Imagine a seguinte situação adaptada:
João, dirigindo seu veículo, parou
na cancela de entrada do estacionamento do shopping center para apertar no
botão e pegar o ticket de pagamento.
Neste momento, foi assaltado por um
indivíduo que, portando arma de fogo, ordenou que a vítima abaixasse o vidro.
João obedeceu e abriu a janela do
veículo. O indivíduo exigiu o relógio, o celular e a carteira de João, que
foram entregues.
Vale ressaltar que, durante todo
o ocorrido, não havia qualquer agente de segurança no local.
João registrou a ocorrência na
polícia e ajuizou ação de indenização por danos morais e materiais contra a
empresa administradora do shopping e contra a empresa responsável pelo
estacionamento.
O autor alegou que:
• a relação entre ele e o
shopping center é de consumo, de forma que a responsabilidade é objetiva;
• houve defeito na prestação do
serviço (art. 12 do CDC).
Contestação
As empresas contestaram afirmando
que:
• o evento ocorreu na cancela de entrada
do estacionamento, em via pública, ou seja, além dos limites de proteção do
estabelecimento;
• não houve falha na prestação do
serviço;
• segundo a Súmula 130 do STJ,
somente haveria o dever de indenizar se tivesse ocorrido um furto ou dano no
interior do estacionamento. No caso, foi um roubo e que se deu na área
limítrofe do shopping;
• não houve dano moral.
O juiz julgou os pedidos
procedentes.
As empresas rés interpuseram
apelação, mas o Tribunal de Justiça manteve a sentença.
Ainda inconformadas, as empresas
ingressaram com recurso especial insistindo nos argumentos já expostos.
O STJ manteve a condenação?
O shopping center e a empresa de estacionamento vinculado a ele têm o dever de
indenizar esse consumidor?
SIM.
Na hipótese de se exigir do
consumidor determinada conduta para que usufrua do serviço prestado pela
fornecedora, colocando-o em vulnerabilidade não só jurídica, mas sobretudo
fática, ainda que momentaneamente, se houver falha na prestação do serviço,
será o fornecedor obrigado a indenizá-lo.
Nessa linha de raciocínio, quando
o consumidor, com a finalidade de ingressar no estacionamento de shopping
center, tem de reduzir a velocidade ou até mesmo parar seu veículo e se
submeter à cancela - barreira física imposta pelo fornecedor e em seu benefício
- incide a proteção consumerista, ainda que o consumidor não tenha ultrapassado
referido obstáculo e mesmo que este esteja localizado na via pública.
Nessa hipótese, o consumidor se
encontra, de fato, na área de prestação do serviço oferecido pelo
estabelecimento comercial. Por conseguinte, também nessa área incidem os
deveres inerentes às relações consumeristas e ao fornecimento de segurança
indispensável que se espera dos estacionamentos de shoppings centers.
O STJ analisou situação parecida,
na qual o consumidor que se encontrava dentro de estacionamento de shopping
center, ao parar na cancela para sair do referido estabelecimento, foi
surpreendido pela abordagem de indivíduos com arma de fogo que tentaram
subtrair seus pertences:
O shopping center deve reparar o cliente pelos danos morais
decorrentes de tentativa de roubo, não consumado apenas em razão de comportamento
do próprio cliente, ocorrida nas proximidades da cancela de saída de seu
estacionamento, mas ainda em seu interior.
STJ. 4ª Turma. REsp 1269691-PB, Rel. originária Min. Isabel
Gallotti, Rel. para acórdão Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 21/11/2013
(Info 534).
Da mesma maneira como sucede com
a saída, o consumidor também está sujeito a tal vulnerabilidade ao ingressar no
estabelecimento. É necessário que aquele, a fim de utilizar o serviço oferecido
pelo shopping, permaneça - ainda que por pouco tempo - desprotegido ao
esperar a emissão do ticket e o levantamento da cancela.
A única razão para que o
consumidor permaneça desprotegido, aguardando a abertura da cancela, é,
justamente, para ingressar no estabelecimento do fornecedor. Logo, não pode o shopping
center buscar afastar sua responsabilidade por aquilo que criou para se
beneficiar e que também lhe incumbe proteger, sob pena de violar até mesmo o
comando da boa-fé objetiva e o princípio da proteção contratual do consumidor.
Em síntese, o shopping center
e o estacionamento vinculado podem ser responsabilizados por defeitos na
prestação do serviço não só quando o consumidor se encontra efetivamente dentro
da área assegurada, mas também quando se submete à cancela para ingressar no
estabelecimento comercial.
Não é possível, nesta
situação, alegar caso fortuito para excluir o dever de indenizar
A culpa exclusiva de terceiros
somente elide (elimina) a responsabilidade objetiva do fornecedor se for uma
situação de “fortuito externo”. Se o caso for de “fortuito interno”, persiste a
obrigação de indenizar. Mas qual é a diferença entre esses dois conceitos?
FORTUITO INTERNO |
FORTUITO EXTERNO |
Está relacionado com a organização da empresa. É um fato ligado aos riscos da atividade desenvolvida
pelo fornecedor. |
Não está relacionado com a organização da empresa. É um fato que não guarda nenhuma relação de
causalidade com a atividade desenvolvida pelo fornecedor. É uma situação absolutamente estranha ao produto ou
ao serviço fornecido. |
Ex1: o estouro de um pneu do ônibus da empresa de
transporte coletivo; Ex2: cracker invade
o sistema do banco e consegue transferir dinheiro da conta de um cliente. Ex3: durante o transporte da matriz para uma das
agências, ocorre um roubo e são subtraídos diversos talões de cheque
(trata-se de um fato que se liga à organização da empresa e aos riscos da
própria atividade desenvolvida). |
Ex1: assalto à mão armada no interior de ônibus
coletivo (não é parte da organização da empresa de ônibus garantir a
segurança dos passageiros contra assaltos); Ex2: um terremoto faz com que o telhado do banco
caia, causando danos aos clientes que lá estavam. |
O fortuito interno NÃO exclui a obrigação do
fornecedor de indenizar o consumidor. |
O fortuito externo é uma causa excludente de
responsabilidade. |
No que tange especificamente à
responsabilidade de shoppings centers, o STJ, “conferindo interpretação
extensiva à Súmula n. 130/STJ, entende que estabelecimentos comerciais, tais
como grandes shoppings centers e hipermercados, ao oferecerem estacionamento,
ainda que gratuito, respondem pelos assaltos à mão armada praticados contra os
clientes quando, apesar de o estacionamento não ser inerente à natureza do
serviço prestado, gera legítima expectativa de segurança ao cliente em troca
dos benefícios financeiros indiretos decorrentes desse acréscimo de conforto
aos consumidores” (EREsp 1.431.606/SP, Segunda Seção, DJe 2/5/2019) - com
exceção da hipótese em que o estacionamento representa “mera comodidade, sendo
área aberta, gratuita e de livre acesso por todos”.
Com efeito, não há dúvida de que
a empresa que agrega ao seu negócio um serviço visando à comodidade e à
segurança do cliente deve responder por eventuais defeitos ou deficiências na
sua prestação. Afinal, serviços dessa natureza não têm outro objetivo senão
atrair um número maior de consumidores ao estabelecimento, incrementando o
movimento e, por via de consequência, o lucro, devendo o fornecedor, portanto,
suportar os ônus respectivos.
Nos termos expostos, pode-se
concluir que o shopping center que oferece estacionamento responde por roubo
perpetrado por terceiro à mão armada ocorrido na cancela para ingresso no
estabelecimento, uma vez que gerou no consumidor expectativa legítima de
segurança em troca dos benefícios financeiros que percebera indiretamente.
Em suma:
O shopping center e o estacionamento
vinculado a ele podem ser responsabilizados por roubo à mão armada ocorrido na
cancela para ingresso no estabelecimento comercial, em via pública.
STJ. 3ª
Turma. REsp 2.031.816-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 14/3/2023 (Info
767).
DOD Plus –
informações complementares
Temas correlatos
A questão envolvendo furtos e roubos e responsabilidade
civil do fornecedor é repleta de casos interessantes e nem sempre a solução
dada é a mesma. Veja esse quadro com algumas situações já enfrentadas pela jurisprudência
do STJ:
Situação |
Fornecedor responde? |
Explicação |
Furto ou roubo no cofre
do banco que estava locado para guardar bens de cliente. |
SIM |
O roubo ou furto
praticado contra instituição financeira e que atinge o cofre locado ao
cliente constitui risco assumido pelo banco, sendo algo próprio da atividade
empresarial, configurando, assim, hipótese de fortuito interno, que não
exclui o dever de indenizar (REsp 1250997/SP, DJe 14/02/2013). |
Cliente roubado no
interior da agência bancária. |
SIM |
Há responsabilidade
objetiva do banco em razão do risco inerente à atividade bancária (art. 927,
p. ún., CC e art. 14, CDC) (REsp 1.093.617-PE, DJe 23/03/2009). |
Cliente roubado na rua,
após sacar dinheiro na agência. |
NÃO |
Se o roubo ocorre em via
pública, é do Estado (e não do banco) o dever de garantir a segurança dos
cidadãos e de evitar a atuação dos criminosos (REsp 1.284.962-MG, DJe
04/02/2013). |
Cliente roubado no
estacionamento do banco. |
SIM |
O estacionamento pode
ser considerado como uma extensão da própria agência (REsp 1.045.775-ES, DJe
04/08/2009). |
Roubo ocorrido no
estacionamento privado que é oferecido pelo banco aos seus clientes e
administrado por uma empresa privada. |
SIM |
Tanto
o banco como a empresa de estacionamento têm responsabilidade civil,
considerando que, ao oferecerem tal serviço especificamente aos clientes do
banco, assumiram o dever de segurança em relação ao público em geral (Lei
7.102/1983), dever este que não pode ser afastado por fato doloso de
terceiro. Logo, não se admite a alegação de caso fortuito ou força maior já
que a ocorrência de tais eventos é previsível na atividade bancária (AgRg nos
EDcl no REsp 844186/RS, DJe 29/06/2012). |
Passageiro roubado no interior
do transporte coletivo (exs.: ônibus, trem etc.). |
NÃO |
Constitui causa
excludente da responsabilidade da empresa transportadora o fato inteiramente
estranho ao transporte em si, como é o assalto ocorrido no interior do
coletivo (AgRg no Ag 1389181/SP, DJe 29/06/2012). |
Cliente roubado no posto
de gasolina enquanto abastecia seu veículo. |
NÃO |
Tratando-se de postos de
combustíveis, a ocorrência de roubo praticado contra clientes não pode ser
enquadrado, em regra, como um evento que esteja no rol de responsabilidades
do empresário para com os clientes, sendo essa situação um exemplo de caso
fortuito externo, ensejando-se, por conseguinte, a exclusão da
responsabilidade (REsp 1243970/SE, DJe 10/05/2012). |
Roubo ocorrido em
veículo sob a guarda de vallet parking que
fica localizado em via pública. |
NÃO |
No serviço de manobrista
em via pública não existe exploração de estacionamento cercado com grades,
mas simples comodidade posta à disposição do cliente. Logo, as exigências de
garantia da segurança física e patrimonial do consumidor são menos
contundentes do que aquelas atinentes aos estacionamentos de shopping centers
e hipermercados (REsp 1.321.739-SP, DJe 10/09/2013). |
Furto
ocorrido em veículo sob a guarda de vallet
parking que fica localizado em via pública. |
SIM |
Nas hipóteses de furto,
em que não há violência, permanece a responsabilidade, pois o serviço
prestado mostra-se defeituoso, por não apresentar a segurança legitimamente
esperada pelo consumidor. |
Furto
ou roubo ocorrido em veículo sob a guarda de vallet parking localizado dentro do shopping center. |
SIM |
A ocorrência de roubo
não constitui causa excludente de responsabilidade civil nos casos em que a
garantia de segurança física e patrimonial do consumidor é inerente ao
serviço prestado pelo estabelecimento comercial. |
Tentativa
de roubo ocorrida na cancela do estacionamento do shopping center. |
SIM |
A
ocorrência de roubo não constitui causa excludente de responsabilidade civil
nos casos em que a garantia de segurança física e patrimonial do consumidor é
inerente ao serviço prestado pelo estabelecimento comercial (REsp 1269691/PB,
DJe 05/03/2014). |
Roubo
ocorrido na cancela para ingresso no estacionamento do shopping center,
ainda em via pública. |
SIM |
O
shopping center e a empresa administradora do estacionamento são responsáveis
por indenizar o consumidor vítima de roubo à mão armada ocorrido na cancela
para ingresso no estacionamento, ainda em via pública (REsp 2.031.816-RJ, DJe 16/03/2023). |
Roubo
ocorrido em estacionamento externo e gratuito de lanchonete. |
NÃO |
Constitui
verdadeira hipótese de caso fortuito
(ou motivo de força maior), de forma que não se aplica a Súmula 130 do STJ. |
Roubo
ocorrido no drive-thru da lanchonete |
SIM |
A
lanchonete, ao disponibilizar o serviço de drive-thru em troca dos benefícios
financeiros indiretos decorrentes desse acréscimo de conforto aos
consumidores, assumiu o dever implícito de lealdade e segurança. STJ.
4ª Turma. REsp 1.450.434-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em
18/09/2018 (Info 637). |
Roubo
ocorrido em estacionamento público localizado em frente à supermercado |
NÃO |
Constitui
verdadeira hipótese de caso fortuito
(ou motivo de força maior), de forma que não se aplica a Súmula 130 do STJ. |