conjunto com o Promotor de Justiça que tenha
prévia atribuição para o caso.
§ 3º A denúncia oferecida pelo GAECO, com base em procedimento administrativo
, inquérito policial ou outras peças de informação, será distribuída perante o
juízo competente, sendo facultado ao Promotor de Justiça, que tenha prévia
atribuição para o caso, atuar em conjunto nos autos.
Art. 6º O GAECO terá dotação orçamentária específica, dentro da proposta
orçamentária do Ministério Público e destinação de recursos pelo Poder
Executivo.
Confira agora
alguns trechos da Lei Complementar estadual 72/2011, de Tocantins:
Art. 1º É instituído no âmbito do Ministério Público do Estado do
Tocantins o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado - GAECO.
(...)
Art. 3º O Procurador Geral de Justiça proporcionará ao GAECO a estrutura
e os recursos técnicos e administrativos necessários ao seu funcionamento, de
acordo com as disponibilidades do Ministério Público.
Art. 4º Os membros do Ministério Público designados para integrarem o
GAECO tem atribuições para, em conjunto ou individualmente, mediante
distribuição:
I - realizar investigações e
serviços de inteligência;
II - requisitar e acompanhar inquéritos policiais;
III - instaurar procedimentos administrativos de investigação;
(...)
VII - requisitar diretamente de órgãos públicos informações necessárias
à consecução de suas atividades;
Art. 8º Qualquer autoridade que no exercício de suas funções verificar a
existência de indícios de atuação de organização criminosa deve enviar cópias
de autos e peças de informação ao GAECO para a tomada de providências cabíveis.
Art. 12. Os integrantes do GAECO comunicarão ao Procurador Geral de
Justiça as investigações instauradas.
Art. 14. O GAECO tem dotação orçamentária específica, dentro da proposta
orçamentária do Ministério Público.
O então Partido Social Liberal (PSL) ajuizou duas ADIs
contra essas duas leis estaduais aduzindo, dentre outros argumentos, que:
a) a requisição da Administração Pública de serviços temporários
de servidores civis ou policiais militares e meios materiais necessários para a
realização de atividades específicas é prerrogativa do Poder Executivo;
b) a lei prevê subordinação hierárquica entre servidores
da polícia civil ou militar e membros do Ministério Púbico;
c) a Constituição Federal não atribui ao Ministério
Público a função de investigação criminal, mas apenas a possibilidade de
requisitar a instauração de inquérito policial.
O STF concordou com os argumentos do autor? Essas leis
são inconstitucionais?
NÃO.
São
constitucionais leis estaduais que dispõem sobre a criação de Grupos de Atuação
Especial contra o Crime Organizado (GAECOs).
Os GAECOs são
órgãos de cooperação institucional criados dentro da estrutura do Ministério
Público local com a finalidade de concretizar instrumentos procedimentais
efetivos para a realização de planejamento estratégico e garantir a eficiência
e a eficácia dos procedimentos de investigação criminal realizados para o
combate à criminalidade organizada, à impunidade e à corrupção.
STF. Plenário. ADI 2.838/MT e ADI 4.624/TO, Rel. Min. Alexandre de
Moraes, julgados em 13/4/2023 (Info 1090).
O grande desafio institucional brasileiro da atualidade é
evoluir nas formas de combate à criminalidade, efetivando um maior entrosamento
dos diversos órgãos governamentais na investigação à criminalidade organizada,
na repressão à impunidade e na punição da corrupção, e, consequentemente,
estabelecer uma legislação que fortaleça a união dos poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário, bem como do Ministério Público na área de persecução
penal, no âmbito dos Estados da Federação.
A Constituição Federal de 1988 ampliou o papel do
Ministério Público, transformando-o em um verdadeiro defensor da sociedade e do
regime democrático, e permitiu à legislação ordinária a fixação de outras
funções, quando compatíveis com sua finalidade constitucional.
Nesse contexto, o STF assentou, inclusive em sede de
repercussão geral, a legitimidade do Ministério Público para promover, por
autoridade própria, investigações de natureza penal, observados os direitos e
garantias de indivíduos investigados pelo Estado:
O Ministério
Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por
prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os
direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob
investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de
reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais
de que se acham investidos, em nosso País, os Advogados (Lei 8.906/94, artigo
7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da
possibilidade – sempre presente no Estado democrático de Direito – do
permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados
(Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição.
STF. Plenário. RE
593727, Relator p/ Acórdão Min. Gilmar Mendes, julgado em 14/05/2015 (Repercussão
Geral – Tema 184).
Obviamente, o poder investigatório do Ministério Público
não é sinônimo de poder sem limites ou avesso a controles, mas sim derivado diretamente
de suas funções constitucionais enumeradas na Constituição Federal e com plena
possibilidade de responsabilização de seus membros por eventuais abusos
cometidos no exercício de suas funções, pois, em um regime republicano, todos
devem fiel observância à Lei.
Dentro desse contexto, os dispositivos legais impugnados
nada mais fizeram do que instrumentalizar de maneira constitucional e razoável
o Ministério Público para o exercício de sua missão constitucional, inclusive o
combate ao crime organizado e à corrupção, com a criação de um órgão dentro de
sua estrutura administrativa, com plena autonomia funcional e apoio das
Polícias Civil e Militar.
A estruturação do GAECO — como órgão interno na estrutura
do Parquet e coordenado por membro da
própria instituição, com o apoio das Polícias Civil e Militar — garante ampla
autonomia funcional aos seus membros, bem como autonomia administrativa e financeira,
com previsão de destinação orçamentária específica dentro do orçamento ministerial.
Trata-se, portanto, de órgão criado na estrutura do
Ministério Público e por este coordenado, com apoio de policiais cedidos pelas polícias
civil e militar com a finalidade de atuação no âmbito dos procedimentos de investigação
criminal, obviamente, cada qual nos limites de suas funções constitucionais de
polícia judiciária e polícia ostensiva e de preservação da ordem pública.
A coordenação das tarefas do grupo, a cargo do Promotor
de Justiça, é restrita ao âmbito das atividades realizadas pelos agentes
policiais que integram o próprio GAECO e em razão das atribuições desse grupo,
não autorizando a se imiscuir em quaisquer questões internas de corporações policiais,
sem prejuízo do regular exercício, inclusive pelo Promotor coordenador do
GAECO, do controle externo sobre as atividades por essas desenvolvidas, sendo,
portanto, desprovidas de fundamentação as alegações do autor da ADI no sentido
de criação de verdadeiro controle interno da Polícia pelo Ministério Público.
Ademais, o duplo vínculo hierárquico dos servidores de
corporações policiais integrantes do GAECO, enquanto durar a sua atuação, não
configura inconstitucionalidade. Trata-se de hipótese semelhante à que ocorre
nos institutos da cessão e da requisição de servidores públicos, em que a vinculação
disciplinar permanece na “carreira-mãe”, de modo que se cria uma vinculação
apenas funcional para o exercício das funções inerentes ao próprio GAECO.
Com base nesses entendimentos, o Plenário, por
unanimidade, em apreciação conjunta, conheceu parcialmente das ações e, nessas
extensões, as julgou improcedentes para declarar a constitucionalidade da Lei
Complementar nº 119/2002 do Estado de Mato Grosso e da Lei Complementar nº
72/2011 do Estado de Tocantins.
DOD Plus –
informações complementares
Não configura violação ao princípio do promotor natural a
atuação do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO)
quando precedida de solicitação do Promotor de Justiça a quem a investigação
foi atribuída
A jurisprudência do STJ consolidou-se no sentido de que a
atuação do GAECO não viola o princípio do promotor natural.
A atuação de promotores auxiliares ou de grupos especializados
não ofende o princípio do promotor natural, uma vez que, nessa hipótese, se
amplia a capacidade de investigação, de modo a otimizar os procedimentos
necessários à formação da opinio delicti do Parquet.
Vale ressaltar, contudo, que, para que não haja ofensa ao
princípio do promotor natural, o promotor a quem distribuído livremente o feito
deverá solicitar ou anuir com a participação ou ingresso do GAECO nas
investigações.
Na hipótese em exame, não há que se falar em violação do
princípio do promotor natural, uma vez que não houve designação casuística ou
arbitrária do grupo especializado para sua atuação nos autos da investigação. O
Promotor de Justiça a quem a investigação foi atribuída solicitou a atuação do
GAECO.
STJ. 5ª Turma. AgRg no RHC
147951/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 27/09/2022 (Info 751).