Em direito
civil/empresarial, o que é um consórcio?
O
consórcio ocorre quando um grupo de pessoas (físicas ou jurídicas) se reúne com
o objetivo de comprar um determinado tipo de bem (móvel ou imóvel) ou adquirir
um serviço. O exemplo mais comum é o consórcio para compra de veículos, mas
existem para diversas outras espécies de bens, inclusive para imóveis.
Cada pessoa que faz parte do
consórcio pagará parcelas mensais e, todos os meses, haverá a possibilidade de
um ou mais integrantes do consórcio serem contemplados.
A contemplação pode acontecer de
duas formas: por meio de sorte ou pelo maior lance.
Sorteio é a escolha de um dos
participantes que será beneficiado por meio da sorte (este sorteio é
normalmente feito pela Loteria Federal).
O lance consiste na possibilidade
de os participantes do consórcio oferecerem um valor para serem logo
contemplados. É uma espécie de “leilão” para ser logo contemplado. Ex: o consórcio
é de R$ 100 mil e a pessoa dá um lance de R$ 50 mil, ou seja, ela aceita pagar
R$ 50 mil de suas parcelas adiantado em troca de ser logo contemplada. Aquele
que oferece o maior lance no mês será contemplado.
Quando a pessoa é contemplada,
ela recebe um crédito no valor do bem objeto do consórcio. Isso é chamado de
“carta de crédito”.
Ex: Pedro aderiu ao consórcio de
um carro da marca XX, modelo YY, no valor de R$ 100 mil. Isso significa que,
durante um determinado período (48, 60, 90 meses etc.), ele pagará uma
prestação mensal e todos os meses um ou mais participantes do consórcio serão
sorteados ou poderão dar lances. Caso a pessoa seja sorteada ou seu lance seja
o maior, ela receberá o crédito de R$ 100 mil e poderá, com ele, comprar aquele
carro ou outro bem daquele mesmo segmento de sua cota (outro veículo de modelo
diferente).
Os
consórcios são indicados para pessoas que querem comprar determinado bem, mas
não precisam dele de imediato e têm certa dificuldade de economizar. Assim,
sabendo que possui aquela prestação mensal, a pessoa fica obrigada a poupar e,
um dia, será contemplada, seja por sorteio, seja por decidir dar um lance.
Uma curiosidade: o consórcio é um
tipo de compra/investimento que foi criado no Brasil, tendo surgido na década
de 60, por iniciativa de um grupo de funcionários do Banco do Brasil que se
reuniu para comprar carros por meio dessa “poupança coletiva”.
Legislação
O sistema de consórcios é
atualmente regido pela Lei nº 11.795/2008, sendo essa atividade regulada pelo
Banco Central, que edita circulares para disciplinar o tema. A atual é a
Circular 3.432/2009.
O que é uma administradora
de consórcio?
A administradora de consórcio é
uma pessoa jurídica que é responsável pela formação e administração de grupos
de consórcio. Em outras palavras, é ela quem organiza o consórcio.
A pessoa jurídica que administre consórcios é equiparada a
instituição financeira por força do art. 1º, parágrafo único, I, da Lei nº
7.492/86:
Art. 1º (...)
Parágrafo único. Equipara-se à instituição
financeira:
I - a pessoa jurídica que capte
ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de
poupança, ou recursos de terceiros;
I-A - a pessoa jurídica que
ofereça serviços referentes a operações com ativos virtuais, inclusive
intermediação, negociação ou custódia;
II - a pessoa natural que exerça
quaisquer das atividades referidas neste artigo, ainda que de forma eventual.
A administradora de
consórcio cobra algum valor dos participantes para organizar o consórcio?
SIM. As administradoras de
consórcio cobram uma “taxa de administração” como contraprestação pela
administração do grupo de consórcio.
O percentual da taxa de
administração deve estar definido no contrato de adesão ao consórcio.
Liquidação extrajudicial de
empresas de consórcio
As empresas de consórcio, quando
estão em grave dificuldade financeira, submetem-se a um processo especial de
“falência”, que não é chamado de falência, mas sim de “liquidação
extrajudicial”, sendo conduzido pelo Banco Central, autarquia federal.
Veja o que diz a Lei nº 11.101/2005 (Lei de Falências):
Art. 2º Esta Lei não se aplica a:
(...)
II – instituição financeira
pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência
complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade
seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente
equiparadas às anteriores.
Confira agora o que dispõe a Lei nº 6.024/74, que disciplina
sobre a intervenção e a liquidação extrajudicial de instituições financeiras.
Confira o que diz o art. 1º:
Art. 1º As instituições
financeiras privadas e as públicas não federais, assim como as cooperativas de
crédito, estão sujeitas, nos termos desta Lei, à intervenção ou à liquidação
extrajudicial, em ambos os casos efetuada e decretada pelo Banco Central do
Brasil, sem prejuízo do disposto nos artigos 137 e 138 do Decreto-lei nº 2.627,
de 26 de setembro de 1940, ou à falência, nos termos da legislação vigente.
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João e Ricardo eram sócios da
empresa Consórcio Alfa Ltda., especializada em formação e administração de
grupos de consórcios.
A empresa teve sua liquidação
extrajudicial decretada pelo Banco Central, e os sócios foram afastados da
administração.
Pedro da Silva foi designado como
liquidante da empresa.
Ocorre que, alguns anos mais
tarde, constatou-se a prática de diversas condutas irregulares por parte do
liquidante.
A principal irregularidade foi
que o liquidante utilizou valores que haviam sido pagos pelos consorciados (participantes
dos consórcios) para custear despesas do processo de liquidação.
Durante o processo de liquidação,
o liquidante sacou, das cotas consorciais dos grupos, valores ali depositados e
utilizados para os consórcios. Esses valores foram empregados para pagar despesas
de manutenção do procedimento liquidatório. Ocorre que tais despesas deveriam
ser suportadas pelos próprios bens da empresa, e não com os saldos das cotas
consorciais.
Algum tempo depois a empresa foi
à falência.
Diante disso, João e Ricardo
ajuizaram ação de indenização contra o Banco Central argumentando que a
autarquia foi negligente e que não fiscalizou adequadamente a administração do
Consórcio, que passou a ser de sua responsabilidade.
O Banco Central contestou afirmando que a responsabilidade pelo
ressarcimento dos danos alegados pelos autores é exclusiva do liquidante, nos
termos do art. 33 da Lei nº 6.024/74:
Art. 33. O liquidante prestará
contas ao Banco Central do Brasil, independentemente de qualquer exigência, no
momento em que deixar suas funções, ou a qualquer tempo, quando solicitado, e responderá, civil e criminalmente,
por seus atos.
Onde essa ação teve que ser
proposta?
Na Justiça Federal, considerando que o Banco Central é uma
autarquia federal, atraindo, portanto, o art. 109, I, da CF/88:
Art. 109. Aos juízes federais
compete processar e julgar:
I - as causas em que a União,
entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição
de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de
acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do
Trabalho;
(...)
A questão chegou até o STJ.
O Banco Central pode ser responsabilizado pelos atos praticados pelo liquidante
de uma empresa de consórcio que está em processo de liquidação extrajudicial?
SIM.
A “liquidação extrajudicial
consiste numa forma excepcional de liquidação e extinção da empresa, por
processo administrativo, determinada pelo estado ex officio, ou a requerimento
de seus próprios órgãos dirigentes” (REQUIÃO, Rubens. Curso de direito
falimentar. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 1995, v. 2, p. 232).
De acordo com o art. 16, da Lei nº 6.024/74:
Art. 16. A liquidação
extrajudicial será executada por liquidante nomeado pelo Banco Central do
Brasil, com amplos poderes de administração e liquidação, (...)
§ 1º Com prévia e expressa
autorização do Banco Central do Brasil, poderá o liquidante, em benefício da
massa, ultimar os negócios pendentes e, a qualquer tempo, onerar ou alienar
seus bens, neste último caso através de licitações.
(...)
O administrador/liquidante “atua
em nome e por conta do Banco Central do Brasil, como verdadeira longa manus
dessa autarquia, administrando a empresa em liquidação sob as diretrizes
ditadas pelo próprio BACEN, como se pode deduzir do que preconizam diversos
dispositivos da Lei 6.024/74” (AgRg no REsp 1.099.724/RJ, relator Ministro
Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 17/9/2009, DJe de 5/10/2009).
“O liquidante extrajudicial, por
deter a competência para a prática de atos vinculados às atribuições
fiscalizadoras do BACEN, desempenha função pública e, por isso, é enquadrado no
conceito de agente público, sendo irrelevante o fato de a liquidação se referir
a pessoa jurídica de direito privado ou não se relacionar à gerência de
recursos públicos” (REsp n. 1.187.947/BA, relator Ministro Napoleão Nunes Maia
Filho, relator para acórdão Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma,
julgado em 27/5/2014, DJe de 4/8/2014).
A interpretação do art. 33 da Lei nº 6.024/74 (O liquidante,
civil e criminalmente, por seus atos) tem que ser feita em harmonia com o texto
constitucional. Assim, o referido dispositivo legal não tem o condão de excluir
a responsabilidade do BACEN, mas tão somente de estabelecer que o liquidante também
arcará com os prejuízos decorrentes da sua gestão. A responsabilidade do BACEN,
contudo, existe por força do art. 37, § 6º da CF/88:
Art. 37 (...)
§ 6º As pessoas jurídicas de
direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos
responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a
terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de
dolo ou culpa.
Ao analisar o art. 37, § 6º, da
CF/88, a doutrina afirma que o termo agente “abrange todas as categorias, de
agente políticos, administrativos ou os particulares em colaboração com a
Administração, sem interessar o título sob o qual prestam o serviço” (Direito Administrativo.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro. - 19. ed. - São Paulo: Atlas, 2006, p. 624).
Diante do que foi exposto,
constata-se que o BACEN responde objetivamente pelos danos que os liquidantes, no exercício da
função pública, causem à massa falida, em decorrência da indevida utilização
dos valores pagos pelos consorciados para a quitação das despesas de manutenção
do procedimento liquidatório. Isso porque a orientação dada pelo próprio Banco
Central é a de que tais despesas devem ser pagas com os bens da empresa, aí
incluída a receita obtida com a taxa de administração cobrada dos consorciados.
Em suma:
STJ. 1ª
Turma. REsp 1.569.427-SP, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 14/3/2023 (Info
768).