domingo, 16 de abril de 2023
São inconstitucionais os §§ 3º e 4º do art. 28 do Estatuto da OAB, incluídos pela Lei 14.365/2022, que autorizavam que os policiais e os militares pudessem advogar em causa própria
O agente, o escrivão ou o delegado de polícia, se forem bacharéis
em direito e tiverem sido aprovados no exame da ordem, podem exercer a
advocacia?
NÃO. Existe
vedação expressa no Estatuto da OAB (Lei nº 8.906/94):
Art. 28. A advocacia é incompatível, mesmo em causa própria, com as
seguintes atividades:
(...)
V - ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a
atividade policial de qualquer natureza;
Os militares da Polícia Militar ou os militares das
Forças Armadas, se forem bacharéis em Direito e tiverem sido aprovados no exame
da ordem, podem exercer a advocacia?
Também não.
Isso porque também há vedação expressa no Estatuto da OAB para essa situação:
Art. 28. A advocacia é incompatível, mesmo em causa própria, com as
seguintes atividades:
(...)
VI - militares de qualquer natureza, na ativa;
Os
dois casos são hipóteses de incompatibilidade com a advocacia.
Incompatibilidade x impedimento
A Lei nº 8.906/94 prevê determinadas
situações em que a pessoa não poderá exercer a advocacia. Tais hipóteses são
divididas em dois grupos:
INCOMPATIBILIDADE |
IMPEDIMENTO |
Trata-se de uma proibição TOTAL. Isso significa que a pessoa não
poderá exercer a advocacia em nenhum caso. As hipóteses estão previstas no art.
28. Exs.: magistrados, membros do MP,
militares, policiais, gerentes de instituições financeiras. |
Trata-se de uma proibição PARCIAL. Isso significa que a pessoa não
poderá exercer a advocacia em determinadas situações. As hipóteses estão previstas no art.
30. Ex.: os servidores da administração
pública contra a Fazenda Pública que os remunere. |
Vejamos o rol
do art. 28:
Art. 28. A advocacia é incompatível, mesmo em causa própria, com as
seguintes atividades:
I - chefe do Poder Executivo e membros da Mesa do Poder Legislativo e
seus substitutos legais;
II - membros de órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos
tribunais e conselhos de contas, dos juizados especiais, da justiça de paz,
juízes classistas, bem como de todos os que exerçam função de julgamento em
órgãos de deliberação coletiva da administração pública direta e indireta;
III - ocupantes de cargos ou funções de direção em Órgãos da
Administração Pública direta ou indireta, em suas fundações e em suas empresas
controladas ou concessionárias de serviço público;
IV - ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a
qualquer órgão do Poder Judiciário e os que exercem serviços notariais e de
registro;
V - ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a
atividade policial de qualquer natureza;
VI - militares de qualquer natureza, na ativa;
VII - ocupantes de cargos ou funções que tenham competência de
lançamento, arrecadação ou fiscalização de tributos e contribuições
parafiscais;
VIII - ocupantes de funções de direção e gerência em instituições
financeiras, inclusive privadas.
Como vimos pela redação do caput do art. 28, se a pessoa
se enquadrar em uma situação de incompatibilidade, ela não poderá exercer a
advocacia nem mesmo em causa própria.
O que acontece com o advogado que passar a exercer uma atividade
incompatível com a advocacia?
• se ele passar a exercer essa atividade em caráter
definitivo: a inscrição será cancelada (art. 11, IV, da Lei nº 8.906/94). Ex:
um advogado que é nomeado e toma posse como magistrado.
• se ele passar a exercer essa atividade em caráter
temporário: ele ficará licenciado (art. 12, II). Ex: um advogado que assume o
cargo de Secretário de Estado.
Lei 14.365/2022: previu que os policiais e os militares
poderiam advogar em causa própria
A Lei nº 14.365/2022 alterou o Estatuto da OAB com o
objetivo de criar duas exceções ao que foi explicado acima em favor dos
policiais e militares.
A Lei nº 14.365/2022 previu que:
- os
ocupantes de cargos ou funções vinculados a atividade policial (inciso V do
art. 28) e
- os
militares (inciso VI do art. 28)
- poderiam
advogar em causa própria
- devendo
requerer, para isso, uma inscrição especial na OAB.
Confira os
dispositivos inseridos:
Art. 28 (...)
§ 3º As causas de incompatibilidade previstas nas hipóteses dos incisos
V e VI do caput deste artigo não se aplicam ao exercício da advocacia em causa
própria, estritamente para fins de defesa e tutela de direitos pessoais, desde
que mediante inscrição especial na OAB, vedada a participação em sociedade de
advogados. (Incluído pela Lei nº 14.365, de 2022)
§ 4º A inscrição especial a que se refere o § 3º deste artigo deverá
constar do documento profissional de registro na OAB e não isenta o
profissional do pagamento da contribuição anual, de multas e de preços de
serviços devidos à OAB, na forma por ela estabelecida, vedada cobrança em valor
superior ao exigido para os demais membros inscritos. (Incluído pela Lei nº
14.365, de 2022)
ADI
O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil –
CFOAB propôs ADI contra os §§ 3º e 4º do art. 28 da Lei nº 8.906/1994,
incluídos pela Lei nº 14.365/2022.
O autor afirmou que essa previsão viola os princípios da
isonomia, da moralidade, da eficiência e da supremacia do interesse público.
Alegou que as exceções criadas são injustificadas e que
os policiais e militares compõem a segurança pública e lidam diretamente com o
Poder Judiciário possuindo íntima proximidade com julgadores, acusadores,
serventuários, dentre outros personagens do processo, e, portanto, detêm
informações privilegiadas.
O STF concordou com os argumentos da OAB? Os dispositivos
impugnados foram declarados inconstitucionais?
SIM.
Restrições ao exercício da advocacia
O STF já decidiu, em outra oportunidade, que as
restrições impostas aos policiais e militares quanto ao exercício da advocacia
são compatíveis com a Constituição Federal:
A lei que veda o
exercício da atividade de advocacia por aqueles que desempenham, direta ou
indiretamente, atividade policial, não afronta o princípio da isonomia.
STF. Plenário.
ADI 3541/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 12/2/2014 (Info 735).
Isso porque as incompatibilidades têm a função de
resguardar a liberdade e a independência da atuação do advogado, afastando-se a
subordinação hierárquica ou o exercício de atividades de Estado que exijam a
imparcialidade em favor do interesse público na aplicação da lei.
O advogado é
indispensável à administração da Justiça (art. 133, CF/88), de modo que o seu
desempenho não pode ocorrer com sujeição a poderes hierárquicos próprios a
atividades e regulamentos militares, ou ainda a poderes hierárquicos
decorrentes da atividade policial civil:
Art. 133. O advogado é
indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e
manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.
Regimes jurídicos distintos
Os policiais e os militares estão sujeitos a regimes
jurídicos que são incompatíveis com o exercício simultâneo da advocacia, mesmo
que em causa própria.
Os policiais exercem atividades voltadas para a
preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio,
orientados pela busca imparcial da verdade dos fatos.
O militar da ativa tem como funções essenciais a
manutenção da ordem, da segurança e da soberania do país, subordinado à
estrutura hierarquizada e à disciplina na realização de tarefas submetidas a
ordens de comando.
Não há possibilidade de se conciliarem essas atividades
com o exercício da advocacia, ainda que na atuação em causa própria, sem que
ocorram conflitos de interesses e a derrogação de regimes jurídicos pertinentes
a cada carreira em particular
As funções estatais relacionadas à preservação da
segurança pública e da paz social por eles exercidas propiciam uma influência indevida
e privilégios de acesso a autos de inquéritos e processos, entre outras
vantagens que desequilibram a relação processual. Assim, a incompatibilidade
constitui medida legal que objetiva impedir abusos, tráfico de influência ou
práticas que coloquem em risco a independência e a liberdade da advocacia.
Além disso, a inscrição especial a que se referem os
questionados §§ 3º e 4º do art. 28 da Lei nº 8.906/94, incluídos pela Lei nº
14.365/2022, resulta na criação de uma classe de advogados que possui capacidade
postulatória, mas destituída de todas as prerrogativas inerentes ao exercício
da advocacia. Isso é inconciliável com a liberdade e a independência de atuação
do advogado prevista no art. 7º da Lei nº 8.906/94.
A questão remuneratória das carreiras policiais e
militares não constitui critério válido constitucionalmente para autorização do
exercício da advocacia, em contrariedade ao sistema normativo constitucional
vigente, consistindo em privilégio para determinados servidores públicos sem
adoção de fator de discrímen razoável e juridicamente aceitável.
Concluiu-se, portanto, que o legislador elegeu critério
de diferenciação compatível com o princípio constitucional da isonomia, ante as
peculiaridades inerentes ao exercício da profissão de advogado e das atividades
policiais de qualquer natureza.
Em suma:
É
inconstitucional — por ofensa aos princípios da isonomia, da moralidade e da
eficiência administrativa — norma que permite o exercício da advocacia em causa
própria, mediante inscrição especial na OAB, aos policiais e militares da
ativa, ainda que estritamente para fins de defesa e tutela de direitos
pessoais.
STF. Plenário.
ADI 7227/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 20/03/2023 (Info 1087).
Com base nesses entendimentos, o Plenário, por unanimidade,
converteu a apreciação da medida cautelar em julgamento de mérito e julgou
procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade dos §§ 3º e 4º do art.
28 da Lei nº 8.906/94, incluídos pela Lei nº 14.365/2022.
Outros julgados
O STF já havia se manifestado, recentemente, sobre as
incompatibilidades previstas no Estatuto da OAB:
São
constitucionais as restrições ao exercício da advocacia aos servidores do Poder
Judiciário e do Ministério Público, previstas nos arts. 28, IV, e 30, I, da Lei
nº 8.906/94, e no art. 21 da Lei nº 11.415/2006 (atual art. 21 da Lei nº
13.316/2015).
STF. Plenário.
ADI 5235/DF, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 11/6/2021 (Info 1021).
É constitucional
a Resolução 27/2008, do CNMP, que proíbe que os servidores do Ministério Público
exerçam advocacia.
O CNMP possui
capacidade para a expedição de atos normativos autônomos (art. 130-A, § 2º, I,
da CF/88), desde que o conteúdo disciplinado na norma editada se insira no seu
âmbito de atribuições constitucionais.
A Resolução
27/2008 do CNMP tem por objetivo assegurar a observância dos princípios
constitucionais da isonomia, da moralidade e da eficiência no Ministério
Público, estando, portanto, abrangida pelo escopo de atuação do CNMP (art.
130-A, § 2º, II).
A liberdade de
exercício profissional não é um direito absoluto, devendo ser interpretada
dentro do sistema constitucional como um todo. A vedação do exercício da
advocacia por determinadas categorias funcionais apresenta-se em conformidade
com a Constituição Federal, devendo-se proceder a um juízo de ponderação entre
os valores constitucionais eventualmente conflitantes.
STF. Plenário.
ADI 5454, Rel. Alexandre de Moraes, julgado em 15/04/2020 (Info 978).