Dizer o Direito

domingo, 23 de abril de 2023

O processo de repactuação de dívidas do superendividado (art. 104-A do CDC) é de competência da Justiça Estadual mesmo que também envolva a Caixa Econômica Federal

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João, é servidor público aposentado e vive unicamente com os proventos advindos de sua aposentadoria.

Ao longo dos últimos anos, João fez inúmeros empréstimos consignados e contraiu dívidas em seus cartões de crédito, que comprometem mensalmente a quantia de R$ 10 mil.

Vale ressaltar que a aposentadoria de João é de R$ 11 mil.

Ele alega que suas despesas essenciais para sobrevivência perfazem R$ 4 mil.

 

Superendividamento

Logo, João encontra-se impossibilitado de pagar suas dívidas sem comprometer o seu mínimo existencial, enquadrando-se, portanto, no conceito de superendividado, nos termos do art. 54-A, §1º, do CDC:

Art. 54-A. Este Capítulo dispõe sobre a prevenção do superendividamento da pessoa natural, sobre o crédito responsável e sobre a educação financeira do consumidor. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)

§ 1º Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)

§ 2º As dívidas referidas no § 1º deste artigo englobam quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)

§ 3º O disposto neste Capítulo não se aplica ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)

 

Ocorre o superendividamento quando...

- o consumidor pessoa física

- que está de boa-fé

- não consegue pagar a totalidade de suas dívidas de consumo (exigíveis e vincendas)

- sem comprometer o seu mínimo existencial.

 

O superendividamento está diretamente relacionado com o mínimo existencial do indivíduo, conforme explicam Pablo Stolze e Carlos Eduardo Elias de Oliveira:

“O superendividamento contém traços de uma morte civil social. O indivíduo com o “nome sujo” e sem margem de crédito tende ao ostracismo. Não consegue montar novos negócios. Enfrenta estigmas ao buscar emprego. Sujeita-se a viver “de favor”. Enfim, o superendividamento pode levar o indivíduo a um estado de desesperança e, nas palavras de Raul Seixas, na música Ouro de Tolo, ficar sentado ‘no trono de um apartamento, com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar’.

O motivo é que o superendividamento fulmina o mínimo existencial do indivíduo.” (GAGLIANO, Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Comentários à Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021) e o princípio do crédito responsável. Uma primeira análise. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6575, 2 jul. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91675. Acesso em: 2 jul. 2021).

 

Processo de repactuação de dívidas (art. 104-A do CDC)

A requerimento do consumidor superendividado pessoa natural, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas.

Será, então, designada audiência conciliatória, presidida pelo juiz ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores.

Na audiência, o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 anos, preservados o mínimo existencial, as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas.

 

O pedido do consumidor para instaurara processo de repactuação:

· não importará em declaração de insolvência civil; e

· poderá ser repetido somente após decorrido o prazo de 2 anos, contado da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado, sem prejuízo de eventual repactuação.

 

Conteúdo do plano de pagamento

Deverão constar no plano de pagamento:

I - medidas de dilação dos prazos de pagamento e de redução dos encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor, entre outras destinadas a facilitar o pagamento da dívida;

II - referência à suspensão ou à extinção das ações judiciais em curso;

III - data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de inadimplentes;

IV - condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento.

 

Não havendo êxito na conciliação (art. 104-B)

Se não houver êxito na conciliação em relação a quaisquer credores, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento com a finalidade de:

· revisão e integração dos contratos; e

· repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório.

 

Nesse caso, o juiz fará a citação de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado.

Serão considerados no processo por superendividamento, se for o caso, os documentos e as informações prestadas em audiência.

 

Depois de citados, os credores terão o prazo de 15 dias para:

· juntar documentos e

· apresentar as razões pelas quais se negam a aceder (anuir) ao plano voluntário ou se negam a renegociar.

 

Voltando ao caso concreto:

João ingressou com ação de repactuação de dívidas contra as instituições financeiras para os quais deve, quais sejam: Caixa Econômica Federal, BMG, Banco Pan e Banco Santander.

Com a inicial, foi apresentada proposta de plano de pagamento, nos termos do art. 104-A, caput, do CDC, por meio do qual João propôs que as dívidas fossem quitadas em 60 parcelas de R$ 3 mil.

O pedido foi proposto na Justiça Estadual.

Ocorre que, como uma das instituições financeiras era uma empresa pública federal (Caixa Econômica Federal), o Juiz de Direito declinou da competência para a Justiça Federal.

 

Agiu corretamente o Juiz de Direito?

NÃO.

A discussão que abrange o presente caso consiste na declaração do juízo competente para processar e julgar ação de repactuação de dívidas por superendividamento do consumidor em que é parte, além de outras instituições financeiras privadas, a Caixa Econômica Federal.

A Lei nº 14.181/2021, ao alterar o Código de Defesa do Consumidor, disciplinou o instituto da repactuação de dívidas por superendividamento.

Como vimos acima, o juiz, a requerimento do devedor, poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, tutelado pelo art. 104-A e seguintes, com vistas à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado, com a presença de todos os credores de dívidas, oportunidade em que o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 anos, preservados o mínimo existencial, as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas.

Esse procedimento é de competência da Justiça Estadual (ou Justiça Distrital) mesmo que exista uma entidade federal como credora do consumidor. Qual é o fundamento para isso? A parte final do inciso I do art. 109 da CF/88.

O art. 109, I, da CF/88 afirma que compete à Justiça Federal julgar as causas em que houver interesse de órgão ou entidade federal. Ocorre que esse mesmo dispositivo prevê que, se a causa em questão for uma falência, a competência será da Justiça Estadual, mesmo envolvendo ente federal. Confira:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;

(...)

 

Qual é a interpretação que se deve dar para a expressão “falência”? Neste termo está abrangido a insolvência civil, por exemplo, que é outra forma de concurso de credores?

SIM.

A insolvência civil é uma espécie de execução coletiva e universal em que todo o patrimônio do devedor civil (não empresário) será liquidado para satisfação de suas obrigações. É como se fosse uma “falência”, com a diferença que se trata de devedor civil (e a falência atinge devedor empresário).

O STF, interpretando essa norma, concluiu que o termo “falência”, contido na parte final do art. 109, I, da Constituição Federal compreende a insolvência civil. Por essa razão, compete à Justiça comum estadual, e não à federal, processar e julgar as ações de insolvência civil ainda que haja interesse da União, entidade autárquica ou empresa pública federal:

A insolvência civil está entre as exceções da parte final do artigo 109, I, da Constituição da República, para fins de definição da competência da Justiça Federal.

STF. Plenário. RE 678162/AL, Rel. Min. Marco Aurélio, redator do acórdão Min. Edson Fachin, julgado em 26/3/2021 (Repercussão Geral – Tema 859) (Info 1011).

 

Desse modo, apesar de o inciso I do art. 109 falar apenas em “falência”, deve-se interpretar essa expressão de forma genérica de modo que abrange também os processos de “recuperação judicial” e de “insolvência civil”. Previsão expressa nesse sentido veio no art. 45, I, do CPC/2015:

Art. 45.  Tramitando o processo perante outro juízo, os autos serão remetidos ao juízo federal competente se nele intervier a União, suas empresas públicas, entidades autárquicas e fundações, ou conselho de fiscalização de atividade profissional, na qualidade de parte ou de terceiro interveniente, exceto as ações:

I - de recuperação judicial, falência, insolvência civil e acidente de trabalho;

(...)

 

Processo de repactuação de dívidas do superendividado possui natureza de concurso de credores

O raciocínio exposto acima vale para o processo de repactuação de dívidas que também deverá ser julgado pela Justiça Estadual.

Tal circunstância decorre da redação do art. 104-A, do CDC, introduzido pela Lei nº 14.181/2021, que estabelece a previsão de que, para instaurar o processo de repactuação de dívidas, impõe-se a presença, perante o juízo, de todos os credores do consumidor superendividado, a fim de que este possa propor àqueles, o respectivo plano de pagamentos de seus débitos.

O procedimento judicial relacionado ao superendividamento, tal como o de recuperação judicial ou falência, possui inegável e nítida natureza concursal, de modo que as empresas públicas federais, excepcionalmente, sujeitam-se à competência da Justiça estadual e/ou distrital, justamente em razão da existência de concursalidade entre credores, impondo-se, dessa forma, a concentração, na Justiça comum estadual, de todos os credores, bem como o próprio consumidor para a definição do plano de pagamento, suas condições, o seu prazo e as formas de adimplemento dos débitos.

 

Não poderia haver o desmembramento: a dívida da CEF é julgada na Justiça Federal e a dos demais bancos na Justiça Estadual?

NÃO.

Eventual desmembramento ensejaria notável prejuízo ao devedor (consumidor vulnerável) porque, conforme dispõe o art. 104-A do CDC, todos os credores devem participar do procedimento, inclusive na oportunidade da audiência conciliatória.

Caso tramitem separadamente, em jurisdições diversas, federal e estadual, estaria maculado o objetivo primário da Lei do Superendividamento, qual seja, a de conferir a oportunidade do consumidor - perante seus credores - apresentar plano de pagamentos a fim de quitar suas dívidas/obrigações contratuais.

 Haveria, ainda, o risco de decisões conflitantes entre os juízos acerca dos créditos examinados, em violação ao comando do art. 104-A do CDC.

Assim, cabe à Justiça comum estadual e/ou distrital analisar as demandas cujo fundamento fático e jurídico possuem similitude com a insolvência civil - como é a hipótese do superendividamento - ainda que exista interesse de ente federal, considerando que a exegese do art. 109, I, da CF/88, deve ser teleológica de forma a alcançar, na exceção da competência da Justiça Federal, as hipóteses em que existe o concurso de credores.

 

Em suma:

 

 

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