Imagine
a seguinte situação hipotética:
No dia 07 de junho
de 2016, um veículo da Transportadora Alfa Ltda. foi autuado por ter dificultado
a fiscalização que seria exercida na carga. Trata-se de infração administrativa
que, na época, era prevista no art. 36, I, da Resolução nº 4.799/2015*, da
Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT):
Art.
36. Constituem infrações, quando:
I
- o transportador, inscrito ou não no RNTRC, evadir, obstruir ou, de qualquer
forma, dificultar a fiscalização durante o transporte rodoviário de cargas: multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais);
A
Transportadora ingressou com ação anulatória em face da ANTT pedindo a anulação
do auto de infração em virtude de vícios formais.
Durante
o curso do processo judicial, já depois do despacho de saneamento, a autora
peticionou nos autos informando que que havia entrado em vigor a Resolução ANTT
nº 5.847/2019, que tinha alterado a redação do art. 36, I, da Resolução
4.799/2015, reduzindo o valor da multa para R$ 550,00.
Diante
disso, a autora defendeu que, se fosse mantida a autuação, o valor da multa
deveria ser reduzido para R$ 550,00, em atenção ao princípio da retroatividade
da lei mais benéfica.
O juiz julgou os
pedidos improcedentes. O magistrado assim fundamentou a sentença:
“(...) no que se refere à tese de aplicação
retroativa da Resolução ANTT nº 5.847, que alterou a redação do artigo 36,
inciso I da Resolução 4.799/2015, estipulando a multa no valor de R$ 550,00,
ressalto que ela também não merece acolhida.
E isso porque, em se tratando de matéria de natureza
administrativa, ou seja, que não diz respeito à aplicação de penalidades
no âmbito penal, tributário, ou, ainda, a outras matérias em relação às quais
exista previsão específica de retroatividade das normas ulteriores mais
benéficas, deve imperar o
princípio da imutabilidade do ato jurídico perfeito, consoante dispõe o
art. 6º, I, c/c § 1º, do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro) (...)”
Para
o STJ, agiu corretamente o magistrado?
NÃO.
O art. 5º, XL, da
CF/88 prevê que:
Art.
5º (...)
XL
- a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;
Para o STJ, é possível extrair do art. 5º,
XL, da Constituição da República princípio implícito do Direito Sancionatório,
qual seja: a lei mais benéfica retroage. Isso porque, se até no caso de sanção
penal, que é a mais grave das punições, a Lei Maior determina a retroação da
lei mais benéfica, com razão é cabível a retroatividade da lei no caso de
sanções menos graves, como a administrativa.
Assim, a norma mais benéfica retroage para
beneficiar o infrator, mesmo nos casos em que a sanção aplicada tenha natureza
administrativa.
Por este motivo, afigura-se possível a
redução do valor da multa administrativa aplicada quando houver a
superveniência de norma que comine penalidade mais benéfica para a infração em
questão.
Seria possível reconhecer essa
alteração mais benéfica mesmo já tendo ocorrido o saneamento do processo?
SIM.
O pedido de redução
da multa pode ser conhecido mesmo tendo sido formulado após o saneamento dos
autos. Isso porque, o art. 322, §2º, do CPC, determina que o pedido deve ser interpretado
de acordo com o conjunto da postulação e com o princípio da boa-fé:
Art.
322. (...)
§
2º A interpretação do pedido considerará o conjunto da postulação e observará o
princípio da boa-fé.
A autora, em sua petição inicial, pleiteou a
anulação do auto de infração e do processo administrativo, pedido este
claramente mais amplo e que contém, ainda que implicitamente, o de redução da
multa aplicada. Se, com base no pedido feito pela parte autora, o órgão
jurisdicional está autorizado a declarar a nulidade do ato administrativo
sancionatório, poderá também reduzir a multa aplicada, já que quem pode o mais,
pode o menos.
O fato de tal
alegação ter sido apresentada após a estabilização da demanda também não é um
óbice para o seu conhecimento, pois o art. 493, do CPC, permite que ocorra a
ampliação superveniente da causa de pedir em caso de fato novo constitutivo,
modificativo ou extintivo do direito da parte:
Art.
493. Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo
ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo
em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a
decisão.
Parágrafo
único. Se constatar de ofício o fato novo, o juiz ouvirá as partes sobre ele
antes de decidir.
Em
suma:
STJ. 1ª
Turma. AgInt no REsp 2.024.133-ES, Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em
13/3/2023 (Info 769).
*
apenas a título de informação, a Resolução nº 4.799/2015 não está, atualmente,
em vigor, tendo sido revogada pela Resolução DC/ANTT nº 5982, de 23/06/2022.
Márcio André Lopes Cavalcante