Dizer o Direito

sexta-feira, 28 de abril de 2023

O art. 268 do CP veicula norma penal em branco que pode ser complementada por atos normativos infralegais editados não apenas pela União, mas também pelos Estados, Distrito Federal e Municípios

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João era o proprietário de um bar.

Durante a pandemia da Covid-19, o Prefeito expediu decreto determinando que somente poderiam funcionar os estabelecimentos comerciais classificados como essenciais. Os bares não estavam nesse rol de atividades essenciais.

Mesmo com a proibição, o bar de João continuou funcionando normalmente até que houve uma fiscalização e o estabelecimento foi fechado.

João foi denunciado pelo Ministério Público do Estado pela prática do crime de infração de medida sanitária, prevista no art. 268 do Código Penal:

Art. 268. Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:

Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

 

A juíza rejeitou a denúncia entendendo que a conduta atribuída ao acusado seria atípica considerando que não haveria norma reguladora do art. 268 do Código Penal apta a ensejar a persecução penal.

A magistrada apresentou, dentre outros, os seguintes argumentos:

“De fato, o artigo 268 do Código Penal é norma penal em branco e exige outra norma jurídica a complementar o tipo e tal deve advir de fonte legislativa Federal, visto que é competência privativa da União legislar sobre direito penal.

(...)

Durante a vigência do período de restrição sanitária decorrente da pandemia ocasionada pela disseminação da COVID-19 coube a Lei Federal 13.979/2020 estabelecer as medidas de enfrentamento à pandemia e nela não há sanções penais a serem aplicadas em caso de inobservância das normas, cujo descumprimento poderia ocasionar a aplicação de multa pecuniária no âmbito do direito administrativo.

Assim, não há norma Federal emanada pelo Poder Executivo ou Legislativo a complementar o tipo penal incriminador e, portanto, eventual inobservância das regras não configura infração penal.

Neste raciocínio, inarredável o reconhecimento da atipicidade da conduta atribuída ao acusado.

De fato, a inobservância das normas estaduais e municipais emanadas pelo Poder Público podem vir a caracterizar infração administrativa, mas não ilícito penal. Concluir de modo diverso é admitir que o Poder Público Estadual ou Municipal passe a legislar sobre direito penal usurpando da competência privativa da União.”

 

A sentença foi mantida pela Turma Recursal.

Ainda inconformado, o Ministério Público interpôs recurso extraordinário.

 

O STF deu provimento ao recurso do Ministério Público? A conduta praticada, em tese, configura o crime do art. 268 do CP?

SIM.

O art. 268 do Código Penal é norma penal em branco considerando que o tipo fala em “infringir determinação do poder público”. Assim, o tipo deve ser complementado por ato normativo que imponha regras para impedir a introdução ou a propagação de doença contagiosa.

A controvérsia residia em saber quem deveria editar esse complemento.

A discussão aqui travada foi, portanto, definir se seria possível que a complementação dessa norma penal em branco fosse feita por meio de um ato normativo estadual ou municipal.

O STF entendeu que sim.

Assim, se o Estado, o Distrito Federal ou o Município editou ato normativo para combater a propagação do vírus SARS-CoV-2, causador da Covid-19, e essa determinação foi descumprida, essa conduta se mostra apta a se enquadrar, abstratamente, no crime do art. 268 do Código Penal.

Em outras palavras, o complemento normativo do art. 268 do CP não precisa, necessariamente, ser editado pela União.

 

Mas se esse complemento é fixado por Estado, DF ou Município, não estaria havendo uma violação à competência privativa da União para legislar sobre direito penal?

NÃO. O art. 268 do Código Penal veicula, em sua redação, o preceito primário incriminador, isto é, o núcleo essencial da conduta punível. Isso significa que a União exerceu, de forma legítima e com objetivo de salvaguardar a incolumidade da saúde pública, sua competência privativa de legislar sobre direito penal, na forma do art. 22, I, da CF/88.

No entanto, o referido tipo penal configura norma penal em branco heterogênea, razão pela qual necessita de complementação por atos normativos infralegais, tais como decretos, portarias e resoluções, de modo a se tornar possível a aferição da conduta nuclear tipificada, qual seja, infringir normas estabelecidas pelo Poder Público para evitar a introdução ou disseminação de doença contagiosa.

Na espécie, essa complementação se faz mediante ato do poder público, compreendida a competência de quaisquer dos entes federados.

Ademais, essa complementação não se reveste de natureza criminal. Trata-se, via de regra, de norma administrativa e técnico-científica, o que justifica a possibilidade de edição do ato normativo suplementador pelo ente federado com competência administrativa para tanto.

Adotar entendimento contrário restringiria a competência concorrente e outorgar-se-ia, ao Poder Executivo federal, competência exclusiva na matéria, legitimando o afastamento das deliberações levadas a efeito pelos entes estaduais, municipais ou distrital, em absoluta contrariedade à jurisprudência do STF.

De acordo com o entendimento do STF, a competência para proteção da saúde, no plano administrativo e no legislativo, é compartilhada entre a União, o Distrito Federal, os estados e os municípios, inclusive para impor medidas restritivas destinadas a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa.

Conforme decidiu o STF:

Além da União, os Estados/DF e Municípios também podem adotar medidas de combate à Covid-19 considerando que a proteção da saúde é de competência concorrente.

Assim, as providências adotadas pelo Governo Federal não afastam atos a serem praticados por Estado, o Distrito Federal e Município considerada a competência concorrente na forma do artigo 23, inciso II, da Lei Maior.

STF. Plenário. ADI 6341 MC-Ref/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Edson Fachin, julgado em 15/4/2020 (Info 973).

 

Vale destacar que a determinação do poder público, editada com a finalidade de impedir introdução ou propagação de doença contagiosa, precisa ser clara, baseada em evidências científicas, cogente – não bastando a mera recomendação ou protocolos de conduta – e em conformidade com o princípio da proporcionalidade. Desse modo, mostra-se possível o exame de constitucionalidade e de legalidade das normas complementadoras a ser realizado a cada ato normativo e a cada fato imputado.

Diante do exposto, podemos concluir que o descumprimento das medidas e dos atos normativos de controle epidemiológico previstos na Lei nº 13.979/2020, editados pelos entes federados em prol da incolumidade pública, enseja consequências no campo do direito penal.

 

Em resumo:

A complementação de norma penal em branco por ato normativo estadual, distrital ou municipal, para aplicação do tipo de infração de medida sanitária preventiva (Código Penal, art. 268), não viola a competência privativa da União para legislar sobre direito penal (art. 22, I, CF/88).

STF. Plenário. ARE 1.418.846/RS, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 25/3/2023 (Repercussão Geral – Tema 1246) (Info 1088).

 

Veja a tese fixada pelo STF:

O art. 268 do Código Penal veicula norma penal em branco que pode ser complementada por atos normativos infralegais editados pelos entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), respeitadas as respectivas esferas de atuação, sem que isso implique ofensa à competência privativa da União para legislar sobre direito penal (art. 22, I, CF/88).

STF. Plenário. ARE 1.418.846/RS, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 25/3/2023 (Repercussão Geral – Tema 1246) (Info 1088).

 

Com base nesse entendimento, o Plenário, por unanimidade, reconheceu a existência da repercussão geral da questão constitucional suscitada (Tema 1.246 da repercussão geral) e, no mérito, por maioria, reafirmou a jurisprudência dominante sobre a matéria para dar provimento ao recurso extraordinário e, consequentemente, determinar o prosseguimento da ação penal ao afastar a alegação de atipicidade da conduta por ausência de norma complementadora do art. 268 do Código Penal.

 

 


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