sexta-feira, 5 de maio de 2023
A fraude à cota de gênero, que pode ser apurada mediante AIJE, enseja a cassação de todas as candidaturas beneficiadas pela fraude
Márcio André Lopes Cavalcante
Juiz Federal. Juiz Eleitoral do pleno do TRE/AM (2020-2022). Membro da ABRADEP
Robério Moreira Borges
Analista Judiciário do TRE/AM
Cota de gênero
A cota de gênero, atualmente prevista no art. 10, §3º, da
Lei nº 9.504/97, consiste na obrigação de o partido reservar, pelo menos, 30%
de candidaturas aos cargos proporcionais para cada sexo (masculino ou feminino).
Veja:
Art. 10. Cada partido poderá registrar
candidatos para a Câmara dos Deputados, a Câmara Legislativa, as Assembleias
Legislativas e as Câmaras Municipais no total de até 100% (cem por cento) do
número de lugares a preencher mais 1 (um).
(...)
§ 3º Do número de vagas resultante das
regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de
30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas
de cada sexo.
Como
funciona, na prática
Para
entender como funciona essa cota na prática, vejamos a seguinte situação
hipotética, com números exatos e sem sobras, para facilitar o entendimento:
Em um
pequeno município do interior, o partido Alfa realizou convenção partidária
para escolha de seus candidatos. Nessa convenção, apresentaram-se cinco
pré-candidatos para o cargo de vereador, sendo quatro do sexo masculino
(candidatos A, B, C e D) e uma do sexo feminino (candidata X).
Nesse
exemplo, indaga-se: seria possível o registro desses candidatos?
NÃO. Isso
porque o percentual de candidaturas femininas, neste caso, corresponderia a
apenas 20% do total de candidatos (1 de 5 candidaturas).
Neste
cenário, restaria ao partido duas possibilidades para satisfazer a exigência
legal:
1)
registrar mais uma candidatura feminina; ou
2) deixar
de registrar duas candidaturas masculinas.
Adotando
qualquer uma dessas duas possibilidades, o percentual ficaria acima do mínimo
de 30%.
Acontece
que, por ser uma eleição muito disputada, o partido Alfa queria lançar o maior
número de candidaturas possível, pois dependeria de todos esses votos para
elevar o quociente partidário e assim conseguir um maior número de cadeiras.
Como
solução, o Partido Alfa resolveu registrar a candidata Y, esposa
de um dos outros candidatos, que, embora filiada, até então nunca havia se
envolvido na política, nem tinha pretensões de se candidatar ou fazer campanha
eleitoral. A candidatura somente foi formalizada para atender o percentual
mínimo de 30% da cota de gênero.
O partido
então submeteu o pedido de registro de candidatura ao juiz eleitoral, lembrando
que a candidata Y foi registrada apenas para satisfazer o número mínimo exigido
pela cota de gênero.
Esse
registro, na prática, funciona da seguinte forma: o partido encaminha o Demonstrativo
de Regularidade de Atos Partidários – DRAP, no qual o juiz analisa a
regularidade do partido, da convenção partidária e dos demais requisitos
legais, inclusive a cota de gênero. Caso deferido o DRAP, o juiz passa a
analisar individualmente os requerimentos de registro - RRC
vinculados a esse DRAP.
Como o DRAP
atendia a cota de gênero, pois foram indicadas quatro candidaturas masculinas
(Candidatos A, B, C e D) e duas femininas (Candidatas X e Y), o pedido foi
deferido. Em seguida, foram também deferidas todas as candidaturas do partido.
Deu-se,
então, início à campanha eleitoral.
Após o
pleito, em uma disputa por nove cadeiras, computou-se na circunscrição
eleitoral um total de nove mil votos válidos.
O partido Alfa obteve o seguinte desempenho:
CANDIDATO |
NÚMERO DE VOTOS |
CANDIDATO A |
1.000 |
CANDIDATA X |
500 |
CANDIDATO B |
250 |
CANDIDATO C |
150 |
CANDIDATO D |
100 |
CANDIDATA Y |
0 |
|
TOTAL DE VOTOS DO PARTIDO: 2.000 votos |
Como se
trata de eleição para o cargo de vereador, o número de cadeiras obtido pelo
partido deve ser calculado segundo o sistema proporcional.
Nesse sistema, calcula-se inicialmente o quociente
eleitoral, na forma do art. 106, do Código Eleitoral:
Art. 106. Determina-se o quociente
eleitoral dividindo-se o número de votos válidos apurados pelo de lugares a
preencher em cada circunscrição eleitoral, desprezada a fração se igual ou
inferior a meio, equivalente a um, se superior.
No nosso
exemplo, o quociente eleitoral será obtido a partir da divisão entre o
número de votos válidos (9 mil) pelo número de cadeiras (9
cadeiras). No nosso exemplo, portanto, o
quociente eleitoral seria 1.000.
Dizendo de
uma forma bem simples, pode-se afirmar que, nesse exemplo, cada cadeira em
disputa corresponderia a 1.000 votos. Esse é o quociente eleitoral.
Em seguida, passamos para o cálculo do quociente
partidário, ou seja, a quantidade de cadeiras obtidas pelo partido. O
cálculo é feito na forma do art. 107, do Código Eleitoral:
Art. 107. Determina-se para cada
partido o quociente partidário dividindo-se pelo quociente eleitoral o número
de votos válidos dados sob a mesma legenda, desprezada a fração. (Redação dada pela Lei nº14.211, de 2021)
No nosso
exemplo, vamos pegar a votação total obtida pelo partido, que, no nosso caso,
foi 2.000 votos, e dividi-lo pelo quociente eleitoral, que corresponde ao
número de votos de cada cadeira (1.000).
O quociente
partidário do Partido Alfa, portanto, é 2 (2.000 dividido por 1.000). Assim,
pelo quociente partidário, o Partido Alfa conquistou duas cadeiras.
Logo, estarão
eleitos os dois candidatos mais votados desse partido, quais sejam: Candidato
A e a Candidata X, figurando como suplentes os demais.
Note-se,
ainda, que a candidata Y, como já se esperava, não obteve nenhum voto.
No entanto, sua candidatura possibilitou o registro de outras candidaturas
masculinas que contribuíram para elevação do quociente partidário e
permitiram a obtenção da segunda cadeira pelo partido.
AIJE
proposta por partido adversário
O Partido
Beta, adversário, percebeu que a candidata Y não tinha feito campanha e
sequer obteve o próprio voto.
Por essa
razão, após a proclamação dos resultados e antes da diplomação, o Partido Beta
ingressou com uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral – AIJE contra
o Partido Alfa, argumentando que o partido investigado teria fraudado a cota de
gênero.
Nessa ação,
o Partido Beta alegou e comprovou que a candidata Y:
1) não
realizou nenhum ato de campanha;
2) não
obteve nenhum voto;
3)
apresentou prestação de contas zerada, ou seja, sem registro de nenhuma
despesa;
4) não
confeccionou propaganda eleitoral;
5) tinha
parentesco com candidato do próprio partido, e;
6) publicou
postagens em sua rede social fazendo propaganda para outro candidato que, em
tese, seria seu adversário.
O autor requereu
a procedência da AIJE para que fosse reconhecida a fraude e, em consequência,
fossem cassadas todas as candidaturas da chapa, bem como aplicada a sanção de
inelegibilidade, nos termos do art. 22, XIV, da Lei Complementar 64/90.
Inicialmente,
indaga-se: é possível investigar fraude à cota de gênero por meio da AIJE? Essa
AIJE teria chances de êxito?
SIM.
O Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) admite que a fraude de gênero seja apurada tanto em
sede de AIJE, como também em Ação de Impugnação de Mandato Eletivo - AIME:
1. O Tribunal Superior Eleitoral firmou o entendimento, em
recente julgado, de que é possível a apuração de fraude em Ação de Investigação
Judicial Eleitoral (AIJE), por constituir tipo de abuso de poder, cujas
consequências são a cassação dos mandatos dos eleitos e dos diplomas dos
suplentes e não eleitos e a declaração de inelegibilidade dos diretamente
envolvidos na fraude. (TSE - RESPE - Recurso Especial Eleitoral nº 74789 -
GEMINIANO – PI - Acórdão de 04/02/2020 - Relator(a) Min. Edson Fachin -
Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 161, Data 13/08/2020,
Página 218-225)
É firme a Jurisprudência desta CORTE SUPERIOR ELEITORAL no
sentido de admitir a propositura de Ação de Impugnação de Mandato Eletivo para
apurar violação à cota de gênero.
TSE REspEl - Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral nº
190 - GOUVELÂNDIA – GO - Acórdão de 16/12/2021 - Relator(a) Min. Alexandre de
Moraes)
Também de
acordo com a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, a AIJE teria
chances de êxito, pois admite-se o reconhecimento da fraude de gênero quando
comprovadas circunstâncias que, somadas, permitem concluir que houve registro
de candidaturas inviáveis, com único propósito de atender formalmente a cota de
gênero.
Vejamos um
julgado muito parecido com o caso em análise:
3. No caso, a moldura fática
do acórdão Regional, delineada a partir de conteúdo probatório contundente
(documentos, oitiva de testemunhas e o depoimento pessoal das requeridas), é
incontroverso que: (i) 4 (quatro) das cinco candidatas não obtiveram nenhum
voto (percentual que corresponde a 80% das candidaturas femininas registradas);
(ii) não realizaram nenhum ato de campanha; (iii) apresentaram prestações de
contas zeradas; (iv) não tiveram os nomes mencionados nos atos de propaganda
eleitoral dos candidatos da coligação e (v) há parentesco entre uma delas e
candidato da Coligação. Diante do quadro retratado, está bastante claro que as
candidatas foram cooptadas para compor a cota mínima legal.
(TSE - 0000001-90.2017.6.09.0046 - REspEl - Agravo Regimental no
Recurso Especial Eleitoral nº 190 - GOUVELÂNDIA – GO - Acórdão de 16/12/2021 - Rel.
Min. Alexandre de Moraes – Publicação: 04/02/2022)
Superada a
primeira indagação, vejamos o segundo questionamento: qual seria a consequência
da procedência da AIJE?
De acordo
com a jurisprudência do TSE, o reconhecimento da fraude de gênero implica na desconstituição
do registro e anulação dos votos atribuídos a todos os candidatos do partido.
Isso significa que o Partido Alfa perderá as duas cadeiras que conquistou.
Segundo
entendimento do TSE, o registro de candidaturas fictícias, unicamente para
atender a cota de gênero, contrapõe-se às finalidades da política afirmativa,
propiciando uma falsa competição pelo voto popular. Por essa razão, devem ser
cassados os registros ou diplomas de todos os candidatos que compuseram a
chapa, independente de prova da sua participação ou anuência no evento
fraudulento.
Confira:
8. Caracterizada a fraude e, por conseguinte, comprometida a
disputa, não se requer, para fim de perda de diploma de todos os candidatos
beneficiários que compuseram as coligações, prova inconteste de sua
participação ou anuência, aspecto subjetivo que se revela imprescindível apenas
para impor a eles inelegibilidade para eleições futuras. Precedentes.
9. Indeferir apenas as candidaturas fraudulentas e as menos
votadas (feito o recálculo da cota), preservando-se as que obtiveram maior
número de votos, ensejaria inadmissível brecha para o registro de
"laranjas", com verdadeiro incentivo a se "correr o risco",
por inexistir efeito prático desfavorável.
10. O registro das candidaturas fraudulentas possibilitou maior
número de homens na disputa, cuja soma de votos, por sua vez, contabilizou-se
para as respectivas alianças, culminando em quociente partidário favorável a
elas (art. 107 do Código Eleitoral), que puderam então registrar e eleger mais
candidatos.
11. O círculo vicioso não se afasta com a glosa apenas parcial,
pois a negativa dos registros após a data do pleito implica o aproveitamento
dos votos em favor das legendas (art. 175, §§ 3º e 4º, do Código Eleitoral),
evidenciando-se, mais uma vez, o inquestionável benefício auferido com a
fraude.
12. A adoção de critérios diversos ocasionaria casuísmo
incompatível com o regime democrático.
(TSE - RESPE - Recurso Especial Eleitoral nº 19392 - VALENÇA DO
PIAUÍ – PI - Acórdão de 17/09/2019 - Relator(a) Min. Jorge Mussi)
Atualmente, esse entendimento encontra-se materializado na
Resolução TSE 23.609/2019:
Art. 20. Os pedidos de registro serão
compostos pelos seguintes formulários gerados pelo CANDex:
(...)
§ 5º A conclusão, nas ações referidas
no § 1º deste artigo, pela utilização de candidaturas femininas fictícias,
acarretará a anulação de todo o DRAP e a cassação de diplomas ou mandatos de
todas as candidatas e de todos os candidatos a ele vinculados,
independentemente de prova de sua participação, ciência ou anuência, com a
consequente retotalização dos resultados e, se a anulação atingir mais de 50%
(cinquenta por cento) dos votos da eleição proporcional, a convocação de novas
eleições. (Incluído pela Resolução nº 23.675/2021)
Mas um dos
eleitos é a Candidata X. Seria possível cassar uma candidatura do sexo feminino
por fraude à cota de gênero?
SIM. Como a
fraude à cota de gênero atinge o DRAP, que precede o registro de candidatura,
são atingidos todos os registros ou diploma a ele (DRAP) vinculados,
independente do sexo do candidato.
O debate
acima explicado foi levado ao STF
Conforme já
dito, o entendimento acima explicado prevalece há algum tempo no TSE. Alguns
partidos, no entanto, não concordaram com o fato de as sanções alcançarem todos
os candidatos da chapa. Para esses partidos, a sanção deveria recair unicamente
sobre as candidaturas fictícias.
Transportando
parte dessas críticas ao nosso caso hipotético, podemos citar:
- O
Candidato A obteve votação expressiva e sua eleição não dependeu dos votos
proporcionados pela Candidata Y;
- Com o
reconhecimento da fraude, uma candidata acabou por perder o cargo conquistado,
circunstância que, segundo esses críticos, estaria em conflito com as
finalidades da política afirmativa;
- Não seria
justo que os demais candidatos fossem punidos sem prova de que contribuíram ou
anuíram com a prática ilegal.
Em razão
disso, um desses partidos (Partido Solidariedade – SD) ingressou com uma Ação
Direta de Inconstitucionalidade questionando a interpretação dada pelo TSE ao
art. 10, §3º, da Lei 9.504/97 c/c art. 22, XIV, da CF/88.
Queria que
o STF, através das técnicas de “interpretação conforme a Constituição” e
“inconstitucionalidade parcial sem redução de texto”, assentasse que, nas
hipóteses de reconhecimento de fraude às candidaturas femininas em sede de
AIJE, ocorresse apenas a cassação dos responsáveis pela prática abusiva e a
punição da agremiação que selecionou candidatos laranjas para compor sua chapa,
isentando-se de qualquer responsabilização as candidatas e candidatos eleitos
que não tenham contribuído ou consentido para a consecução do abuso que
conduzisse à cassação de todos os integrantes da chapa.
Como
fundamento, entre outros, alegou que a cassação de todas as candidaturas do
partido envolvido na fraude acabaria por afetar outras candidatas que tenham
concorrido de boa fé e que não tivessem participado, de forma comissiva ou
omissiva, para a prática do ato.
Assim, o
entendimento produziria um resultado concreto que, ao invés de promover,
enfraqueceria a ação afirmativa de fomento à participação política feminina
(incidiria a teoria do impacto desproporcional).
Na visão do
partido autor da ADI, seria um contrassenso adotar postura rigorosa de proteção
da política de cotas e retirar do certame candidatas eleitas que compuseram as
coligações, sem demonstração de sua efetiva participação ou anuência na fraude.
Para o
partido requerente, a jurisprudência do TSE estaria criando uma hipótese de
responsabilidade objetiva na seara eleitoral, o que seria vedado pela
Constituição Federal.
Representaria,
ainda, ofensa ao princípio da proporcionalidade, porquanto as sanções
ultrapassariam as candidaturas envolvidas na fraude.
Alegou,
ainda, que os Demonstrativos de Regularidade de Atos Partidários - DRAP,
documento no qual os partidos formalizam as candidaturas e demonstram
cumprimento das cotas de gênero, são assinados somente pelos presidentes dos
partidos, sem interferência dos candidatos.
Dessa
forma, a atual postura do TSE repercutiria indevidamente na esfera jurídica dos
candidatos, pois criaria, para eles, a obrigação de fiscalizar todas as
escolhas de candidaturas de seu partido para tentar descobrir se as cotas de
gênero estão sendo cumpridas, além da obrigação de fiscalizar as candidaturas
femininas dos demais partidos, para saber se elas estão fazendo campanha
eleitoral.
Esse ônus
faria com que houvesse um completo desincentivo à participação política,
agravando ainda mais o cenário de sub-representação política das mulheres.
Assim, em
conclusão, defendeu o partido que as sanções deveriam recair somente sobre as
candidaturas fictícias.
No nosso
exemplo acima mencionado, caso prevalecesse a tese do partido autor da ADI, a
sanção recairia unicamente sobre a Candidata Y e sobre o partido, mantendo-se
hígidas as demais candidaturas e cadeiras conquistadas.
O Supremo
Tribunal Federal concordou com esses argumentos? O pedido na ADI foi julgado
procedente?
NÃO.
Inicialmente,
o STF destacou que, mesmo com as políticas afirmativas até então implementadas,
o cenário de desequilíbrio entre homens e mulheres ainda se mostra muito
acentuado.
De acordo
com a Suprema Corte, fraudar a cota de gênero – consubstanciada no lançamento
fictício de candidaturas femininas – materializa conduta transgressora da
cidadania (art. 1º, II, da CF/88), do pluralismo político (art. 1º, V, da CF/88),
da isonomia (art. 5º, I, da CF/88), além de, ironicamente, subverter uma
política pública criada pelos próprios membros (eleitos) das agremiações
partidárias.
A fraude à
cota de gênero é ato de extrema gravidade pois tem efeito drástico e perverso
na legitimidade, na normalidade e na lisura das eleições e na formação da
vontade do eleitorado, isso porque permite aos partidos lançar um número maior
de candidatos sem o percentual mínimo estipulado em lei, elevando assim o
quociente partidário e, consequentemente, o número de cadeiras alcançadas.
Por essa
razão, a exclusão apenas das candidaturas fraudulentas, como pleiteia o
partido, implicaria no aumento do número de candidaturas masculinas efetivas.
Em consequência, a sanção restaria esvaziada, pois a mera anulação dos votos
dessas candidaturas fictícias – que receberam poucos ou nenhum voto – não teria
impacto significativo no quociente partidário, de forma que o partido
continuaria se beneficiando da fraude.
Ademais, a
anulação de todos os votos atribuídos ao partido no qual se verificou à fraude
se mostra proporcional em relação à dinâmica do processo eleitoral, pois a
análise da cota de gênero é feita no DRAP, que precede o registro de
candidatura.
Nesse
passo, se um partido submete um DRAP sem observar a cota de gênero, a
consequência será o indeferimento desse DRAP, prejudicando as candidaturas a
ele vinculadas. Logo, se reconhecido que uma candidatura feminina registrada
era fictícia, ou seja, nasceu irregular, a consequência deve necessariamente
ser a mesma, ou seja, a desconstituição do DRAP e consequentemente das
candidaturas a ele vinculadas.
Entender de
modo diverso seria dar tratamento mais benéfico ao lançamento das candidaturas
fictícias, de modo a incentivar práticas ilegais e fraudulentas.
Demais
disso, o acolhimento da pretensão do partido acarretaria o esvaziamento da
sanção imposta e os partidos deixariam de ter a expectativa de real e efetiva
punição.
Assim,
segundo o STF, a regra perderia seu caráter transformador de condutas, pois,
dispor sobre cotas de gênero, mas não aplicar a punição a todos os
beneficiados, tornaria inócua e sem razão de ser a legislação.
Quanto ao
papel dos demais candidatos da coligação, o STF consignou que a eles compete,
juntamente com os demais integrantes e representantes, monitorar, controlar e
fiscalizar os atos empreendidos por suas agremiações, principalmente no âmbito
das eleições proporcionais, pois os atos partidários beneficiam a todos, de
forma que não há que se falar em responsabilidade objetiva.
Por fim, o
acórdão assentou que a teoria do impacto desproporcional não teria
aplicabilidade à hipótese, dada a necessidade de punição rigorosa das condutas
fraudulentas e o imperativo legal de cassação de registro ou de diploma de
todos os beneficiados.
Com esses
argumentos, o STF concluiu ser constitucional a regra prevista no art. 20, §
5º, Resolução/TSE 23.609/2019, incluído pela Resolução/TSE 23.675/2021, que
estabelece, de modo claro e inequívoco, que, a constatação de fraude às cotas
de gênero, acarretará a anulação de todo o DRAP e a cassação de diplomas ou
mandatos de todas as candidatas e de todos os candidatos a ele vinculados,
independentemente de prova de sua participação, ciência ou anuência.
Em suma:
É
constitucional o entendimento jurisprudencial do Tribunal Superior Eleitoral
(TSE) segundo o qual é:
i)
cabível a utilização da Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) para
apuração de fraude à cota de gênero; e
ii)
imperativa a cassação do registro ou do diploma de todos os candidatos
beneficiados por essa fraude.
STF.
Plenário. ADI 6338/DF, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 03/04/2023 (Info 1089).
DOD Plus –
teoria do impacto desproporcional
O julgado acima menciona a
teoria do impacto desproporcional. O que vem a ser isso?
Este tema está relacionado com direito da antidiscriminação
e quem o explica de forma mais didática possível é o Prof. Filippe Augusto dos
Santos Nascimento:
“A Teoria do
Impacto Desproporcional está atrelada aos conceitos de discriminação de fato e
discriminação por ações neutras:
i)
Discriminação de Fato: ocorre quando a realidade é desigual e os atores
envolvidos poderiam agir para encerrar a desigualdade, mas, por omissão, mantém
a desigualdade de fato.
ii) Discriminação
por Ações Neutras: acontece quando há uma norma aparentemente neutra, que, na
sua aplicação, efetivamente irá discriminar uma pessoa ou grupo, ou seja, a
mera aplicação da norma leva à discriminação.
No bojo da ADI
nº 4424, sobre a desnecessidade de representação da vítima na Lei Maria da
Penha, o Ministério Público Federal (MPF), em peça subscrita pela
Ex-Procuradora Nacional dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, entendeu que a
situação de discriminação indireta é correlata com a Teoria do Impacto Desproporcional.
A Teoria do
Impacto Desproporcional foi citada no voto do min. Joaquim Barbosa, na mesma
ADI nº 4424:
‘que tal
teoria (do impacto desproporcional) consiste na ideia de que toda e qualquer
prática empresarial, política governamental ou semigovernamental, de cunho
legislativo ou administrativo, ainda que não provida de intenção
discriminatória no momento de sua concepção, deve ser condenada por violação do
princípio constitucional da igualdade material se, em consequência de sua
aplicação, resultarem efeitos nocivos de incidência especialmente
desproporcional sobre certas categorias de pessoas’.
O leading case
histórico sobre a teoria do impacto desproporcional é o caso Griggs versus Duke
Power Company. O caso trata, basicamente, de uma class action, ação movida por
uma pessoa representando várias, típica do direito norte-americano, em que
Willie Griggs ajuizou uma pretensão em favor dos empregados negros da empresa
Duke Power Company.
O autor
questionava, em síntese, a política de promoção da empresa que exigia dos
empregados diploma de conclusão do ensino médio e o alcance de uma pontuação
mínima em 02 (dois) testes de aptidão. Sustentava o autor que a exigência da
empresa violava o Título VII da Lei dos Direitos Civis de 1964, ao se impedir,
na prática, o acesso dos negros aos melhores postos de trabalho da empresa.
Ao analisar
esse caso, a Suprema Corte dos Estados Unidos firmou o posicionamento de que o
Titulo VII da Lei dos Direitos Civis buscava alcançar não apenas a igualdade
formal, mas também a igualdade material traduzida pela igualdade de
oportunidades de trabalho.
Sendo assim, a
Suprema Corte americana asseverou que os testes aplicados pela empresa impediam
que um número significativo e desproporcional de empregados negros tivesse
acesso aos departamentos mais bem remunerados da empresa, dado que no contexto
daquele período, os negros, dado anos e mais anos de segregação e acesso a
piores escolas, tinham, na prática, piores condições de estudo.
Dessa maneira,
concluiu-se que nem a exigência de graduação no ensino médio, nem a realização
dos 02 (dois) testes de aptidão foram direcionadas ou tiveram a intenção de
medir a habilidade dos empregados de aprender ou de executar um determinado
serviço. Ao contrário, a intenção da empresa, por meio de exigências
aparentemente neutras e razoáveis, na prática, redundava em discriminação, pois
o único intuito da empresa era salvaguardar sua política de dar preferência aos
brancos para a ocupação dos melhores postos de trabalho.” (Manual de
Humanística. Salvador: Juspodivm, 2023, p. 735-736)