Dizer o Direito

terça-feira, 18 de abril de 2023

O Banco Central possui responsabilidade objetiva pelos danos que o liquidante cause durante o procedimento de liquidação extrajudicial

 

Em direito civil/empresarial, o que é um consórcio?

O consórcio ocorre quando um grupo de pessoas (físicas ou jurídicas) se reúne com o objetivo de comprar um determinado tipo de bem (móvel ou imóvel) ou adquirir um serviço. O exemplo mais comum é o consórcio para compra de veículos, mas existem para diversas outras espécies de bens, inclusive para imóveis.

Cada pessoa que faz parte do consórcio pagará parcelas mensais e, todos os meses, haverá a possibilidade de um ou mais integrantes do consórcio serem contemplados.

A contemplação pode acontecer de duas formas: por meio de sorte ou pelo maior lance.

Sorteio é a escolha de um dos participantes que será beneficiado por meio da sorte (este sorteio é normalmente feito pela Loteria Federal).

O lance consiste na possibilidade de os participantes do consórcio oferecerem um valor para serem logo contemplados. É uma espécie de “leilão” para ser logo contemplado. Ex: o consórcio é de R$ 100 mil e a pessoa dá um lance de R$ 50 mil, ou seja, ela aceita pagar R$ 50 mil de suas parcelas adiantado em troca de ser logo contemplada. Aquele que oferece o maior lance no mês será contemplado.

Quando a pessoa é contemplada, ela recebe um crédito no valor do bem objeto do consórcio. Isso é chamado de “carta de crédito”.

Ex: Pedro aderiu ao consórcio de um carro da marca XX, modelo YY, no valor de R$ 100 mil. Isso significa que, durante um determinado período (48, 60, 90 meses etc.), ele pagará uma prestação mensal e todos os meses um ou mais participantes do consórcio serão sorteados ou poderão dar lances. Caso a pessoa seja sorteada ou seu lance seja o maior, ela receberá o crédito de R$ 100 mil e poderá, com ele, comprar aquele carro ou outro bem daquele mesmo segmento de sua cota (outro veículo de modelo diferente).

Os consórcios são indicados para pessoas que querem comprar determinado bem, mas não precisam dele de imediato e têm certa dificuldade de economizar. Assim, sabendo que possui aquela prestação mensal, a pessoa fica obrigada a poupar e, um dia, será contemplada, seja por sorteio, seja por decidir dar um lance.

Uma curiosidade: o consórcio é um tipo de compra/investimento que foi criado no Brasil, tendo surgido na década de 60, por iniciativa de um grupo de funcionários do Banco do Brasil que se reuniu para comprar carros por meio dessa “poupança coletiva”.

 

Legislação

O sistema de consórcios é atualmente regido pela Lei nº 11.795/2008, sendo essa atividade regulada pelo Banco Central, que edita circulares para disciplinar o tema. A atual é a Circular 3.432/2009.

 

O que é uma administradora de consórcio?

A administradora de consórcio é uma pessoa jurídica que é responsável pela formação e administração de grupos de consórcio. Em outras palavras, é ela quem organiza o consórcio.

A pessoa jurídica que administre consórcios é equiparada a instituição financeira por força do art. 1º, parágrafo único, I, da Lei nº 7.492/86:

Art. 1º (...)

Parágrafo único. Equipara-se à instituição financeira:

I - a pessoa jurídica que capte ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de poupança, ou recursos de terceiros;

I-A - a pessoa jurídica que ofereça serviços referentes a operações com ativos virtuais, inclusive intermediação, negociação ou custódia;

II - a pessoa natural que exerça quaisquer das atividades referidas neste artigo, ainda que de forma eventual.

 

A administradora de consórcio cobra algum valor dos participantes para organizar o consórcio?

SIM. As administradoras de consórcio cobram uma “taxa de administração” como contraprestação pela administração do grupo de consórcio.

O percentual da taxa de administração deve estar definido no contrato de adesão ao consórcio.

 

Liquidação extrajudicial de empresas de consórcio

As empresas de consórcio, quando estão em grave dificuldade financeira, submetem-se a um processo especial de “falência”, que não é chamado de falência, mas sim de “liquidação extrajudicial”, sendo conduzido pelo Banco Central, autarquia federal.

Veja o que diz a Lei nº 11.101/2005 (Lei de Falências):

Art. 2º Esta Lei não se aplica a:

(...)

II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores.

 

Confira agora o que dispõe a Lei nº 6.024/74, que disciplina sobre a intervenção e a liquidação extrajudicial de instituições financeiras. Confira o que diz o art. 1º:

Art. 1º As instituições financeiras privadas e as públicas não federais, assim como as cooperativas de crédito, estão sujeitas, nos termos desta Lei, à intervenção ou à liquidação extrajudicial, em ambos os casos efetuada e decretada pelo Banco Central do Brasil, sem prejuízo do disposto nos artigos 137 e 138 do Decreto-lei nº 2.627, de 26 de setembro de 1940, ou à falência, nos termos da legislação vigente.

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João e Ricardo eram sócios da empresa Consórcio Alfa Ltda., especializada em formação e administração de grupos de consórcios.

A empresa teve sua liquidação extrajudicial decretada pelo Banco Central, e os sócios foram afastados da administração.

Pedro da Silva foi designado como liquidante da empresa.

Ocorre que, alguns anos mais tarde, constatou-se a prática de diversas condutas irregulares por parte do liquidante.

A principal irregularidade foi que o liquidante utilizou valores que haviam sido pagos pelos consorciados (participantes dos consórcios) para custear despesas do processo de liquidação.

Durante o processo de liquidação, o liquidante sacou, das cotas consorciais dos grupos, valores ali depositados e utilizados para os consórcios. Esses valores foram empregados para pagar despesas de manutenção do procedimento liquidatório. Ocorre que tais despesas deveriam ser suportadas pelos próprios bens da empresa, e não com os saldos das cotas consorciais.

Algum tempo depois a empresa foi à falência.

Diante disso, João e Ricardo ajuizaram ação de indenização contra o Banco Central argumentando que a autarquia foi negligente e que não fiscalizou adequadamente a administração do Consórcio, que passou a ser de sua responsabilidade.

O Banco Central contestou afirmando que a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos alegados pelos autores é exclusiva do liquidante, nos termos do art. 33 da Lei nº 6.024/74:

Art. 33. O liquidante prestará contas ao Banco Central do Brasil, independentemente de qualquer exigência, no momento em que deixar suas funções, ou a qualquer tempo, quando solicitado, e responderá, civil e criminalmente, por seus atos.

 

Onde essa ação teve que ser proposta?

Na Justiça Federal, considerando que o Banco Central é uma autarquia federal, atraindo, portanto, o art. 109, I, da CF/88:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;

(...)

 

A questão chegou até o STJ. O Banco Central pode ser responsabilizado pelos atos praticados pelo liquidante de uma empresa de consórcio que está em processo de liquidação extrajudicial?

SIM.

A “liquidação extrajudicial consiste numa forma excepcional de liquidação e extinção da empresa, por processo administrativo, determinada pelo estado ex officio, ou a requerimento de seus próprios órgãos dirigentes” (REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 1995, v. 2, p. 232).

De acordo com o art. 16, da Lei nº 6.024/74:

Art. 16. A liquidação extrajudicial será executada por liquidante nomeado pelo Banco Central do Brasil, com amplos poderes de administração e liquidação, (...)

§ 1º Com prévia e expressa autorização do Banco Central do Brasil, poderá o liquidante, em benefício da massa, ultimar os negócios pendentes e, a qualquer tempo, onerar ou alienar seus bens, neste último caso através de licitações.

(...)

 

O administrador/liquidante “atua em nome e por conta do Banco Central do Brasil, como verdadeira longa manus dessa autarquia, administrando a empresa em liquidação sob as diretrizes ditadas pelo próprio BACEN, como se pode deduzir do que preconizam diversos dispositivos da Lei 6.024/74” (AgRg no REsp 1.099.724/RJ, relator Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 17/9/2009, DJe de 5/10/2009).

“O liquidante extrajudicial, por deter a competência para a prática de atos vinculados às atribuições fiscalizadoras do BACEN, desempenha função pública e, por isso, é enquadrado no conceito de agente público, sendo irrelevante o fato de a liquidação se referir a pessoa jurídica de direito privado ou não se relacionar à gerência de recursos públicos” (REsp n. 1.187.947/BA, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, relator para acórdão Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 27/5/2014, DJe de 4/8/2014).

A interpretação do art. 33 da Lei nº 6.024/74 (O liquidante, civil e criminalmente, por seus atos) tem que ser feita em harmonia com o texto constitucional. Assim, o referido dispositivo legal não tem o condão de excluir a responsabilidade do BACEN, mas tão somente de estabelecer que o liquidante também arcará com os prejuízos decorrentes da sua gestão. A responsabilidade do BACEN, contudo, existe por força do art. 37, § 6º da CF/88:

Art. 37 (...)

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

 

Ao analisar o art. 37, § 6º, da CF/88, a doutrina afirma que o termo agente “abrange todas as categorias, de agente políticos, administrativos ou os particulares em colaboração com a Administração, sem interessar o título sob o qual prestam o serviço” (Direito Administrativo. Maria Sylvia Zanella Di Pietro. - 19. ed. - São Paulo: Atlas, 2006, p. 624).

Diante do que foi exposto, constata-se que o BACEN responde objetivamente pelos danos que os liquidantes, no exercício da função pública, causem à massa falida, em decorrência da indevida utilização dos valores pagos pelos consorciados para a quitação das despesas de manutenção do procedimento liquidatório. Isso porque a orientação dada pelo próprio Banco Central é a de que tais despesas devem ser pagas com os bens da empresa, aí incluída a receita obtida com a taxa de administração cobrada dos consorciados.

 

Em suma:

 

 


Dizer o Direito!