Imagine a seguinte situação
hipotética:
João, é servidor público aposentado e vive unicamente com os proventos
advindos de sua aposentadoria.
Ao longo dos últimos anos, João fez inúmeros empréstimos consignados e
contraiu dívidas em seus cartões de crédito, que comprometem mensalmente a
quantia de R$ 10 mil.
Vale ressaltar que a aposentadoria de João é de R$ 11 mil.
Ele alega que suas despesas essenciais para sobrevivência perfazem R$
4 mil.
Superendividamento
Logo, João encontra-se impossibilitado de pagar suas dívidas
sem comprometer o seu mínimo existencial, enquadrando-se, portanto, no conceito
de superendividado, nos termos do art. 54-A, §1º, do CDC:
Art. 54-A. Este Capítulo dispõe
sobre a prevenção do superendividamento da pessoa natural, sobre o crédito
responsável e sobre a educação financeira do consumidor. (Incluído pela Lei nº
14.181, de 2021)
§ 1º Entende-se por
superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural,
de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e
vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da
regulamentação. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
§ 2º As dívidas referidas no § 1º
deste artigo englobam quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes
de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e
serviços de prestação continuada. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
§ 3º O disposto neste Capítulo
não se aplica ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante
fraude ou má-fé, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o
propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação
de produtos e serviços de luxo de alto valor. (Incluído pela Lei nº 14.181, de
2021)
Ocorre o superendividamento quando...
- o consumidor pessoa física
- que está de boa-fé
- não consegue pagar a totalidade
de suas dívidas de consumo (exigíveis e vincendas)
- sem comprometer o seu mínimo
existencial.
O superendividamento está diretamente relacionado com o
mínimo existencial do indivíduo, conforme explicam Pablo Stolze e Carlos
Eduardo Elias de Oliveira:
“O
superendividamento contém traços de uma morte civil social. O indivíduo com o
“nome sujo” e sem margem de crédito tende ao ostracismo. Não consegue montar
novos negócios. Enfrenta estigmas ao buscar emprego. Sujeita-se a viver “de
favor”. Enfim, o superendividamento pode levar o indivíduo a um estado de
desesperança e, nas palavras de Raul Seixas, na música Ouro de Tolo, ficar
sentado ‘no trono de um apartamento, com a boca escancarada cheia de dentes,
esperando a morte chegar’.
O motivo é que
o superendividamento fulmina o mínimo existencial do indivíduo.” (GAGLIANO,
Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Comentários à Lei do
Superendividamento (Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021) e o princípio do
crédito responsável. Uma primeira análise. Revista Jus Navigandi, ISSN
1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6575, 2 jul. 2021. Disponível em:
https://jus.com.br/artigos/91675. Acesso em: 2 jul. 2021).
Processo de repactuação de dívidas (art. 104-A do CDC)
A requerimento do consumidor
superendividado pessoa natural, o juiz poderá instaurar processo de repactuação
de dívidas.
Será, então, designada audiência
conciliatória, presidida pelo juiz ou por conciliador credenciado no juízo, com
a presença de todos os credores.
Na audiência, o consumidor
apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 anos,
preservados o mínimo existencial, as garantias e as formas de pagamento
originalmente pactuadas.
O pedido do consumidor para
instaurara processo de repactuação:
·
não importará em declaração de insolvência civil; e
·
poderá ser repetido somente após decorrido o prazo de 2 anos, contado da
liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado, sem
prejuízo de eventual repactuação.
Conteúdo do plano de
pagamento
Deverão constar no plano de
pagamento:
I - medidas de dilação dos prazos
de pagamento e de redução dos encargos da dívida ou da remuneração do
fornecedor, entre outras destinadas a facilitar o pagamento da dívida;
II - referência à suspensão ou à
extinção das ações judiciais em curso;
III - data a partir da qual será
providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de
inadimplentes;
IV - condicionamento de seus
efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento
de sua situação de superendividamento.
Não havendo êxito na
conciliação (art. 104-B)
Se não houver êxito na
conciliação em relação a quaisquer credores, o juiz, a pedido do consumidor,
instaurará processo por superendividamento com a finalidade de:
·
revisão e integração dos contratos; e
·
repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório.
Nesse caso, o juiz fará a citação
de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura
celebrado.
Serão considerados no processo
por superendividamento, se for o caso, os documentos e as informações prestadas
em audiência.
Depois de citados, os credores
terão o prazo de 15 dias para:
·
juntar documentos e
·
apresentar as razões pelas quais se negam a aceder (anuir) ao plano voluntário
ou se negam a renegociar.
Voltando ao caso concreto:
João ingressou com ação de repactuação de dívidas contra as
instituições financeiras para os quais deve, quais sejam: Caixa Econômica
Federal, BMG, Banco Pan e Banco Santander.
Com a inicial, foi apresentada proposta de plano de pagamento, nos
termos do art. 104-A, caput, do CDC, por meio do qual João propôs que as
dívidas fossem quitadas em 60 parcelas de R$ 3 mil.
O pedido foi proposto na Justiça Estadual.
Ocorre que, como uma das instituições financeiras era uma empresa
pública federal (Caixa Econômica Federal), o Juiz de Direito declinou da
competência para a Justiça Federal.
Agiu corretamente o Juiz de Direito?
NÃO.
A discussão que abrange o
presente caso consiste na declaração do juízo competente para processar e
julgar ação de repactuação de dívidas por superendividamento do consumidor em
que é parte, além de outras instituições financeiras privadas, a Caixa Econômica
Federal.
A Lei nº 14.181/2021, ao alterar
o Código de Defesa do Consumidor, disciplinou o instituto da repactuação de
dívidas por superendividamento.
Como vimos acima, o juiz, a
requerimento do devedor, poderá instaurar processo de repactuação de dívidas,
tutelado pelo art. 104-A e seguintes, com vistas à realização de audiência
conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado, com a presença
de todos os credores de dívidas, oportunidade em que o consumidor apresentará
proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 anos, preservados o mínimo
existencial, as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas.
Esse procedimento é de
competência da Justiça Estadual (ou Justiça Distrital) mesmo que exista uma
entidade federal como credora do consumidor. Qual é o fundamento para isso? A
parte final do inciso I do art. 109 da CF/88.
O art. 109, I, da CF/88 afirma que compete à Justiça Federal
julgar as causas em que houver interesse de órgão ou entidade federal. Ocorre
que esse mesmo dispositivo prevê que, se a causa em questão for uma falência,
a competência será da Justiça Estadual, mesmo envolvendo ente federal. Confira:
Art. 109. Aos juízes federais
compete processar e julgar:
I - as causas em que a União,
entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição
de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à
Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;
(...)
Qual é a interpretação que se
deve dar para a expressão “falência”? Neste termo está abrangido a insolvência
civil, por exemplo, que é outra forma de concurso de credores?
SIM.
A insolvência civil é uma espécie
de execução coletiva e universal em que todo o patrimônio do devedor civil (não
empresário) será liquidado para satisfação de suas obrigações. É como se fosse
uma “falência”, com a diferença que se trata de devedor civil (e a falência
atinge devedor empresário).
O STF, interpretando essa norma, concluiu
que o termo “falência”, contido na parte final do art. 109, I, da Constituição
Federal compreende a insolvência civil. Por essa razão, compete à Justiça comum
estadual, e não à federal, processar e julgar as ações de insolvência civil
ainda que haja interesse da União, entidade autárquica ou empresa pública
federal:
A insolvência civil está entre as exceções da parte final do
artigo 109, I, da Constituição da República, para fins de definição da
competência da Justiça Federal.
STF. Plenário. RE 678162/AL, Rel. Min. Marco Aurélio, redator do
acórdão Min. Edson Fachin, julgado em 26/3/2021 (Repercussão Geral – Tema 859)
(Info 1011).
Desse modo, apesar de o inciso I do art. 109 falar apenas em
“falência”, deve-se interpretar essa expressão de forma genérica de modo que
abrange também os processos de “recuperação judicial” e de “insolvência civil”.
Previsão expressa nesse sentido veio no art. 45, I, do CPC/2015:
Art. 45. Tramitando o processo perante outro juízo, os
autos serão remetidos ao juízo federal competente se nele intervier a União,
suas empresas públicas, entidades autárquicas e fundações, ou conselho de
fiscalização de atividade profissional, na qualidade de parte ou de terceiro
interveniente, exceto as ações:
I - de recuperação judicial, falência,
insolvência civil e acidente de trabalho;
(...)
Processo de repactuação de
dívidas do superendividado possui natureza de concurso de credores
O raciocínio exposto acima vale
para o processo de repactuação de dívidas que também deverá ser julgado pela
Justiça Estadual.
Tal circunstância decorre da
redação do art. 104-A, do CDC, introduzido pela Lei nº 14.181/2021, que
estabelece a previsão de que, para instaurar o processo de repactuação de
dívidas, impõe-se a presença, perante o juízo, de todos os credores do
consumidor superendividado, a fim de que este possa propor àqueles, o
respectivo plano de pagamentos de seus débitos.
O procedimento judicial
relacionado ao superendividamento, tal como o de recuperação judicial ou
falência, possui inegável e nítida natureza concursal, de modo que as empresas
públicas federais, excepcionalmente, sujeitam-se à competência da Justiça estadual
e/ou distrital, justamente em razão da existência de concursalidade entre
credores, impondo-se, dessa forma, a concentração, na Justiça comum estadual,
de todos os credores, bem como o próprio consumidor para a definição do plano
de pagamento, suas condições, o seu prazo e as formas de adimplemento dos
débitos.
Não poderia haver o
desmembramento: a dívida da CEF é julgada na Justiça Federal e a dos demais
bancos na Justiça Estadual?
NÃO.
Eventual desmembramento ensejaria
notável prejuízo ao devedor (consumidor vulnerável) porque, conforme dispõe o art.
104-A do CDC, todos os credores devem participar do procedimento,
inclusive na oportunidade da audiência conciliatória.
Caso tramitem separadamente, em
jurisdições diversas, federal e estadual, estaria maculado o objetivo primário
da Lei do Superendividamento, qual seja, a de conferir a oportunidade do
consumidor - perante seus credores - apresentar plano de pagamentos a fim de
quitar suas dívidas/obrigações contratuais.
Haveria, ainda, o risco de decisões
conflitantes entre os juízos acerca dos créditos examinados, em violação ao
comando do art. 104-A do CDC.
Assim, cabe à Justiça comum
estadual e/ou distrital analisar as demandas cujo fundamento fático e jurídico
possuem similitude com a insolvência civil - como é a hipótese do
superendividamento - ainda que exista interesse de ente federal, considerando
que a exegese do art. 109, I, da CF/88, deve ser teleológica de forma a
alcançar, na exceção da competência da Justiça Federal, as hipóteses em que
existe o concurso de credores.
Em suma:
STJ. 2ª Seção.
CC 193.066-DF, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 22/3/2023 (Info 768).