Dizer o Direito

sábado, 29 de abril de 2023

O raciocínio do art. 5º, XL, da CF, que prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal benéfica, também se aplica para o Direito Sancionatório

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

No dia 07 de junho de 2016, um veículo da Transportadora Alfa Ltda. foi autuado por ter dificultado a fiscalização que seria exercida na carga. Trata-se de infração administrativa que, na época, era prevista no art. 36, I, da Resolução nº 4.799/2015*, da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT):

Art. 36. Constituem infrações, quando:

I - o transportador, inscrito ou não no RNTRC, evadir, obstruir ou, de qualquer forma, dificultar a fiscalização durante o transporte rodoviário de cargas: multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais);

 

A Transportadora ingressou com ação anulatória em face da ANTT pedindo a anulação do auto de infração em virtude de vícios formais.

Durante o curso do processo judicial, já depois do despacho de saneamento, a autora peticionou nos autos informando que que havia entrado em vigor a Resolução ANTT nº 5.847/2019, que tinha alterado a redação do art. 36, I, da Resolução 4.799/2015, reduzindo o valor da multa para R$ 550,00.

Diante disso, a autora defendeu que, se fosse mantida a autuação, o valor da multa deveria ser reduzido para R$ 550,00, em atenção ao princípio da retroatividade da lei mais benéfica.

O juiz julgou os pedidos improcedentes. O magistrado assim fundamentou a sentença:

“(...) no que se refere à tese de aplicação retroativa da Resolução ANTT nº 5.847, que alterou a redação do artigo 36, inciso I da Resolução 4.799/2015, estipulando a multa no valor de R$ 550,00, ressalto que ela também não merece acolhida.

E isso porque, em se tratando de matéria de natureza administrativa, ou seja, que não diz respeito à aplicação de penalidades no âmbito penal, tributário, ou, ainda, a outras matérias em relação às quais exista previsão específica de retroatividade das normas ulteriores mais benéficas, deve imperar o princípio da imutabilidade do ato jurídico perfeito, consoante dispõe o art. 6º, I, c/c § 1º, do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) (...)”

 

Para o STJ, agiu corretamente o magistrado?

NÃO.

O art. 5º, XL, da CF/88 prevê que:

Art. 5º (...)

XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

 

Para o STJ, é possível extrair do art. 5º, XL, da Constituição da República princípio implícito do Direito Sancionatório, qual seja: a lei mais benéfica retroage. Isso porque, se até no caso de sanção penal, que é a mais grave das punições, a Lei Maior determina a retroação da lei mais benéfica, com razão é cabível a retroatividade da lei no caso de sanções menos graves, como a administrativa.

Assim, a norma mais benéfica retroage para beneficiar o infrator, mesmo nos casos em que a sanção aplicada tenha natureza administrativa.

Por este motivo, afigura-se possível a redução do valor da multa administrativa aplicada quando houver a superveniência de norma que comine penalidade mais benéfica para a infração em questão.

 

Seria possível reconhecer essa alteração mais benéfica mesmo já tendo ocorrido o saneamento do processo?

SIM.

O pedido de redução da multa pode ser conhecido mesmo tendo sido formulado após o saneamento dos autos. Isso porque, o art. 322, §2º, do CPC, determina que o pedido deve ser interpretado de acordo com o conjunto da postulação e com o princípio da boa-fé:

Art. 322. (...)

§ 2º A interpretação do pedido considerará o conjunto da postulação e observará o princípio da boa-fé.

 

A autora, em sua petição inicial, pleiteou a anulação do auto de infração e do processo administrativo, pedido este claramente mais amplo e que contém, ainda que implicitamente, o de redução da multa aplicada. Se, com base no pedido feito pela parte autora, o órgão jurisdicional está autorizado a declarar a nulidade do ato administrativo sancionatório, poderá também reduzir a multa aplicada, já que quem pode o mais, pode o menos.

O fato de tal alegação ter sido apresentada após a estabilização da demanda também não é um óbice para o seu conhecimento, pois o art. 493, do CPC, permite que ocorra a ampliação superveniente da causa de pedir em caso de fato novo constitutivo, modificativo ou extintivo do direito da parte:

Art. 493. Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão.

Parágrafo único. Se constatar de ofício o fato novo, o juiz ouvirá as partes sobre ele antes de decidir.

 

Em suma:

 

* apenas a título de informação, a Resolução nº 4.799/2015 não está, atualmente, em vigor, tendo sido revogada pela Resolução DC/ANTT nº 5982, de 23/06/2022.

 

Márcio André Lopes Cavalcante

 

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