segunda-feira, 10 de abril de 2023
Poder Judiciário não pode determinar a lotação de Defensor Público em desacordo com os critérios previamente definidos pela própria instituição
A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:
O Ministério Público estadual ajuizou ação civil pública
contra o Estado do Ceará exigindo o preenchimento do cargo de Defensor Público
na Comarca de Jati (CE).
O Juízo de 1º grau julgou o pedido procedente.
O Estado-membro interpôs apelação.
O Tribunal de Justiça reformou a sentença por entender incabível
que ato do Poder Judiciário determine a nomeação ou remoção de membros da
Defensoria Pública diante da independência organizacional da instituição.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso
extraordinário.
O STF concordou e deu provimento ao recurso do Ministério
Público?
NÃO.
A Defensoria
Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado Democrático de
Direito (art. 134, CF/88), uma vez que promove a efetivação dos direitos
fundamentais, notadamente para a igualdade e a dignidade de pessoas
hipossuficientes, assim como o acesso à Justiça. Nesse sentido, confira a
redação do caput do art. 134:
Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à
função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do
regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos
direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos
direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos
necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014)
(...)
O acesso à Justiça é um direito individual e social de
primeira grandeza. A efetividade do acesso à Justiça é pressuposto para que a
pessoa possa ter a garantia de gozo dos outros direitos, os quais dependem de
mecanismos que garantam a sua proteção.
A Defensoria Pública, ao lado do Ministério Público e da
advocacia pública e privada, é instituição essencial à função jurisdicional do
Estado, o que justifica a atribuição dessa autonomia às defensorias.
Não por outro motivo, a Assembleia Geral da Organização
dos Estados Americanos – OEA aprovou a Resolução nº 2.656, de 7 de junho de
2014, que trata das “garantias de acesso à justiça: o papel dos defensores
públicos oficiais”. Essa resolução foi o primeiro documento normativo aprovado
pela OEA sobre o acesso à justiça como um direito autônomo. O documento
reconhece, ainda, que a Defensoria Pública é a instituição eficaz para a
garantia desse direito, sobretudo para as pessoas em situação de especial
vulnerabilidade.
Um dos pontos contidos na resolução é a recomendação aos
Estados membros da OEA que já contam com o serviço de assistência jurídica
gratuita para que adotem medidas que garantam independência e autonomia
funcional aos Defensores Públicos.
O Brasil,
dando cumprimento a essas diretrizes estabelecidas pela OEA, aprovou a EC 80,
de 4/6/2014, que inseriu o art. 98 no ADCT com a seguinte redação:
Art. 98. O número de defensores públicos na unidade jurisdicional será
proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à
respectiva população. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014)
§ 1º No prazo de 8 (oito) anos*, a União, os Estados e o Distrito
Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades
jurisdicionais, observado o disposto no caput deste artigo. (Incluído pela
Emenda Constitucional nº 80, de 2014)
§ 2º Durante o decurso do prazo previsto no § 1º deste artigo, a lotação
dos defensores públicos ocorrerá, prioritariamente, atendendo as regiões com
maiores índices de exclusão social e adensamento populacional. (Incluído pela Emenda
Constitucional nº 80, de 2014)
Essa emenda ficou conhecida no mundo jurídico como “PEC
Defensoria Para Todos”, “PEC das Comarcas” ou “PEC das Defensorias Públicas”,
pois obriga os entes federativos brasileiros a, no prazo de 8 anos,
disponibilizar Defensores Públicos para a população em todas as unidades
jurisdicionais, observada a proporcionalidade da efetiva demanda pelo serviço
da Defensoria Pública com a respectiva população.
A partir da EC 80/2014, foi assegurado à Defensoria
Pública o poder de autogoverno na tomada de decisões, razão pela qual lhe cabe,
por meio de seus órgãos de direção, decidir onde deve lotar os seus membros,
com a devida observância aos critérios por ela mesma preestabelecidos, em
atenção especial à efetiva demanda, à cobertura populacional e à
hipossuficiência de seus assistidos.
Assim, qualquer medida normativa ou judicial que suprima
essa autonomia da Defensoria Pública implicará ofensa constitucional.
Em suma:
É
inconstitucional — por violar a autonomia administrativa da Defensoria Pública
— a imposição, por via judicial, de lotação de defensor público em divergência
com os critérios prefixados pela própria instituição, quando estes já
considerem a proporcionalidade da efetiva demanda de seus serviços e a
respectiva população na unidade jurisdicional, com prioridade de atendimento às
regiões com maiores índices de exclusão social e adensamento populacional.
STF. Plenário.
RE 887.671/CE, Rel. Min. Marco Aurélio, redator do acórdão Min. Ricardo
Lewandowski, julgado em 08/03/2023 (Repercussão Geral – Tema 847) (Info 1086).
Tese fixada pelo STF:
Ofende a
autonomia administrativa das Defensorias Públicas decisão judicial que
determine a lotação de defensor público em localidade desamparada, em desacordo
com os critérios previamente definidos pela própria instituição, desde que
observados os critérios do art. 98, caput
e § 2º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT.
STF. Plenário.
RE 887.671/CE, Rel. Min. Marco Aurélio, redator do acórdão Min. Ricardo
Lewandowski, julgado em 08/03/2023 (Repercussão Geral – Tema 847) (Info 1086).
Com base nesse entendimento, o Plenário, por maioria, ao
apreciar o Tema 847 da repercussão geral, negou provimento ao recurso
extraordinário, mantendo o acórdão recorrido. Por unanimidade, o Tribunal fixou
a tese supracitada.
* Obs: o prazo de 8 anos previsto no § 1º do art. 98 do
ADCT da CF/88 esgotou-se em junho de 2022.
DOD Plus –
julgado correlato
Poder Judiciário não pode impor a nomeação de Defensores
Públicos para atuar em processos da Justiça Militar em discordância dos
critérios de alocação de pessoal do órgão
Ao impor a
nomeação de Defensores para atuar em processos na Justiça Militar do Distrito
Federal, em discordância com critérios de alocação de pessoal previamente
aprovados pelo Conselho Superior da Defensoria Pública do DF, a autoridade
judiciária interfere na autonomia funcional e administrativa do órgão.
Reconhecida a
inexistência de profissionais concursados em número suficiente para atender
toda a população do DF, os critérios indicados pelo Conselho Superior da
Defensoria Pública do DF para a alocação e distribuição dos Defensores Públicos
(locais de maior concentração populacional e de maior demanda, faixa salarial familiar
até 5 salários mínimos) revestem-se de razoabilidade.
STJ. 5ª Turma. RMS 59.413-DF, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca,
julgado em 07/05/2019 (Info 648).